“O que me preocupa não é o grito
dos maus, mas o silêncio dos bons”
Martin Luther King
Ele chama-lhes bons. Mas não deveria antes chamar-lhes
egoístas ou cobardes?
Bernardo Cristino
“O que me preocupa não é o grito
dos maus, mas o silêncio dos bons”
Martin Luther King
Ele chama-lhes bons. Mas não deveria antes chamar-lhes
egoístas ou cobardes?
Bernardo Cristino
Pinto da Costa revela conversa com ministro da Educação,
deixa conselho a Costa
e
fala em "atestado de mediocridade ao povo português"
“Perguntei ao senhor ministro ontem se ele
compreendia como é que um jogo decisivo do basquetebol não podia ter ninguém a
assistir e ontem e anteontem, no Pavilhão Rosa Mota que é um recinto fechado,
estiveram 2.500 pessoas aglomeradas, a maioria sem máscara, a ver um
espectáculo de música. Ele não me soube responder (…).
Líder portista voltou a deixar duras
críticas aos critérios dos espectáculos, revelou conversa com Brandão
Rodrigues, visou DGS e acabou a pedir um Humberto Delgado para acabar com a
"pouca vergonha".
(Dos
jornais)
Portugal
prostitui-se, vende-se, é um atraso de vida. Já nem vou constatar o óbvio sobre
o empobrecimento dos governos de esquerda, mas estes nem honra, nem dignidade
nem brio nos dão.
É verdadeiramente vergonhoso Portugal ser governado por esta gente inqualificada, miserável, populista. Mas a culpa é de quem os põe lá, os encostados da vida. Triste sina esta. Que país que nos tornámos.
Zé
Albano
Não posso estar mais de
acordo com Pinto da Costa. Este país é uma oligarquia sem vergonha.
Zé
Pituba
O MUNDO ILUSTRADO
Assim como a tua janela que não existe
Como uma sombra de mão num instrumento
fantasma
Assim como as veias e o fluxo intenso do teu
sangue
Com a mesma igualdade com a preciosa
continuidade que
A tua existência idealmente me garante
À distância
A distância
Apesar da distância
Com a tua testa e o teu rosto
E toda a tua presença sem fechar os olhos
E a paisagem que brota da tua presença
quando a cidade
Não é nada além do reflexo inútil da tua
presença de hecatombe
Para melhor molhar as penas dos pássaros
Essa chuva cai de muito alto
E isso prende-me sozinho dentro de ti
Dentro e longe de ti
Como um caminho que se perde num outro
continente.
(Tradução de ns)
A ironia em José Régio
Ao lermos Dickens, é preciso ter-se um coração bem duro para não
desatarmos a rir quando ele descreve a morte da pequena Nell.
Oscar Wilde
- Folgo muito em ver-vos de boa saúde - disse o barão com uma vénia
irrepreensível. - E vosso excelente pai...continua bem morto, não é verdade?
- Há mais de que rir, senhor! - cuspiu entredentes, levando a mão ao
punho da espada.
Amedée Achard
Era um
homem tão inteligente que já não servia para nada.
Lichtenberg
A ironia, que segundo algumas boas opiniões é prima do humor negro -
ainda que, decerto, não prima carnal - e irmã colaça do riso sardónico (embora
apenas por portas-travessas), sendo de igual modo vizinha da tragédia e, nos
casos extremos, parente especialíssima do ridículo, funciona um pouco à guisa
da famosa estalagem espanhola das novelas: só se come o que para lá se leva. E
a ironia involuntária, que outros nos garantem ser uma espécie em vias de
extinção, também é significativa, dando de barato que tem ao que parece muito a
ver com o Destino que comanda a rota dos homens e o drama das sociedades. Neste
especialíssimo caso, conviria então confrontá-la com a sua própria imagem, como
num espelho em que as figuras, a figura, aparecesse invertida, com um brilho
dramático nos olhos arregalados. Porque o irónico ponto que subjaz à ironia tem
muito a ver com a frase terrível de António Maria Lisboa, que reza: “Todo o
acto premeditado ou leviano tem a sua guilhotina própria”. Ou, para seguirmos
Lautréamont: “Ride, mas chorai ao mesmo tempo. Se não puderdes chorar pelos
olhos, chorai pela boca. Se ainda assim fôr impossível, urinai. Mas advirto-vos
de que um líquido qualquer é aqui necessário”.
Tal como já se disse do romancista, o
indivíduo que utiliza com maior ou menor propriedade a ironia, mesmo amarga,
bem vistas as coisas é alguém para o qual nem tudo está definitivamente
perdido. Acreditado o seu poder apelativo, no fundo ela funciona no interior do
Sistema e dos diversos sistemas em que este se revela. E tem a sua própria
operacionalidade: sublinha ou salienta, por excesso ou por absurdo, uma
situação limite. A não ser assim tratar-se-ia de simples desabafo. Ou, pior
ainda, não passaria de mera piada menos ou mais grosseira e, se calhar, nem
sequer muito perspicaz. O ironista, mesmo não sistemático, afinal de contas
sente sempre que do outro lado está alguém, alguma coisa individual ou colectiva,
embora de porte dúbio ou mesmo francamente duplo. O que não deixa de ser um
pouco contraditório. Na verdade, esse ser e essa coisa possuirá simultaneamente
uma dada deficiência de visão interior ou de entrosamento e, ao mesmo tempo, a
faculdade de sentir a singularidade da proposta mais ou menos inspirada, mais
ou menos cruel. Para depois - indo ao encontro do desejo impresso do seu
interlocutor - se morigerar, tendo assim definitivo acesso às moradas em que
oficiam os inteligentes e os deuses, com suas diversas encarnações civis. Mas
será mesmo assim, sempre assim? Tenho para mim que não. Afinal, a ironia tem
como alvo e como destinatário não só pessoas ou instituições mas também ou
sobretudo situações, sucessos, imanências. Falemos claro: na verdade, o alvo
último da ironia vem sempre a ser a circunstância final e primeira que dá
origem aos números e às coisas. E que o ironista, evidentemente, entende que
pelo menos se distraíu dos seus deveres de competência. Por isso é que os
mantenedores das religiões reveladas (ainda que laicas ou agindo no século),
muito sensatamente lá na sua deles opinião ou concepção, têm visto sempre a
ironia como ataque mais ou menos velado à divindade e seus sacrais prestígios.
No que lhes diz parte, de seu natural não se revestem eles sempre duma solene,
majestática presença? O próprio mestre das trevas não a aprecia - ainda que o
faça, digamos, por razões de “racionalidade
operacional” do seu múnus peculiar: naquelas paragens, de acordo com a
visão canónica, é-se mais partidário do sarcasmo gélido, da chocarrice
desgarradora, que afirma evidentemente a falta de razão atribuída às obras do
Arquitecto. Por outro lado, no sujeito que ironiza há igualmente com
frequência, também, um céptico que vive paredes-meias, em conflito ou
desassossego, com um moralista. Mas moralista de tipo especial: um operador a
meio caminho entre o cínico e o afectivo melancólico. E é por isso que a ironia
é na maioria dos casos como que meia-defesa, tanto mais que traz frequentemente - diria antes: presume sempre - implícita uma certa
nostalgia, um certo desgosto de viver, por vezes uma evidente mágoa. Se o riso
(até o riso amarelo) é próprio do homem, o auto-conhecimento e o poderoso
conhecimento dos outros é mais coisa de deuses, não sendo pacífico imaginar
Dionísio ou Ahura-Mazda dirigindo frases irónicas aos seus companheiros de
imortalidade, ou sequer a comunicar-se com o homem mediante finas ironias. A
voz dos deuses, se para aí estão virados, fala-nos com as inflexões da
seriedade, da tragédia ou da absoluta iluminação. Da potestade para a criatura,
na carne e no sangue - que como referiu ironicamente Woody Allen é a melhor coisinha que um tipo pode trazer
dentro das veias - não se funciona senão na base de uma extrema gravidade,
que não admite cenários propostos pela nossa pobre e mortal insuficiência.
Neste plano, sabe-se como a Sociedade britânica (que era o deus ex-machina da
época) agiu para com Wilde, que durante anos a crivou resolutamente de ironias
divertidas e certeiras sem contudo se colocar fora dela. Porque o ironista, que
por razões intrínsecas não se apercebe ou não quer verdadeiramente aperceber-se
de que a salubridade (não falo em eficácia) implica de facto a prática do humor negro, o qual constitui
efectivamente a única real defesa contra o opróbio e o negrume, é no fundo um
homem de sistema, porquanto a ironia implica
mesmo a assumpção do Sistema. Ele conhece bem quais as armas temíveis que
se acumulam a seu lado: vê-as crescer, sente-as desenvolverem-se e
propagarem-se, assiste com inquietação ao seu império - que é evidenciado em
palavras e acontecimentos, em circuitos e corporações. Ele mesmo se nota
frequentemente um pouco fraco, um pouco imbele, um pouco febril, sem as armas miraculosas de que qualquer
indivíduo consciente sonharia dispôr para atacar com alguma hipótese de êxito
os monstros sociais ou individuais que se agitam em torno. Então, percebe que
urge fazer qualquer coisa de forte e de agudo que ilumine o descampado, que
erga os corações: é pois assim que, por decisão própria, se chega à ironia,
essa inteligência um pouco pérfida, um pouco tímida, um pouco dissimulada que
já alguém um dia disse ser a capa e
espada dos magoados e dos indecisos e dos que habitam um calvário
particular.
A ironia - severa, argumentada, fina, magoada ou sibilina - tem por
missão específica funcionar como um filtro que purga dos maus humores e dos
fluidos mefíticos a mediana racionalidade que nos deve mover. É um bom remédio
contra essas poções maléficas ou duvidosas que nos maculam e nos turvam o
quotidiano arguto e salutar que entendemos merecer, para certeira e livremente
caminharmos e falarmos. É por isso que o discurso
irónico, para verdadeiramente existir, tem de se fazer no interior do
circuito comum. É, portanto, sempre social e nunca associal. O que, todavia,
não constitui explicação determinante para o Poder nem mesmo lhe interessa
muito (a não ser para proibir ou suspeitar), uma vez que este não se move no
domínio das exigências éticas mas sim no terreno ervoso da guerra surda às
virtualidades mais altas do ser humano.
Mas a mais bela ironia, a mais nobre e talvez a mais legítima, a que sem
qualquer sobranceria nos fala sempre do fundo dos tempos, é a que no fim, ou ao
fim e ao cabo, ironicamente e quase
sem se sentir ou saber, envolve a obra ou se projecta do seu todo, desse
produto voluntário ou involuntário de uma vida, já definitivo e com a perfeição
do que acabou para sempre e para a eternidade. É, com efeito, o dia final de
Giacomo Casanova, esse grande ironista vital, recordando com amargura e
enlevamento a sua infância nas ruas da Sereníssima.
É Wilde, adiposo e devastado, sentado num banco de jardim em Paris, olhando
melancolicamente ao entardecer - enquanto ia distribuindo miolos de pão pela
passarada - os transeuntes que decerto o desconheciam, que possivelmente o
ignoravam ou quando muito lhe estimariam o seu enorme talento de interrogador
do fantástico.
E é Régio, que nos confia num dos seus últimos poemas publicados em livro que “o homem só quer abrir./ Chegou por fim a saber/ que venha lá quem vier/ seja quem for/ só um dos dois pode ser/ desde que não a fingir:/ A morte, o amor.”
***
Um dos textos em que mais intensamente se sente a ironia regiana é a
novela supracitada (“Davam grandes passeios aos domingos”. Através de
uma curta análise, não exaustiva mas apenas indicativa das linhas principais, é
possível perceber de que tipo de elementos se forma a sua estrutura, uma vez
que o discurso irónico - como acima acentuámos - não se realiza de uma só
maneira, não assume uma única possível efectivação. É claro que a ironia de Eça
é bem diversa, por exemplo, da de Jacques Tombelle, a de Raymond Chandler pouco
tem a ver com a de Gide.
De forma um pouco matreira - que a ironia serve-se quando é preciso dum
certo ar jesuítico para melhor chegar
ao seu alvo - a arguta escrita regiana enquanto convive com a tragédia de Rosa
Maria e seus pares de jornada retrata de igual modo a cidade provinciana e
cruel, beata e intempestiva, acanalhada nos seus próceres e nos seus propósitos,
no seu quotidiano aparentemente rural e sereno mas, na verdade, brutal e
impiedoso. Dizia Brassens que “les plus grands cons sont les petits cons”
e tal certeira asserção vale inteiramente para as cidades. Mas a maior (mais
dolorosa?) ironia, que vai para além do que se escreveu - tal como se dá na
literatura queirosiana - é a circunstância da cidade em apreço, mau grado a
passagem do tempo e dos ritmos com suposta tintagem democrática, continuar
fechada, mazomba, encordoada em vivências e em gentes como quando Régio nela
residiu e a descreveu. Ainda ali existem os ultramontanos aproveitadores e
hipócritas, os politicões de baixo perfil, as famílias senhoris e de bom porte
(ainda que um pouco ratado pelo dente hostil da vilanagem); ainda há as damas
manteúdas, as mediocridades impantes, um sistema de castas arrivistas ou
sedimentadas encrustado num Alentejo deflaccionado e de escassas honras onde o
discurso provinciano segue sendo inculto e pretensioso, tratante e de baixo
estofo. Rosa Maria pode continuar a sonhar, que muito poucos repararão. Pode
nostalgicamente continuar a esperar que um dia, com um garotito pela mão,
passeará para os lados do Bonfim, para os lados dos Assentos, pela estrada que
vai até à Senhora da Penha. Portalegre, sem dúvida, ainda vai tendo belos
passeios para serem dados, uma vez que tudo segue quase igual ao de
antigamente: a estação dos comboios ainda é a uma dúzia de quilómetros e a
própria frequência de passagem daqueles permanece - por obra e graça da tutela
- escassa e pouco serviçal. Todavia, os “Chicos Paleiros” já não se apinocam no
cavalicoque. Agora usam o carro de média marca e o jipão dado pela munificência
dos subsídios europeus.
Vejamos como Régio, de um só golpe, define com eficiência algo discreta o
tipo de hipocrisia vigente: “Em Portalegre, pelo Carnaval, estavam muito em
moda tais assaltos. Consistiam no seguinte: um alegre rancho de indivíduos de
ambos os sexos (e várias idades, por ter cada uma o seu papel) marcava certa
noite para mais ou menos se mascarar, se dispor a dançar, a jogar o Carnaval, a
comer, a beber. Nestas amáveis disposições irrompia portas a dentro de
determinada família, exigindo-lhe a realização de tais intentos. Claro que a
família assaltada era secretamente prevenida, o que permitia evitarem-se
desagradáveis surpresas. Entrava no jogo fingindo nada saber; mas encomendava
música, preparava uma ou duas salas, fornecia-se de comes-e-bebes de toda a
espécie”. Esta passagem define uma situação que é esclarecida pelo que lá
não está dito mas nós conhecemos: a circunstância de, para uma certa gente
turiferária e inconsciente (o que aliás a novela sublinha com elegância), a
vida não passar de um jogo algo pacóvio, natural nessa medida, sinistramente
lógico. Ironicamente, essa gente de quem Régio nunca se viu realmente livre
enquanto viveu em Portalegre, essas presenças espúrias que tantas vezes lhe
estorvaram o quotidiano. Valia-lhe, felizmente, a frequentação de outras gentes
mais claras e mais sabedoras. Régio, no entanto, que como ele mesmo admite aqui
e ali nunca deixou de ser um provincial (que não um provinciano), lança àqueles
um olhar reprovador mas não adusto - o que é característica da ironia
não-socrática praticada por autores ocidentais e cristãos e com certa lhaneza
de comportamento.
E no final da novela, naquela tirada desgarradora que é das mais
comoventes da literatura portuguesa, a sua personagem principal vê claramente visto o buraco negro de um
futuro sem contemplações. Sem contemplações? Bem, não sejamos excessivos: “Desde que principiasse a devanear, Rosa
Maria aliviava. O seu terrível momento passara, por então. Só estava ainda um
pouco assustada por continuar sujeita àqueles acessos. Dominá-los-ia, porém.
Correu outra vez, devagarinho, a lingueta da chave; disse do corredor: - Já lá
vou, tia Alice. Vê como já passou? Estou perfeitamente boa.
E voltou dentro para chapejar os olhos com água”
***
Se “Davam grandes passeios aos
domingos” é a história dum drama, “Os alicerces da realidade” é a crónica duma
caminhada para a loucura, uma viagem no interior duma tragicomédia. Silvestre,
funcionário aposentado, ao passar um dia por um local da cidade - cenário
construído a partir das vivências deambulatórias e residenciais do A. - tem
“uma impressão estranha”. A partir daí o seu dia-a-dia transfigurar-se-á
paulatinamente, tornando Silvestre incapaz para o normalizado convívio com os
membros da sua comunidade. Neste conto, a meu gosto um dos melhores da produção
regiana, notam-se os mecanismos do discurso irónico como que num corte
transversal. Silvestre, julgado pelos padrões clínicos ou do senso comum pode
de facto ser um louco (inofensivo), mas deixa-se adivinhar que a verdadeira
loucura é bem outra. É, por exemplo, a loucura social, travestida de normal
normalidade, que torna inaptos os Silvestres deste mundo que, por muito loucos
que sejam, conseguem pelo menos ter a percepção doutros mundos, doutros espaços
e doutros tempos. “Ele, ao menos, sabe que sonha. Pela certeza com que o
sabe, também sabe que não pode, agora, tardar muito a acordar, - já tem
demorado um pouco. Para quê atormentar-se? Qualquer dia, acorda mesmo.”,
escreve-se no fim do conto, servindo este finale de Silvestre como comentário
aos confrades que, feridos por destino semelhante mas não igual, de repente
desencadeavam cenas chocantes, espojando-se no chão ou arrojando-se contra as
paredes, ouvindo-se verdadeiros urros como de torturados, acendendo-se brigas
violentas, de modo que era preciso empregar a força contra esses pobres
energúmenos.(sic).
O que torna este conto significativo e definidor duma característica
peculiar da ironia é que aqui e ali se salpica de trechos no género deste: ”A
verdade é que ao próprio Silvestre parecia agora que nunca as suas faculdades
intelectuais haviam dado tal rendimento. Como serei eu, seu obscuro biógrafo,
que o contradiga?”. Neste caso é o autor que por ironia da escrita fala
pela boca da criatura, melhor apetrechada para determinados entendimentos. E
que é o seu alter ego evidente, sua máquina de chilrear (parafraseando Klee),
sua temerosa e, no fundo, temida personificação. Régio, que para mim - que o
via passar nas ruas da cidade - sempre foi uma figura de pessoalíssimo recorte,
independentemente de tudo o resto era o que se usa chamar, com apreço, um tipo). Ele sabia bem que a ironia,
sem ser humor, tem como numa chapa em
negativo um determinado tipo de humor
e, emparelhada com este, uma certa tristeza, uma certa medida ou desmedida
angústia. “Houvera beija-mão às senhoras, entre os homens os cordiais
cumprimentos de indivíduos da mesma classe, ditos de espírito e, claro está, um
grande à-vontade elegante, no meio do qual se esforçara Silvestre por se
apagar, não vendo outra maneira de esconder as suas inibições. Aliás lhe não
fora difícil: os que iam chegando encaravam-no com um pequenino choque de
surpresa, que logo disfarçavam. Alguns, os mais novos, rapidissimamente o
analisavam dos pés à cabeça. As damas relanceavam-lhe um breve olhar, que
pareciam recolher. Apresentado ou não, Silvestre ficava de lado, via tudo isto,
procurava fingir que não estava presente(...)”, escreve a dado passo. E
medite-se um segundo no nome do seu herói, quase igual - e tendo o mesmo
significado - ao do protagonista (Silvério) de “Os paradoxos do bem”.
Ao mundo portalegrense das personalidades conspícuas, ao universo das
senhoras donas, dos senhores directores, dos senhores funcionários, senhores
com princípio meio e fim, opõe o escritor a figura inacabada, em construção ou
em declínio, dos silvestres, que viviam na religiosidade existencial de Régio
como frutos naturais duma vida mais densa e regenerada. Mesmo que através do
equívoco ou da loucura.
E quer-se, à puridade, concepção criativa mais irónica?
***
Em muitas mais páginas, em
muitas mais obras se poderia detectar o halo irónico. Cremos, todavia, que
epigrafámos suficientemente a estrutura e a conformação da ironia regiana. Não
é pois necessário que mais alongadamente - com redundância - a registemos em
poemas vários, no teatro e até na crítica. Régio, que era claramente um
espírito dramático, em certas ocasiões mesmo um temperamento trágico,
contrapontava-lhes um saudável sentido das realidades. Sem ironia o digo - realidades. Porque, como se compreende,
não é ao contemplar o trágico ou o dramático da existência que se sente o apelo
temível “da corda dos desesperados” - e sim ao meditar-se, a meu ver
extemporaneamente, na irrisão que alguns dizem ser a vida. Para Régio, como decerto
para muitos de nós, encarada com realismo verifica-se que ela possui um
envoltório de sagrado que destroça essa irrisão. Que lhe não pertence, que lhe
não é própria. Que efectivamente pertence, sim, às sociedades organizadas, que
a ironia - fina, sibilina ou violenta - bem sabe definir e situar.
“Queres dominar um povo, os cidadãos?
Tira-lhe primeiro a honra, faz deles bandalhos,
o
resto virá por acréscimo”.
Youri
Belaiev
Zuca Sardan
“A poesia só pretende cumprir uma tarefa:
que este mundo não seja habitável só
para os imbecis”.
Aldo
Pellegrini
A VIAGEM
Acabo de chegar,
Irmão,
E vim de longe.
Vi rostos
Inclinados sobre a terra
E o torpor do mundo
Num olhar.
Vi as pedras
Da estrada
Ensanguentadas
E o sol
Feito poeira
Sobre as pedras.
Vi a sombra
Da noite
A diluir-se
No frio da madrugada.
Agora
A Morte caminha atrás de mim,
Irmão,
E acabo de chegar.
FLUXO
O recolhimento, o
silêncio,
O relógio suspenso,
A desintegração do tumulto,
O clamor, a tortura,
O vento salgado,
As liláceas pisadas,
Onde e quando?
Na sala envidraçada,
Que a última luz roxa incendiava?
Ou nas ruas,
Perscrutando os olhos próximos,
Perdidos na sombra, hierática e surda,
Impondo a iniciação inevitável?
Iluminemos a noite,
O rumor imperceptível do tempo,
Criemos um desconhecido brilho
Para os gestos que um irmão
Executa por nós no vasto palco.
Inventemos, silenciosamente, a prece,
A grande prece, a prece ininterrupta
Ao Deus desaparecido
PRELÚDIO
A cidade acorda, atolada
de valas.
Penso num sinal, na manhã do mar,
Num gesto remoto,
E sobe da terra um clamor de limites:
Represas, sebes saqueadas,
Um pessegueiro morto,
E todas as nuvens caídas num charco.
Quem atravessou o gelo
E os mares
E o solo fendido
E escutou a gaivota
E andou sempre só,
Queimando o olhar, as veias cansadas,
Esteve serenamente sentado a um lado,
Mas não aprendi.
O sol violeta, a teia de
prata,
Luzes e vento abraçando a cidade,
O cais interminável, fronteira adiada,
O vento de novo, águas enlodadas,
Presságio da noite, o preço tão alto,
A pétala, o viço e depois a vala.
CHARLOT E OS JOGOS DO ESPELHO
Podemos questionar-nos: Charlot seria
Chaplin ao espelho? Pergunta talvez ociosa, mas que não deixa de ser
pertinente. Quase diria com humor: para ser Charlot, a Chaplin só lhe faltava o
bigodinho. Senão, vejamos: a vida de
Chaplin foi exemplar do ponto de vista de um ser humano que forcejava por se
enquadrar numa sociedade que sem cessar fazia esforços para o remeter, com o
clássico pontapé no traseiro das suas comédias, para lugares inabordáveis.
Recordemos, ao calhar, os episódios Lita Grey*, a tentativa de darem o nosso
homem como comunista por ter vendido bónus de guerra (Chaplin comunista é de
facto demasiado forte), a censura que lhe faziam em Inglaterra por ter
abandonado mais ou menos aquele rincão onde oficiavam os comediantes, esses sim
verdadeiros comediantes, no género de Lord Chipendale ou Neville Chamberlain…
Por isso é que hoje se nota sem precisarmos
de lupa – basta-nos a perspectiva do tempo, esse supremo crítico como lhe
chamou André Gide – que o riso de Charlot, mesmo o dos seus primeiros momentos
que a alguns distraídos pareceram simples vaudeville, é o que fica a qualquer
um depois de uma grande e pura tristeza. Pierre Hourcade, que um dia se forçou
a debruçar-se sobre os mecanismos do humor, como personagem grada que era e por
isso vagamente cómica (ia quase a dizer gravemente cómica) tinha dessa matéria
uma ideia que, com maldade, classificarei de “perspectiva de proprietário”.
Mais ou menos na altura em que Chaplin nos dava o seu “Monsieur Verdoux”,
referia aquele académico que o verdadeiro humor é sempre amável ou alegre,
ou seja dito de outro modo: excelente pitança para pessoas sérias e decentes
que gostam de amenizar os seus dias...
Bem melhor andou Wenceslau Fernandez Flores
ao referir que “O humorista é um descontente que se ri da Sociedade em vez
de a ferir” – o que remete Chaplin para o lugar que é efectivamente o seu:
um homem belamente encolerizado com os disparates do mundo, como diria
Chesterton, ao qual foi imposto, por inerência de talento (ou, se preferirem,
génio) um caminho traçado entre os pardieiros de Londres e, finalmente, as ruas
da imensa metrópole americana. E que ele soube transfigurar e tornar perene.
Ainda hoje se ri a bom rir durante a
projecção de ”Os ociosos”, de “A quimera do ouro”, de “As luzes da cidade”, de
“Tempos modernos”. Já não estou tão seguro que o mesmo suceda ao vermos “O
grande ditador”, ou “Um rei em Nova Iorque”, ou “Monsieur Verdoux”, ou “A
condessa de Hong-Kong”. Por esta razão muito simples: hoje sabemos à nossa
custa que as gargalhadas podem gelar na garganta e que, no fundo, o que Chaplin
encenava eram não comédias mas tragédias e que o riso só lá estava para
sublinhar uma evidência já posta em equação por Lautréamont: “Ride, mas
chorai ao mesmo tempo. Se não puderdes chorar pelos olhos, chorai pela boca ou
por qualquer outro lado. Sejam lágrimas, seja mijo, seja sangue, tanto faz. Mas
advirto que um líquido qualquer é aqui indispensável”.
Dizia Brassai, conversando com Malraux e
Picasso, que de cada vez que via nas actualidades Mussolini a discursar tinha a
impressão que por detrás lhe estava sempre alguém a dar pontapés no posterior.
Mas Mussolini era um patifório um pouco risível, apesar dos desmandos que
praticou na pátria de Leopardi. Quanto a Hitler o caso era diferente: sinistro
sem contemplações de picardia toscana, era de facto um canalha de alto coturno,
um verdadeiro criminoso e um ente que, com a sua simples aparição, espalhava a
inquietação à sua volta como nos conta Trevor Roper citado por Jean-Marie
Domenach. Será então de espantar que hoje nos apareça muito mais ridículo e
verdadeiramente objecto de maior riso ferino? Porque o que admira – o que assim
torna a regra mais sensível e com maior relevo – é como é que um patife daquele
calibre que de facto era não mais que um ser perturbado, pôde ser tido como
profeta e condutor de povos.
Porque, efectivamente, o riso profundo,
verdadeiro, que dói e liberta mesmo à custa de um arranco interior, tem sempre
como alvo o fundamental e nunca o acessório. Pois os ditadores, mesmo
disfarçados de gente quotidiana, são sempre um pouco como as figuras dos
baralhos de cartas: metade do corpo para cima e a outra metade para baixo, como
se estivessem cortados a meio por um espelho que os anos articulam
apropriadamente.
Chaplin e Charlot funcionavam noutra base,
estavam de corpo inteiro nesta história de imagens devolvidas por um vidro
encantado. Agiam noutro plano, que é o da realidade criada depois de se ter
atravessado o deserto da estupidez e da mediocridade habilmente forjada por um
quotidiano que se auto-designa como responsável e respeitável. À sua maneira
contundente, para além de tudo o mais, Chaplin demonstrou-nos e continua a
demonstrar-nos esta coisa pacífica e intuitiva: que o riso, tal como os raios
da manhã, são o mais eficaz elixir contra a monstruosidade codificada e que,
contra ele, os ditadores e os bandidos fardados ficam em petição de miséria –
até porque acabam por finalmente compreender que o riso é o verdadeiro
precursor daquilo que nas fitas vem efectivamente em sequência e que é a
finura de uma estaca plantada em pleno coração do fantasma.
Nota – Lita Grey, actriz vulgar mas
muito bela, foi casada com Chaplin. Instruída por sua mãe, mulher ávida e
cruel, apresentou queixa contra ele com o pretexto de que este quereria
praticar no leito conjugal actos eróticos que saíam do habitual – ou seja
fellatio, cunnilingus e sodomia – que em certos estados dos EUA são punidos com
pesadas penas de prisão. Entre pessoas casadas, repare-se, nomeadamente por
qualquer uma das diversas igrejas existentes e sem que haja violência ou
constrangimento moral pelo meio.
Esperava-se
que a liberdade de expressão estivesse mais consolidada em sociedades que se
dizem abertas. Não está. E a imprensa não é uma vítima da conjuntura: é algoz.
(Dos jornais)
“Controlemos as universidades, as
instituições sociais e a imprensa e daí dominaremos a sociedade”
Gramsci
NA
FOLHAGEM DOS SALGUEIROS
E
como poderíamos cantar
com
o pé estrangeiro no coração,
entre
os mortos abandonados nas praças
na
relva dura como gelo, para lamentar
do
cordeiro das crianças ao choro negro
da
mãe que foi para o filho
crucificado
no poste telegráfico.
Na
folhagem dos salgueiros, por nosso voto,
tínhamos
pendurado a nossa lira,
e
ela ao triste vento levemente balançou.
(Tradução ns)
ns, A escrita
A POESIA
1.
O que define a maior ou menor
qualidade de um texto literário?
A mensagem? A riqueza(?)linguística? A maior ou menor dificuldade da sua
compreensão?
Resposta de NS
Eu diria que
é um conjunto de condições da qual
afasto no entanto, à partida, a dificuldade maior ou menor da sua compreensão,
que colocarei sob outro enfoque. E isto porque a dificuldade de entendimento de
um texto literário pode até partir da maior ou menor inteligência ou preparação
do leitor…
Dizia Lichtenberg “Se
um macaco se mirar num espelho, nunca verá um apóstolo”
e a frase creio que tem todo o cabimento, como se entende.
Indo
agora ao cerne da questão, a chamada “mensagem” parte da riqueza linguística (melhor dizendo, da boa articulação da escrita – e é isso que configura a riqueza do
que se diz e não um eventual estilo rebuscado ou grandiloquente, digamos assim),
sendo o inverso também verdadeiro. Um texto de qualidade pode ser original ou
mesmo inusitado, mas não é nunca descabelado
ou pedante. Mais: o autor de
qualidade nunca busca ser original –
a originalidade é uma constituinte da sua escrita, simplesmente, parte dos olhares novos que ele soube abrir ou
suscitar. A qualidade é sempre uma resultante:
da forma e do conteúdo expressos, que fazem sentido e têm poder criativo e
criador.
2.
Duas situações:
Quem não entende António Aleixo?
Quem entende Camões?(LUSIADAS)
É claro que não vamos fazer comparações. Mas gostava que nos situasse no seu espaço
cada um destes exemplos.
NS - Só gente muito
primária poderá não entender António
Aleixo. Dito isto, há que referir que entender
tem dois níveis (pelo menos) de estruturação: o sentido imediato e o sentido profundo.
No primeiro parte-se da leitura corrida,
digamos desta maneira. O segundo já requisita percebermos o que o autor dizia,
queria de facto dizer, recorrendo a um simbolismo, a uma sugestão ou inflexão
apontando mesmo para o que nem necessita de ser expresso claramente. No
que se refere a Camôes, há o discurso global (celebração dos “heróis” portugueses),
na linha de outras celebrações mais antigas (gregas e romanas). A forma em que
está vasado, própria daquele tempo e
daquele espaço poético é que não será de fácil apreensão, dependendo mesmo da
preparação de cada um. Mais consensual, mais fácil de entender como usa
dizer-se, será a sua obra lírica, não epopaica, que a meu ver é inclusivamente a
sua mais alta realização. Independentemente da sua força discursiva,
principalmente em dados trechos, a olhares modernos Os Lusiadas já começa a aparecer-nos como um “tour de force” que perde claramente no cotejo com A Odisseia (para não falarmos noutros…),
dado o seu estrénuo esforço em pintar de epopeia uma incursão claramente histórica pouco entusiasmante dado o seu
cariz quotidiano-comercial…por muita retórica patrioteira que se lhe faça em
redor.
3.
O rimar deixou de
ser necessário para haver poesia
Como sabemos então que se trata de um poema?
NS - O rimar nunca foi
indispensável na poesia (como o não é o não rimar ou verso branco), correspondeu apenas a um estágio temporal bem
determinado. Saliente-se que em certas épocas chegou a assumir, até, foros de
obrigatoriedade por parte de alguns sectores “donos da cultura”. O que mostrava
não só o seu autoritarismo como a sua
própria falta de cultura. Dizendo de
modo explícito: faziam passar por poesia algo que não era mais que rimação (perdoe-se-me o eventual neologismo)
sem fulgor e sem valor, repisar monocórdico de conceitos ou de pseudo-moralismos
de baixa estirpe.
Dito isto,
realce-se que há por vezes poemas que, partindo da qualidade de escrita do
autor, que sabe manejar a rima de forma a ter sentidos de drama, de ironia ou
de graça simplesmente, têm nessa certa rima uma expressão adequadíssima – pois
está ali a sublinhar uma intenção, uma qualificação, uma sibilina inflexão que posta doutra forma não resultaria na atingida beleza do poema.
Um poema – e
um poema pode ser em prosa, como se
usa dizer – reconhece-se por ter nele uma imanência que atinge os mais
secretos, mais profundos e mais desconhecidos, por vezes, sentidos do ser. A
poesia é uma construção que toca as fontes da Humanidade e da existência comum e
do ser vivente, há algo na frase que ultrapassa a simples verdade da sua
estrutura para se projectar na realidade
interior das coisas.
Refira-se que
uma novela, um romance, um ensaio – que são obras em prosa – podem ter na sua
concretização uma imensa poesia e não
precisam de sair da sua estrutura (que é específica). Mais: se, neles, o autor
quisesse fazer poesia, ferindo a sua
especificidade, provavelmente faria era uma obra falhada e pretensiosa. (Há
exemplos de romancistas, novelistas, etc. que quiseram fazer romance/novela poéticos e só fizeram, afinal,
emolientes pessegadas…).
A poesia parte
da estrutura intrínseca que lhe
configura a permanência no tempo e no
espaço. Ser com ou sem rima já é uma sequência (ou uma consequência, se
quiserem…).
Mesmo
na noite mais triste/em tempo de servidão/há sempre alguém que resiste/há sempre alguém que
diz não.
Manuel Alegre
Aqueles
que abrem mão da liberdade essencial para adquirir um pouco de segurança
temporária, não merecem nem a liberdade nem a segurança.
Benjamin
Franklin
Estou
na «Pátria da Chuva» de Fernando Alves, entre Cardigos (Santarém) e Amoreira
(Castelo Branco), perto do pinhal e da ribeira, lugar onde não chega o eco da
vitória do Sporting Clube de Portugal no Campeonato de Futebol de 2020/2021.
Só
a Antena 1 por Nuno Matos faz vibrar o silêncio e o frio da noite; o dono da
casa atirou cinza para as brasas e não há Jeropiga da Beira ou Vinho do Porto
para celebrar.
Afinal
«os mortos empurram os vivos» (Herberto Helder) e a foto de 1928 tem a chave
das lágrimas em júbilo: Cipriano dos Santos (marinheiro), Jorge Vieira
(operário) e António Penafiel (marquês). É o carácter da Nobreza na nobreza de
carácter.
A ESCRAVA DE CÓRDOVA - Um Livro, seu Tempo e Lugar
ns
(Texto da apresentação, na Biblioteca Municipal Dr. Miguel Mota,
do romance de Alberto S. Santos)
Georges Duby, um dos mais notáveis
medievalistas do século XX, publicou em 1974 uma obra, hoje clássica,
intitulada O Ano Mil, na qual defende
que os chamados ‘terrores do ano mil’ são uma ficção literária, uma
lenda romântica produzida por autores oitocentistas. No entanto, se este
conhecido historiador dissipa esse mito e rejeita a existência de um sentimento
generalizado de pânico nas sociedades cristãs do final do primeiro milénio, não
deixa de conceder que, esse período, foi para os cristãos uma época de profundas
inquietações, de severas angústias e de grandes expectativas. É precisamente
neste período de ‘inquietação difusa’ para a Cristandade que decorre a
acção da obra de Alberto S. Santos A
Escrava de Córdova – mais precisamente, entre os anos de 976 e 1002.
A
delimitação do quadro temporal, no entanto, é por si só insuficiente para nos
permitir apreender plenamente as linhas estruturais sobre as quais assenta esta
obra. Há também que fazer referência ao quadro geográfico em que a intriga se
desenrola. E esse quadro é, quase na sua totalidade, o da Península Ibérica.
“Mãe de muitos povos», como se lhe
referiu Santo Isidoro de Sevilha no século VII da nossa era, terra fecundada ao
longo de milénios por diversas culturas que aqui floresceram, este território
sofreu, nos inícios do século VIII, as investidas da expansão religiosa,
política e militar do Islão.
Na verdade, o imparável avanço islâmico
também para o Norte de África traduziu-se, primeiro, na conquista do Egipto e,
depois, na submissão dos berberes pelos árabes de Musa ben Nusayr. A passagem
para este lado do estreito de Gibraltar fez-se facilmente, aproveitando as
rivalidades intestinas que se agudizavam no seio da monarquia
hispano-visigótica. E é assim que, a partir de 711, os invasores muçulmanos se
foram lançando à conquista deste território e, em batalhas sucessivas,
destruíram os quadros políticos, religiosos, administrativos e militares da
Hispânia visigótica, empurrando cada vez mais para norte aqueles que ainda
optavam pela resistência armada, confinando-os à zona das Astúrias, área onde
se constituiu um minúsculo reino cristão.
Os muçulmanos procuraram então ampliar as
suas conquistas na Europa, passando os Pirenéus. No entanto, foram derrotados
em duas batalhas decisivas: em Toulouse (721) pelo exército franco chefiado
pelo Duque da Aquitânia; e em Poitiers (732), pelas tropas lideradas por Carlos
Martel. A expansão muçulmana pela Europa cristã foi, assim, detida. No entanto,
no que à Península Ibérica diz respeito, a presença islâmica, enquanto
realidade política estruturada sobre um espaço territorial autónomo, far-se-ia
sentir durante séculos – o último reduto islâmico no território actualmente
português resistiu até 1249 (conquista do Algarve por D. Afonso III), tendo a
conquista de Granada pelos Reis Católicos, Fernando e Isabel, em 1492, marcado
o final da Reconquista cristã da Península.
Temos assim, portanto, que o enredo da
obra A Escrava de Córdova ocorre num
período de claro domínio islâmico sobre a maior parte do actual território
peninsular. Os reinos cristãos, se nesse final do século X já não estão
confinados aos montanhosos espaços asturianos, não ocupam, no seu conjunto,
mais do que um quarto do território peninsular. O grande reino da Península
Ibérica – e que ocupa as suas regiões mais férteis – é muçulmano e tem a sua
capital em Córdova. Foi chamado de ‘Al-Andaluz’
(atenção: não se trata do equivalente da actual Andaluzia espanhola…).
Por esta altura, Córdova é, muito
provavelmente, a maior cidade da Europa, destronando mesmo Constantinopla.
Segundo alguns autores, contaria, então, com cerca de cem mil habitantes
(outros, menos comedidos, referem que provavelmente rondaria o meio milhão).
Desde 756 e até 929, Córdova foi a capital de um Emirado, independente dos
Califas Abássidas de Bagdad. Nesse ano de 929 constitui-se, mesmo, um Califado,
elevando-se assim o território do Al-Andaluz à mesma dignidade dos poderes
então reinantes em Bagdad e em Tunes e com estes últimos competindo pelo
controle do Norte de África. Esta época do Califado (929 a 1031) é vista por
muitos autores como a ‘época de ouro’ do Al-Andaluz. A agricultura que aí se
praticava era a mais avançada da Europa, assentando a produção fundamentalmente
no trigo, na vinha e na oliveira (a chamada ‘tríade mediterrânica’).
Esta cidade de Córdova era ainda, sem sombra de qualquer dúvida, um centro
científico e cultural de primeira grandeza. Por exemplo, só na maior das suas
70 bibliotecas estavam depositados cerca de 600 mil livros, um número verdadeiramente
espantoso se tivermos em linha de conta que a maior biblioteca da cristandade
ocidental por esta altura não possuía mais de quatro centenas de trabalhos.
A partir de 976, o Al-Andaluz foi
governado pelo Califa Hisham II, que ainda criança sucedeu a seu pai, tendo, ao
longo do seu reinado, deixado bem patente a sua incapacidade governativa. Na
verdade, quem, de facto, passou a governar este território foi o seu hajib (condestável) Abu Amir Muhammad
ben Amir al-Maafíi, caudilho que, graças aos seus sistemáticos êxitos
militares, recebeu o epíteto de al-Mansur
(Almançor), ou seja, ‘O Vitorioso’. Venceu os exércitos cristãos em
mais de meia centena de devastadoras campanhas – chegou a arrasar Santiago de
Compostela e o mosteiro de San Millán de la Cogolla, locais com um profundo
simbolismo para o cristianismo peninsular. Na obra em apreço, este líder
cordovês desempenha, é claro, um papel relevante.
É nesta singular cidade, pois, que decorre
uma importante parte da obra de Alberto S. Santos. A personagem principal é
Ouroana, uma jovem da nobreza portucalense, filha do Governador do território
de Anégia, cuja sede se situava no actual concelho de Penafiel. Ao longo das
mais de quatrocentas páginas deste livro, escrito de forma fluida, segura e elegante,
acompanhamos as vicissitudes pelas quais vão passando esta jovem de cabelos
dourados e o lugar-tenente de seu pai, tanto no seu espaço cristão do norte
peninsular, quanto nas desconhecidas terras meridionais sob o domínio islâmico.
Estes são dois mundos em conflito e diametralmente opostos, tão discrepantes
que – e cito – parecem constituir ‘diferentes épocas de evolução da
humanidade’ – o primeiro, rude e eminentemente rural e senhorial; e o
segundo, requintado, administrativamente bem organizado, urbano e comercial (a
que acresce, como já referi, uma prática agrícola bastante desenvolvida e com
óptimos resultados). Os seus templos são disto um bom exemplo: só Córdova
contava então com cerca de 700 mesquitas, muitas delas imponentes e mesmo
opulentas, bem diferentes das pequenas e recatadas igrejas do norte cristão.
Este livro descreve, pois, algumas
jornadas com um marcado cunho épico. O leitor acompanha as extraordinárias
viagens de algumas personagens por territórios desconhecidos, com os consequentes
e inevitáveis percalços habituais em deambulações dessa natureza. Estas
personagens conhecem assim, pela sua própria experiência, aspectos de um mundo
até então desconhecido e misterioso. A apreensão empírica dessas realidades vai
obrigá-las a reequacionarem várias das suas crenças, suscitando-se, por via
desse combate interior, um estado de maior lucidez que lhes permite assimilar
melhor o mundo em que se movimentam, mas também, paralelamente, que lhes
possibilita compreender aquilo que efectivamente é importante na existência
humana.
Neste sentido, atrevo-me a defender que,
se esta obra é um excelente livro de aventuras, no sentido mais autêntico – e
portanto nobre – da expressão, ele apresenta igualmente, como atrás referi, o
despertar de várias consciências pessoais, pelo que, em conformidade, também
realça a existência de algumas verdadeiras viagens iniciáticas – não nos
esqueçamos que a Grande Tradição indica que ‘o oculto não é o que não se vê,
mas o que se não entende’.
Fica imediatamente claro ao leitor que,
para escrever este seu trabalho, Alberto S. Santos empreendeu um notável labor
de investigação. Não se pense, porém, que estamos em presença de um texto
cerrado e quase hermético para quem não dispuser de significativos conhecimentos
históricos. É que essa solidez documental não foi utilizada pelo autor para
produzir uma obra num estilo enfatuado e professoral, mas sim para elucidar
sobre aspectos históricos e culturais dos mundos cristão, judaico e muçulmano.
Estas explicações, constituindo uma das mais-valias deste livro, são
indispensáveis ao correcto desenvolvimento da sua intriga, com ela se
harmonizando. A componente descritiva desta obra incorpora, em conformidade,
uma vertente pedagógica assinalável: nas situações de batalha, por exemplo, a
tipologia do armamento, as tácticas utilizadas, as motivações dos contendores,
são aspectos tratados com todo o rigor, mas também com suficiente agilidade
para que essas explanações não quebrem o ritmo da escrita. O mesmo poderia ser
dito dos demais elementos do quotidiano em que as personagens se vão
movimentando, sobressaindo, neste campo, os que têm a ver com parâmetros de
requinte que a civilização do Al-Andaluz atingiu: os banhos, os produtos de
beleza e os correlativos serviços dispensados aos que os podiam pagar e deles
usufruir, o refinamento da gastronomia, o aprimoramento dos jardins, o esmero
colocado na construção de estruturas arquitectónicas …
Em algumas dessas descrições, Alberto S.
Santos, com mestria, mergulha o leitor num turbilhão de odores, de texturas e
de cores - componente sensitiva, aliás, bem ao gosto das gentes meridionais.
Dou um exemplo do que afirmo, retirado do início do Capítulo XL: ‘Abdus
encontrava-se sentado num banco de jardim da sua residência, sob um gracioso e
frondoso ulmeiro. Ouvia-se o murmurejar da água que caía continuamente num
tanque e ajudava a refrescar o ambiente. Nele se encontravam gerânios e
nenúfares, quais luminosas estrelas flutuantes multicolores. Vermelho,
cor-de-rosa, salmão… mas os mais belos eram amarelo-pêssego que se abriam de
manhã e, quando fechavam, à noite, adquiriam já uma cor acobreada. As narinas
de quem frequentasse aquele jardim não poderiam evitar o suave aroma dos
nenúfares e das rosas trepadeiras carmesins.”.
Não se pense, contudo, que o autor
construiu um trabalho delicodoce e encomiástico sobre o esplendor do Al-Andaluz
e que, por extensão, cedeu à tentação de cantar loas algo simplistas às
virtudes da civilização islâmica, contemporizando com aqueles que ainda
defendem o mito da sistemática e perdurável convivência pacífica das três
religiões no sul da Península Ibérica. Tenho para mim que o facto de Alberto
Santos também contribuir, com esta sua obra, ‘para resgatar do olvido a
época de ouro […]’ do
Al-Andaluz, para parafrasear o Professor Adalberto Alves, tal não significa que
o autor tenha sido condescendente com os seus piores aspectos, que os
desconheça ou que secundarize o facto, facilmente comprovável, de a invasão
islâmica da Península Ibérica também ter aniquilado uma florescente e refinada
cultura hispano-visigótica, de que eram epígonos personalidades como o erudito
Santo Isidoro de Sevilha, os historiadores Idácio e Paulo Orosio, o filósofo
João de Bíclaro ou, até, o Rei-poeta Sisebuto, por exemplo.
Além do mais, acredito perfeitamente que
Alberto S. Santos, ao pensar esta obra e ao desenvolver as suas linhas de
evolução, tinha a clara consciência do facto de a sua estrutura apresentar
significativas debilidades se apenas exibisse a faceta mais bondosa de uma
civilização que, se expressou grandeza e esplendor em diversos domínios, também
não deixou de assentar em certas traves-mestras que, hoje, não podem deixar de
ser encaradas com aversão.
Outra componente essencial à compreensão
desta obra, em minha opinião, é a intransigente defesa que o autor faz dos
princípios humanistas, encarados enquanto elementos que integram um sistema
ético que tem no Homem, como diria Sartre, ‘o fim e o valor superior’.
Ora, o autor defende que é através da componente espiritual que o ser humano
acederá à plenitude desse humanismo que liberta de dogmatismos destrutivos e
que constrói pontes de entendimento entre os indivíduos.
Neste enquadramento, Alberto S. Santos não
deixa de esclarecer que a mais importante forma de Jihad – ou seja, de Guerra Santa – é a ‘que se estabelece no interior de cada um contra as próprias tentações e
defeitos, com vista à sua elevação moral e espiritual.’ (p. 194). Várias
são as personagens que, nesse percurso, se vão procurando conduzir segundo
princípios de justiça, de compaixão e de honra. O pai de Ouroana, o Conde Múnio
Viegas, por exemplo, verbera os cristãos que, por diversos interesses pessoais,
são coniventes com Almançor. E questiona: ‘Que
honra têm esses desgraçados? Que recompensa esperarão no final dos seus dias?
Que dirão os seus filhos, sabendo-os traidores?’ (p. 127). E o seu
lugar-tenente, Ermígio, faz coro com o seu amo em matéria de honra,
proclamando, a dado passo, a propósito da palavra dada: ‘Promessa é dívida.’ (p. 128). A defesa destes princípios e a
abertura à compreensão das várias facetas da realidade circundante, levam
algumas destas personagens a viver apaixonadamente a sua religião, mas através
de vivências despidas de fanatismo, a ponto de expressarem que estão cientes
que a sua própria religião contém princípios escritos – frequentemente levados
à prática, de forma nefasta - que são desmandos, exageros e sinais de
intolerância relativamente aos crentes de outras religiões. Veja-se, como bom
exemplo disto que refiro, o diálogo entre o cristão Ermígio e o judeu Ben
Jacob, no Capítulo XLIII. Nesta linha de pensamento, este último afirma: ‘A
harmonia só se desfaz quando as questões religiosas se sobrepõem à boa
convivência entre raças e credos.’. (p. 240).
Ora, nesta outra transição de milénio,
agora como há mil anos, a sociedade ocidental continua perpassada por temores
de diversa índole, ou não fosse o medo um dos mais antigos e perenes inquilinos
do coração humano.
Num outro livro que viria a ser um dos
seus últimos, Georges Duby (a quem me referi no início desta intervenção)
apontou a existência de inquietações e de angústias na sociedade contemporânea
e o facto de esta tender a virar-se para o passado, para as suas memórias, como
uma forma de ganhar confiança e de apaziguar apreensões relacionadas com a
possibilidade de perda da sua identidade cultural. Num mundo transformado numa
“aldeia global”, para utilizar a feliz expressão de Marshall McLuhan,
este tipo de receios ganha uma particular relevância. Há ainda outro género de
temores que estão na ordem do dia. Um deles não pode deixar de ser referido
aquando da abordagem a uma obra, como esta de Alberto S. Santos, que discorre
acerca da civilização islâmica do Al-Andaluz e persiste em relembrar-nos – qual
grilo de Pinóquio - que também nela o povo português tem raízes. Esse temor é o
do actual terrorismo islâmico.
Desde o 11 de Setembro de 2001 que as
acções da Al-Qaeda e de outros grupos terroristas ganharam um novo fôlego – e maior
tempo de antena – para atingirem objectivos ocidentais que são, na sua enorme
maioria, de cariz ideológico, mais do que militar: sedes diplomáticas, homens
de negócios e trabalhadores, turistas, igrejas, missionários e fiéis cristãos,
sinagogas, hospitais. No mundo ocidental, não foram poucos os que procuraram
encontrar explicações para este corrupio de atentados, as quais, em alguns
casos, mais pareciam legitimações do que explicações…
Ora, em 7 de Outubro de 2001, no Cairo, um
terrorista da Al-Qaeda e porta-voz de Bin Laden apelou à Guerra Santa – “uma
guerra entre o Islão e os infiéis”, como então referiu – e realçou a
necessidade de recuperarem o Al-Andaluz, aspecto que o próprio Bin Laden
reafirmou num vídeo divulgado aquando da sua celebração do primeiro aniversário
dos atentados de 11 de Setembro. Em Julho de 2002, entretanto, militares
marroquinos ocuparam o ilhote espanhol de Perejil e hastearam a sua bandeira,
em sinal de soberania sobre este local, até que a Espanha respondeu com intensa
actividade diplomática e com meios militares apropriados, recuperando o ilhote
e pondo fim a esta insólita e provocatória actuação marroquina. Anos mais
tarde, na manhã de 11 de Março de 2004, uma série de atentados terroristas
sacudiram Madrid, causando 191 mortos e mais de 1500 feridos. E, desta vez, não
foi obra da ETA, mas sim de terroristas islâmicos. E os exemplos poderiam
multiplicar-se…
Como é que nós, portugueses e espanhóis,
deveremos abordar o nosso relacionamento com uma cultura frequentemente
antagónica, mas que lança raízes na nossa história e que a marcou de forma
indelével, como esta obra de Alberto S. Santos, A Escrava de Córdova, permite constatar? E, numa perspectiva mais
ampla, como deve o mundo ocidental situar-se perante o Islão?
Em minha opinião, parece-me muito avisada
uma orientação de S. Paulo contida na sua 1.ª Carta aos Tessalonicenses: ‘Examinai
tudo, guardai o que é bom. Afastai-vos de toda a espécie de mal.’.
A este propósito, um escritor e poeta
português manifestava-me, há dias, a sua opinião sobre este assunto, com a qual
estou plenamente de acordo. Dizia-me ele: ‘Mediante
leis equilibradas, o Mundo Democrático e livre, sem ceder a chantagens, tem de
dizer firmemente: ‘pratiquem a vossa religião. Há liberdade para isso. Mas a
sua prática não vos dá a prerrogativa de ultrapassarem os direitos humanos que
tanto custaram a conquistar. A prática da vossa religião não pode consistir
numa forma de obviar à prática da cidadania democrática, nem consentiremos que
a ela se sobreponha. De contrário, é apenas um instrumento de pressão e
subversão que não admitiremos!’’.
Pelo que atrás deixo dito e para concluir,
entendo que Alberto S. Santos, ao realizar esta obra, não só produziu um
trabalho que divulga de maneira muito digna uma época insuficientemente
conhecida pelos portugueses, mas que conduziria à construção da nossa
nacionalidade; como escreveu um bom livro que nos entretém, nos ensina e - para
os interessados - nos sugere caminhos seguros que deverão ser utilizados no
nosso permanente esforço de aperfeiçoamento interior.
JG – Licenciado
em História da Arte e mestre em História de Portugal pela Universidade de
Coimbra. Especialista
em teoria artística e arte aplicada.
Devido a um problema informático de última hora, não nos será possível fazer a postagem desta semana. Esperando resolvê-lo em breve,...