quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Para um minuto de meditação - 61

 

   “A grande incógnita reside então em saber o que fará o Presidente da República daqui para a frente com 2,5 milhões de votos no actual cenário de pandemia, decisivo para o que nos espera, perante um Governo que dá sinais de errância e falta de consistência política, que vai abrindo brechas quase diariamente, por vezes pelas razões mais inexplicáveis e cada vez mais evidencia sinais de precisar de mudanças em várias pastas, das quais as mais urgentes serão seguramente o Ambiente, cuja gestão tem sido um fiasco, a Educação e as Infraestruturas e Habitação.

   E também de que maneira influenciará futuras escolhas no PSD, o aparecimento de um novo partido ou admitirá antecipar eleições legislativas num cenário de reforço da sua legitimidade.

   De um lacrau sabe-se com o que se pode contar. De Marcelo, como de Paulo Portas, nunca se sabe até que ponto o calculismo e o oportunismo políticos condicionarão a decisão futura”.

                                                                              Sérgio de Almeida Correia


ÚLTIMA HORA!

 

Covid-19

Familiares de vítimas na China pressionadas a não falar com OMS


    As autoridades chinesas estão a fazer pressão sobre as famílias das primeiras vítimas da Covid-19 para que não entrem em contacto com os investigadores da Organização Mundial da Saúde em Wuhan.

                                                                        (Dos jornais)


Joaquim Saial, Os quatro elementos

 

Era ainda noite cerrada,
quando o poeta se levantou.
Urinou,
descarregou o autoclismo,
lavou as mãos,
bebeu água
e, através da janela, 
viu a chuva 
e o rio que ela engrossava.

O vento soprava ameaçador,
fazendo estalar o arvoredo
e a roupa esquecida nos estendais.
Abanava telhas,
águas-furtadas,
pára-raios 
e cata-ventos
e fazia remoinhos de folhas no ar.

Para aplacar a insónia,
o poeta colocou um tronco na lareira,
acendeu-a e acendeu nela um cigarro,
antes de ver uma reportagem na tv
sobre os incêndios desse Verão.

Já raiava a manhã,
quando a tempestade amainou
e ele saiu para a horta,
para sentir o cheiro da terra molhada 
e ver como o barro descido da encosta
lhe melhorara a propriedade,
tapando covas que antes tinha.

O sono voltou ao poeta.

Mas antes de adormecer de novo,
decidiu ali mesmo que o último poema 
do livro que estava a acabar
se intitularia "Os quatro elementos",
banda visual da sua insónia.


Foto expressiva

 

Do totalitarismo como uma das malas-artes

ou

Tão amigos que nós somos…




    Esta foto dispensa comentários excessivos.

    Basta referir que um destes cavalheiros é, como sempre foi, adepto de Estaline, que mandou matar o benemérito Trotsky (que liquidou por seu turno os marinheiros de Kronstadt), de quem o outro é, como sempre foi, assecla devotado.

   É bonito ver-se o carinho político em que ambos estão agora mergulhados. Os bons espíritos sempre se encontram como diz a frase famosa…

   Estaline e Trotsky agora unidos na terra… embora rivais no céu dos pássaros bisnaus!

                                                                                  Manuel Carreira Viana


Nicolau Saião, Crónica - O Jardim Perdido

 

ns, Capa



   Vamos criar uma situação imaginária: numa certa noite um hortelão de meia-idade, que até aí tratara do seu vergel com devoção e talento, senta-se numa cadeira de baloiço a um canto do quarto e sem tugir nem mugir fica ali durante quase três horas, de olhos presos no vazio, como se meditasse na morte da bezerra ou tivesse levado uma pancada na cachimónia.

 

   Daí em diante não colhe nenhum fruto: nem as maçãs firmes e doces, nem as peras com cheiro de moçoila taful, nem os figos e as laranjas e as cerejas. Nicles. Deixa que umas sequem e as outras bichem, que estes se engelhem e os outros encarquilhem.

  Já estou a ouvir, ali do canto, aquele leitor que atura os meus escritos a dizer-me com unção:”O gajo está é com uma depressão. Diga-lhe já para tomar uma dose reforçada de pílulas marretas ou então, na volta, uns cálices de rum “James Cook”. (Aqui entre nós: é desse que eu gasto).

 

  Nisto das escritas e, muito mais, das literaturas, há por vezes situações que se assemelham e nos apoquentam: dum querido amigo do Brasil chega-me a informação de que Ribeiro Couto, o admirável cronista/ensaísta e não menos excelente poeta de diversos livros para quem lê com a razão e o coração – quase não é lido ali e está quase esquecido! E não é o único, com mil bombas!

  Ou seja: é como se um Brasil hortelão, dispondo de frutos de alta qualidade, se pusesse feito catrapuz e não ligasse importância ao belíssimo pomar.

 

  Mas Ribeiro Couto ainda é lido, ainda é considerado. A chama ainda brilha e creio que cedo ou tarde voltará a cintilar. Nomeadamente espevitada pelo amigo a que aludo e decerto muitos amigos mais (ou seja: por muita, muita gente – que estimaria conhecer).

  O excelente cantor de “Entre mar e rio”, de “Sentimento lusitano”, de “Cancioneiro do ausente”, de contos inspirados e de ensaios em que se debruçou com pertinácia sobre figuras da cultura portuguesa não pode cair num esquecimento que, se fere a sua memória, muito mais fere a qualidade que, pertencendo-lhe, é também herança de todos nós.

 

   E que dizer do afastamento igualmente estranho que parece atingir os admiráveis Mauro Mota ou José Paulo Moreira da Fonseca? Há coisas que não consigo perceber, aqui vos digo à puridade: ainda se o seu estro e o seu verbo não fossem, como de facto são, dos mais pujantes da escrita brasileira! Como pode solapar-se, epigrafando ad contrarii alguns operadores poéticos (como diz com chiste um conhecido meu) cuja prosápia está nos antípodas da sua potência poética, o autor de “Elegias”, de “O galo e o catavento”, de “Os epitáfios”; ou o poeta de “Duas Poesias” de “Raízes”, de “Três livros”?

 

  Ainda se fosse em Portugal, onde se festeja um apepinador marxiano por ser uma pessoa grada do meio autoritário! E onde muitas vezes as “vitórias poéticas” são futebol de secretaria! Agora no Brasil, esse país que…Mas vocês já perceberam. Não vou alongar-me, não me vou pôr com as minhas tiradas de sujeito mal adestrado para assuntos pouco claros…

 

   Aqueles autores que ali referi estão ligados a três ou quatro tardes felizes do meu como se diz antigo emprego (Centro de Estudos José Régio) em que, libertariamente, tive o gosto de passar à máquina de escrever, completinhos da silva e p’ra meu gáudio e proveito das minhas estantes, livros que já não estavam no mercado mas existiam no lugar onde tirocinei para aposentado.

  E Régio, de certezinha, com um meio-sorriso maroto espraiado pela manhã da Velha Casa me contemplava, lá do Além, por cima do ombro num relancear cúmplice que muito me satisfez…

                                                                                                                       ns


Apache (The Shadows)

 



segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Para um minuto de meditação - 60

 


ns




  Um ministro digno do primeiro-ministro

  ou

 Do socialismo arrebenta…

   Há limites da decência. Para além disso, há o governo português. Bem para lá disso tudo, ainda há Tiago Brandão Rodrigues. O ministro da educação, na qualidade de idiota de serviço, papel que desempenha com o afinco de um actor de método, decidiu acusar os estabelecimentos de ensino privados, instituições que conquistaram a confiança de milhares de encarregados de educação, famílias e seus alunos, de “oportunismo” pela audácia de proporcionarem o serviço por todos desejado, dadas as circunstâncias, de aulas à distância.

   Noutras circunstâncias dir-se-ia que Tiago Brandão Rodrigues não tem condições para continuar num ministério. No caso específico do governo de António Costa, não só tem condições como apresenta todas as características de incompetência e falta de educação conjugadas com a pretendida pose de forcado amador em que as famílias fazem de touro.    

    Em suma, um embaraço para qualquer broeiro.

    Mas parece que o problema é o Ventura, por isso, siga a marinha.

                                                                                             Vítor Cunha

                                                                                  Jorge Gaillard Nogueira


Um poema de Jules Morot

 

COMOÇÃO DE NATAL

 

Eu sou um espião mais que perfeito

os olhos as mãos a silhueta

tudo o que fui aprendendo tudo o que esqueci

tudo quanto Senhor vi depois da vossa morte

até as colheres de madeira e o prato grosseiro

ao jantar

ao começo da noite

mesmo as peúgas esburacadas do meu primo

mesmo a camisa esfarrapada do meu pai

os alegres e tristes olhos da minha mãe

e quanto compramos sem pagarmos

e sem um deus lhe pague

 

Tudo isso guardo no meu coração.

 

Nas noites nos dias da minha adolescência

quando a meditar me sentava

na pedra pintada de branco

no meio da horta da pequena Armandine

que me ofertava castanhas cozidas quando era tempo de Outono

e me limpava o rosto com um lenço de linho

olhando o meu suor de sangue.

 

Tudo isso é o meu tesouro

caro Senhor para si e para os vossos anjos

para os vossos assistentes na floresta do céu

para os notários de vosso augusto Pai

sem esquecer o garoto que vós fostes

e mesmo o mendigo que vos ajudou

a montar sobre o burrinho

que vos levou até à porta Susa

naquele dia da Páscoa.

 

Assim, Senhor, perdoai-me

as minhas faltas

as minhas repentinas alegrias

os meus silêncios estranhos

 

e todos os poemas que foram só pensamento.

 

                                                              (Tradução ns)

 

                                                            *

 

    Jules Auguste de Minvelle Morot nasceu em 1973 em Alc-le-Courtnay.

 Poemas dispersos em jornais e revistas, nomeadamente interactivas, depois agrupados e dados a lume sob o título “Le mardi-gras” (alguns dos quais saídos em Portugal na “DiVersos – revista de poesia e tradução”, na página interactiva paulista Cronópios/Musa Rara e no TriploV).

 Em prosa deu a lume “La chambre engloutie”, relatos e reflexões novelizadas de que extractos saíram na revista cearense, de Fortaleza,  “AGULHA”.

  Licenciado em biologia marinha, exerceu o professorado. Depois da morte de seu pai tomou conta do ramo (criação de vinhos) em que sua família fez tradição.


Três perguntas para poetas

 

        (Efectuadas por Edson Cruz para o blog SAMBAQUIS, Brasil)

 

         Respostas de ns

 

   Pergunta - O que é poesia para você?

 

  Busquemos distinguir desde já: há a poesia inerente às coisas, essa que subjaz ao acontecimento de viver com tudo o que lhe pertence – contentamentos e mágoas, sabores e cheiros, os ruídos e o silêncio, o alto e o baixo, o de fora e o de dentro, como sagazmente diziam os antigos ou modernos alquimistas. A poesia que existe no “simples cair dum lenço”, para usar a expressão de Péret.

  Ou seja, aquilo que se propicia através da simples existência sensível e nos permite perceber a beleza, como por exemplo dizia Raymond Macherot, “que reside no reflexo dum raio de sol, quase ao crepúsculo, ao bater na porta de madeira dum armário antigo”. Ou, como referia Cesariny, sentir algo “tão alto e seroal/ tão de minha invenção”.

  Depois há a poesia que nós fazemos ou que outros fazem, aquela poesia palpável que se constrói ou desconstrói, em todo o caso se forja, através da escrita, da palavra posta na brancura do papel. E que apanhamos dum momento para o outro, de súbito, que nos chega sem sabermos bem de onde veio, de que recantos misteriosos partiu. E, noutras alturas, atingimos depois de um trabalho aturado e que, a uma volta da frase, apanhamos de chofre e logo após guardamos como um tesoiro, como uma descoberta amorável e definitivamente plasmada no tempo e no espaço.

 

   O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?

 

  Se te referes a um iniciante na escrita, no criar poesia mediante a escrita, creio que deve saber escutar os sinais que o rodeiam, as vozes interiores e exteriores que existem e que o poeta, se o é, pode captar para depois lhe possibilitar escrever perduravelmente. Escrever mesmo, ser persistente – é preciso ter músculo para resistir às emboscadas e aos embustes - não escrevinhar ou recrear-se através da escrita, o que os literatos muitas vezes fazem com os piores resultados para os que amam verdadeiramente a poesia e para o que a poesia realmente é.

   E ter, de igual modo, a humildade de saber que dependemos dessa coisa um pouco secreta, um pouco velada, um pouco desconhecida, que é a organização das palavras de certa forma algo imprecisa.

 A poesia nada tem que ver com a literatura, essa que os aproveitadores ou os simples falsários erguem (como se ergue um bloco de apartamentos...) e que depois habitam com todas as vantagens que em geral esse tipo de gente artilha.

 A poesia pode ser e muitas vezes é uma maldição, ou uma incursão no mistério, ou uma aventura no mal, ou uma naturalidade doméstica... Mas nunca um sujeito de literatura, como infelizmente certa gente medíocre ou primária, mas altamente colocada sectorialmente, no país que melhor conheço (Portugal) pretende incutir nas gentes.

 Creio que me faço entender...  

 

    Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que estas escolhas?

 

   Há poetas de grande qualidade, que profundamente apreciamos, mas cujo mundo enquanto hacedores, contudo, está completamente distante das nossas próprias pesquisas, da nossa pessoal via poética. Dito isto, citaria o nome de Samuel Becket pela exemplar desconstrução do poema e da escrita a que se entregou e submeteu; o de Rilke, pela persistência em excursionar por mundos pouco prováveis de darem rendimento perante os donos da circunstancia temporal e devido à capacidade de se emocionar ante os ritmos do mundo; e o de Czeslaw Milosz, pela coragem que teve de ser poeta autónomo e autentico no recinto de feras em que teve de viver durante largo tempo.

  Estes são nomes, note-se, entre vários outros que também poderia epigrafar. Mas são absolutamente representativos do que sinto e por isso os relevo.

  Textos referenciais? O que vou dizer talvez não seja muito canónico, mas é sincero e por isso – contra ventos e marés, rs – aqui o deixo dito (se o não fizesse estaria a atraiçoar a minha juventude de forma repelente e cobarde): alguns textos que mais me fizeram sentir a maravilha, a variedade da escrita, foram – nos meus 14/15 anos os que encontrei nas Selecções do Reader's Digest (edição brasileira) dos tempos da Segunda Guerra Mundial e que estavam na biblioteca de meu padrinho. Eram extractos de obras da literatura universal, tanto ali se encontravam trechos de Vítor Hugo como de Garrett, de Victor Heiser como de Henry Morton Stanley, etc.

  Isto em primeiro lugar. Seguidamente, pedaços da monumental obra de Alves Morgado “História da Criação dos Mundos”. Depois e finalmente, reflexões de “Ofício de viver” e alguns poemas singulares de “Trabalhar cansa” de Cesare Pavese, em paralelo com o extraordinário trecho sobre a génese da criação poética inserida a dada altura no rilkeano “Os cadernos de Malte Laurids Brigge”.


Oxygen, The ocean

 



quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Para um minuto de meditação - 59

 

A vida não é um problema a ser resolvido, mas uma realidade a ser experimentada.

                                                                                          Soren Kierkegaard


Um poema de Philippe Denis

 

A JACQUES DUPIN

 

 

      1.   Sobre a vidraça coberta de névoa, quantas vezes

é preciso escrever a ausência?

 

Página sulcada de mãos.

 

Andorinha – de salto em salto – contigo

regresso   até à nascente.

 

Debaixo do arco convexo da ramaria

na planura, o riso dum camponês

antecipa a rudeza da subida.

 

Com eles me cruzo, na volta dos caminhos.

 

Minúsculos contactos que me dão

a sua silhueta.

 

O país mudou de língua, por estas veredas

quando às quintas se chega, um cão ladra

e disso me dou conta.

 

Palpitam as folhas duma planta – a ligeireza

de tudo o que a enquadra.

 

Zumbidos. Toda a noite. Insecto morto, afogado

no algodão da manhã.

 

Caminho que nos leva a esta trémula casa.

 

 

     2.  O vento sopra até junto desta palavra que as minhas

mãos mais não fazem que torcer para que delas saia

a inesperada frescura.

 

Planta abundante nos livros dos ervanários. E tudo

exulta sob o manto das árvores, entre a folhagem

pleno de inocência.

 

Doce piedade transbordante. Piedade

da outra metade do céu.

 

Purpúreo, nos dosséis silenciosos, o diálogo

das flores entre si.

 

            Vibrantes, estes nadas – que tudo tocam.

 

                                                                             in Éclogas (Eclogues)

 

Tradução de ns



 (Paris, 1950. A obra completa deste autor tem a chancela da Mercure de France. Viveu em Portugal e foi professor de língua e literatura francesas na universidade coimbrã).


Recordando...

 

   Fez há um par de dias um ano sobre o falecimento deste nosso confrade - poeta, cronista, viageiro, ensaísta e homem da rádio, além de cidadão interventivo.

  Aqui o recordamos e à sua postura de pessoa sempre cordial e participativa.






Nuno Rebocho – Um convivente goliardo moderno

 

   “Muitos são os benefícios de viajar: a frescura que nos traz ao espírito, ver e ouvir coisas maravilhosas, a delícia de contemplar novos lugares, o encontro com novos amigos e o aprender finas maneiras”

                                                                          Muslih-din-Saadi, poeta persa

 

1.

   Dizia Samuel Clemens (Mark Twain), também ele viajante e cronista devido a decisão própria e, durante algum tempo, viageiro por profissão, que viajar era passear um sonho.

   E acrescentou que a escrita que daí resulta passa a ser o sonho transfigurado, com o seu território de realidades e de quimeras, de minutos que se abriram para novas visões e novos pensamentos e doravante perduram como relatos que nos ensinam e nos maravilham.

   Andar pelo mundo e pela vida e escrever sobre isso – pessoas, coisas, sucessos da mais diversa ordem – não é fácil tarefa, é preciso manter simultaneamente a inocência (temperada por alguma malícia), a perspicácia e um enorme sangue-frio, pois sem aviso as recordações apoderam-se de nós e como que nos obrigam a passar para outra realidade, em geral extremamente sedutora mas que nos enfeitiça com inexactidões involuntárias, filhas do nosso mistério pessoal. Por isso Benjamin Disraeli dizia avisadamente que “vi mais coisas do que as que recordo e recordo mais coisas do que as que vi”. Todavia, a grande solução consiste sempre em entrarmos generosamente na viagem, sem temermos a multiplicação de experiências, até mesmo de acasos, pois sabe-se que no final a escrita e seus interiores meandros – se dispomos da adequada dose de sensatez criadora – acabam por depurar, resolver e transfigurar aquilo que se viu, se sentiu e se viveu, como que por uma brusca mutação que vem não se sabe muito bem donde.

   E depois há a memória que se convoca nos grandes momentos de fecunda solidão, de fulgurante isolamento criativo em que somos simultaneamente objecto e sujeito porque é por nós que passa a organização do que significam realmente as lembranças, do que foram efectivamente os perfis das gentes que nos rodearam, os tempos reencontrados em que revivemos uma conversa, um ritmo vital, um passeio, em que de repente ressuscitam perplexidades e encantamentos, fragmentos de tempo em que a nostalgia nos visitou sem que nos pudéssemos esquivar e que logo a seguir assumimos peremptoriamente como um dos nossos maiores bens.

   A isto, creio, chama-se compreender. Porque por detrás de toda a alegria difusa transportada numa evocação, ou em todo o pequeno tremor que nos assalta ao termos a sensação de que qualquer coisa nos abandonou, há sempre um rosto ou a ideia de que por ali paira algo de humanizado e aonde se chegou através de um olhar mais exacto, mais treinado pelos mundos onde se esteve por destino e pelos universos que as deambulações nos propiciaram.

 

2.

   Já se sabe que a arte da crónica não é nem nunca foi uma arte menor ou muito menos mero preâmbulo para qualquer coisa de maior envergadura. Trata-se, com efeito, de um corpo inteiro que se joga ali mesmo, nesse continente de luzes e sombras onde crescem deuses e demónios inteiramente nascidos da realidade que se forja com os factos arrolados e sua representação palpável. Ou seja, uma poesia muito própria e sem sujeições a outras escritas aparentemente de maior porte no arsenal do autor.

   Cronista e ser convivente, o viajeiro de “Estravagários” – estas crónicas belamente poéticas sobre o Alentejo real que os sonhos perduráveis do autor encenaram – tem parentes perfeitamente reconhecíveis, ainda que seja seu e muito próprio o estilo que arrola entre o alinhavo jornalístico e o desalinhavo livresco. São os amantes dos prazeres do espírito – e dos outros que gostosamente passam pelo corpo e a que alguns, com certa dose de leviandade, apelidam de transitórios ou baixamente materiais. Em todas as evocações de NR se sente perpassar uma clara alegria de viver, ainda que cifrada por alguma melancolia; donde o gosto pela boa mesa, por exemplo, não se ausenta nunca – e repare-se que aquela expressão vai no sentido lato. O espírito do lugar, que é o das pessoas que o habitam, é bem palpável com todo o seu manancial de coisas essenciais que vivem intensamente se tivermos olhos para cheirar, ouvidos para ver e alma para saborear. Nas crónicas de Nuno Rebocho, colega evidente de Goldoni, Hazlitt, Cela ou Saroyan, sente-se que as pessoas que recorda e os acontecimentos a que dá relevo não estão ali como pretextos fantasmais para umas tantas laudas literatas, mas para habitarem o quotidiano deste seduzido sedutor. Caldeados pelo pormenor argutamente observado, pelo trecho recortado com ironia, pela frase incisiva e mediada quantas vezes por uma indisfarçável comoção, cobram vida relatos donde pode extrair-se um perfume de passados finalmente refigurados e limpos da escória que o tempo lhes fez adquirir, de coisas e de momentos que se vão esquecendo e de outros que, embora existindo ainda na hora que passa, irão ser pasto para esquecimentos futuros.

   Com estas crónicas, onde freme um tom pessoal e que possuem aquele sabor coloquial que a profissão do autor certifica e esclarece, mediante a maneira peculiar onde se desenha a sua aposta e o nosso privilégio Nuno Rebocho presta inquestionável serviço à nossa convivencialidade humana e cultural, à nossa memória específica de povo e ao nosso aprumo de pessoas que querem lembrar o melhor e o mais alto.

 

                                                                                                       ns


Georges Brassens, Les copains d'abord

 



segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Para um minuto de meditação - 58

 

   O Antigo Testamento é um compêndio de crimes contra a humanidade. É um resumo de genocídio, extermínio, feminicídio, infanticídio, e tudo com agravante de crueldade gratuita promulgados sob base étnica. A Bíblia não é um livro sagrado e não fala de Deus. Quem afirma tudo isso é Mauro Biglino, estudioso da história das religiões. Trabalhou como tradutor do Antigo Testamento para Edizioni San Paolo (Itália). Seu contrato de trabalho se encerra assim que sua carreira de escritor teve início pois revela descobertas surpreendentes, feitas em 30 anos de análise dos assim ditos Textos Sagrados, que desde sempre são mantidas às escondidas.

                                                                                             Jussara Matana


Cristino Cortes, Três poemas


 VISÃO


Debaixo de chuva és o sol, ele te aquece

Te alegra, e uma luz tu irradias;
Tu transfiguras o cinzento destes dias
E a sua razão, por tão natural, te esquece.

De todo imune às circunstâncias exteriores
Essa luz nasce em ti, alumia, está dentro
Não é reflectida. És tu própria o centro
Do júbilo suplantando todos os favores…

Debaixo de chuva, sim, sem te aperceberes
Tu transportas, inteiro o sol, brilha, só
Aparentemente encoberto. Qual a mó
Que ao moinho não pergunta seus funcionares

Nada, bem o sei, te espanta ou arrefece.
Por entre a chuva espelhas o sol. E aqueces.

 

                                              *

SONETO CAMONIANO

 

Mudam-se os tempos mudam-se as vontades
Permanecem os problemas e as confusões
- Jamais um homem se perdeu nas multidões
O vão propósito jamais ergueu uma cidade!

 

Todos os meses há chatices coisas certas
Para um dinheiro visivelmente minguante;
Desculpem-me o facto comezinho e rastejante
Possa Camões perdoar estas musas e suas ofertas!

 

Mas é este um canto nobre e digno, e até ver
Também aqui a pressão do concreto queima a asa
De quem teve um grande sonho mas ficou em casa

- Não se perdeu, ainda não, o hábito de comer!


Mudam-se os tempos e às vezes as vontades mudam
Só o homem permanece – e as questões que o animam.

 

                                              *

VER CHOVER

 

Como é bom, oh meus amigos, aqui, deste lado de dentro
Simplesmente ver chover! É uma paz na alma, riqueza
Assim regular e certinha, na vertical, beleza
Da água tudo abençoando, do Norte ao Sul e ao Centro!

Também nas Ilhas, diz-se. É pois bem geral este espectáculo
Com a natureza alguém por inteiro se deleitar!
No meu caso é o azado pretexto para me esquivar
A outras obrigações, louvado seja o líquido obstáculo!

E vejo chover, oh meus amigos, simplesmente chover
Pelas persianas abertas, a vidraça enfim lavada;
Vejo chover na mesma alegria com que a neve é recordada
__ Alma de camponês que no fundo jamais deixei de ter…

Chova pois, esta água é vida, não é de mais, vazias
Talvez as albufeiras, cheios e molhados estes dias.

 


Nicolau Saião, Em tempo de coronavírus: Para desmascarar o vírus da beatice

 


ns



  Há, na verdade, muitos vírus que durante demasiado tempo têm prejudicado a humanidade.   

  Um deles é o vírus das burlas que, incrementadas por instituições “religiosas” e seus áulicos, manipulam o ser humano no sentido de o controlarem e se servirem dele como objecto do seu poder discricionário e totalitário, abusando sem ética da sua boa-vontade e da sua inocência ante os conceitos mais profundos que espiritualmente lhe são próprios.

  Em 2010, o especialista em hebraico e grego Doutor Mauro Biglino - depois de durante algumas décadas ter traduzido para as Edições São Paulo diversos textos a partir do original hebraico - deu-se conta de que algo não batia certo: as Bíblias que temos em casa, mediante traduções orientadas e organizadas de forma capciosa pela teologia, muitas vezes através de interpolações falsas e posteriores, estabeleciam um relato ora insensato ora tendencioso visando encenar sobre o chamado Cânone uma historieta tendo como figura central uma personagem alcandorada em deus do qual, a partir daí, surgiria como consequência uma religião – primeiro com o paulinismo e depois com o constantinismo – que se constituiria como o sujeito e o âmago do mundo ocidental e, seguidamente, tentou e ainda tenta dominar o universo, espalhando-se (por vezes mediante violência) pelos outros continentes e civilizações.

   Mauro Biglino, num acto vincadamente demopédico, correndo os riscos de ser caluniado, difamado e até ameaçado na sua existência pelos próceres vaticanistas e derivados, iniciou um trabalho de base que consiste apenas nisto: ler e dar a ler o conjunto de livros, denominados Bíblia, na sua integridade e realidade conceptual, sem as fantasias que os teólogos, a princípio com ingenuidade convenhamos, mas seguidamente com impostura e autoritarismo astucioso, têm cinicamente proposto à Humanidade.

  Claro que, a partir daquela data, o Autor de diversos livros iluminantes (“A Bíblia não é um livro sagrado”, “A Bíblia não fala de Deus”, “O falso Testamento”…), não mais pôde publicar qualquer trabalho na Editora São Paolo. Mais: ainda que atacado ferozmente pelos beatos e outros burlões fideístas - e dado que hoje já não é viável a Inquisição oficial, pois vive-se em democracia e as suas constituições não impõem o imperativo papal, antes defendem a liberdade de expressão e opinião – Mauro Biglino tem efectuado conferências sucessivas em diferentes partes do mundo, nas quais com respeito e tranquilidade – apanágio dos espíritos éticos e superiores – tem dado nota das suas constatações e descobertas. Não defendendo, sublinhemo-lo, nenhuma tese – mas “limitando-se” à leitura sem efabulações fantasistas e mentirosas do que naquela originalmente está posto.

   O que basta, é o suficiente, para desvelar a impostura secular.

   O vídeo que aqui se deixa, com o abraço a todas as sãs consciências dos confrades, conta com a tradução das legendas da publicista brasileira Jussara Matana e tem estado patente no Youtube, bem assim como diversas outras conferências e entrevistas do estudioso italiano, que vos suscitamos a ver.

                                                                                                                 ns


Mauro Biglino, A Bíblia não é um livro sagrado

 



quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

Para um minuto de meditação - 57

 

    A História de ontem elucida-nos sobre factos de hoje: Jerónimo é um filho espiritual de Robespierre, Sócrates de Talleyrand assim como Costa o é de Fouché. Com uma pequena diferença apenas: enquanto Robespierre, Talleyrand e Fouché eram “filhos do século”, Jerónimo, Costa e Sócrates são filhos do regime, deste regime luso.

    Mais: nem Jerónimo, Sócrates ou Costa poderiam surgir num outro país ocidental; são produto retintamente lusitano, com a sua sede de totalitarismo, aumento de numerário e desejo infrene de poder. São o sinal claro da ausência de democraticidade, de falência moral, são o símbolo de uma nação onde a perfídia rasteira, o aventureirismo político e a manha ocuparam o quotidiano do activismo e da governação.

                                                                                   José Bernardo da Gama


Um poema de José Carlos Costa Marques

 

Trovoada

 

Baixaram já as águas das primeiras tempestades

de outono, refluíram para o vale e nos deixaram

gravetos, terras desmoronadas, latas e desperdícios

que não conseguimos identificar; o sol dispersa

nuvens de chumbo e enxuga o que resta das chuvas

repentinas; e, entre os destroços, enquanto distraídas

crianças brincam sem que a paz lhe perturbem,

jaz o cadáver de um verde translúcido contra o cimento

de uma pequena rã, seis centímetros longitudinais

há pouco ainda vivos, na perfeita simetria da posição natatória,

pernas flectidas como as nossas se flectem,

inteiro ainda e incorrupto o corpo diminuto e espalmado,

na harmonia de quem pelo charco avança naquele preciso

instante em que o impulso vai, de um salto, levá-la mais à frente.

E o verde translúcido por entre dois ou três matizes desiguais

ali permanece, naquele instante em que a vida já não está

e a podridão não começou, e no entanto se anuncia,

duas ou três formigas afadigadas exploram já as cercanias

e os exércitos numerosos não tardarão a surgir,

em hordas disciplinadas, na sua misericordiosa tarefa de limpeza.

E nós, sobre o cimento, quando as crianças, desatentas,

intensamente se concentram na sua conversa a fingir,

tão verdadeira, nós inclinamo-nos, e uma última

lembrança dedicamos àquele momento vivo de tão verde,

tão igual ao nosso momento breve, e em quem ninguém mais pensou.


Aos confrades, amigos, adeptos e simpatizantes

     Devido a um problema informático de última hora, não nos será possível fazer a postagem desta semana.    Esperando resolvê-lo em breve,...