segunda-feira, 31 de maio de 2021

UMA FRASE LAPIDAR

 

 “O que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons”

Martin Luther King

 

  Ele chama-lhes bons. Mas não deveria antes chamar-lhes

egoístas ou cobardes?

  Bernardo Cristino


Para um minuto de meditação - 97

 

Pinto da Costa revela conversa com ministro da Educação,

deixa conselho a Costa

e fala em "atestado de mediocridade ao povo português"


  “Perguntei ao senhor ministro ontem se ele compreendia como é que um jogo decisivo do basquetebol não podia ter ninguém a assistir e ontem e anteontem, no Pavilhão Rosa Mota que é um recinto fechado, estiveram 2.500 pessoas aglomeradas, a maioria sem máscara, a ver um espectáculo de música. Ele não me soube responder (…).

   Líder portista voltou a deixar duras críticas aos critérios dos espectáculos, revelou conversa com Brandão Rodrigues, visou DGS e acabou a pedir um Humberto Delgado para acabar com a "pouca vergonha".

(Dos jornais)


   Portugal prostitui-se, vende-se, é um atraso de vida. Já nem vou constatar o óbvio sobre o empobrecimento dos governos de esquerda, mas estes nem honra, nem dignidade nem brio nos dão. 

  É verdadeiramente vergonhoso Portugal ser governado por esta gente inqualificada, miserável, populista. Mas a culpa é de quem os põe lá, os encostados da vida. Triste sina esta. Que país que nos tornámos. 

Zé Albano


   Não posso estar mais de acordo com Pinto da Costa. Este país é uma oligarquia sem vergonha. 

Zé Pituba

Um poema de César Moro

 




O MUNDO ILUSTRADO

 

Assim como a tua janela que não existe

Como uma sombra de mão num instrumento fantasma

Assim como as veias e o fluxo intenso do teu sangue

Com a mesma igualdade com a preciosa continuidade que

A tua existência idealmente me garante

À distância

A distância

Apesar da distância

Com a tua testa e o teu rosto

E toda a tua presença sem fechar os olhos

E a paisagem que brota da tua presença quando a cidade

Não é nada além do reflexo inútil da tua

presença de hecatombe

Para melhor molhar as penas dos pássaros

Essa chuva cai de muito alto

E isso prende-me sozinho dentro de ti

Dentro e longe de ti

Como um caminho que se perde num outro continente.

 

(Tradução de ns)


Nicolau Saião, Relance sobre a ironia

 

A ironia em José Régio




Ao lermos Dickens, é preciso ter-se um coração bem duro para não desatarmos a rir quando ele descreve a morte da pequena Nell.

Oscar Wilde

 

- Folgo muito em ver-vos de boa saúde - disse o barão com uma vénia irrepreensível. - E vosso excelente pai...continua bem morto, não é verdade?

La Guerche deu-lhe de imediato um bofetão.

- Há mais de que rir, senhor! - cuspiu entredentes, levando a mão ao punho da espada.

Amedée Achard


                       Era um homem tão inteligente que já não servia para nada.

 Lichtenberg

 

A ironia, que segundo algumas boas opiniões é prima do humor negro - ainda que, decerto, não prima carnal - e irmã colaça do riso sardónico (embora apenas por portas-travessas), sendo de igual modo vizinha da tragédia e, nos casos extremos, parente especialíssima do ridículo, funciona um pouco à guisa da famosa estalagem espanhola das novelas: só se come o que para lá se leva. E a ironia involuntária, que outros nos garantem ser uma espécie em vias de extinção, também é significativa, dando de barato que tem ao que parece muito a ver com o Destino que comanda a rota dos homens e o drama das sociedades. Neste especialíssimo caso, conviria então confrontá-la com a sua própria imagem, como num espelho em que as figuras, a figura, aparecesse invertida, com um brilho dramático nos olhos arregalados. Porque o irónico ponto que subjaz à ironia tem muito a ver com a frase terrível de António Maria Lisboa, que reza: “Todo o acto premeditado ou leviano tem a sua guilhotina própria”. Ou, para seguirmos Lautréamont: “Ride, mas chorai ao mesmo tempo. Se não puderdes chorar pelos olhos, chorai pela boca. Se ainda assim fôr impossível, urinai. Mas advirto-vos de que um líquido qualquer é aqui necessário”.

 Tal como já se disse do romancista, o indivíduo que utiliza com maior ou menor propriedade a ironia, mesmo amarga, bem vistas as coisas é alguém para o qual nem tudo está definitivamente perdido. Acreditado o seu poder apelativo, no fundo ela funciona no interior do Sistema e dos diversos sistemas em que este se revela. E tem a sua própria operacionalidade: sublinha ou salienta, por excesso ou por absurdo, uma situação limite. A não ser assim tratar-se-ia de simples desabafo. Ou, pior ainda, não passaria de mera piada menos ou mais grosseira e, se calhar, nem sequer muito perspicaz. O ironista, mesmo não sistemático, afinal de contas sente sempre que do outro lado está alguém, alguma coisa individual ou colectiva, embora de porte dúbio ou mesmo francamente duplo. O que não deixa de ser um pouco contraditório. Na verdade, esse ser e essa coisa possuirá simultaneamente uma dada deficiência de visão interior ou de entrosamento e, ao mesmo tempo, a faculdade de sentir a singularidade da proposta mais ou menos inspirada, mais ou menos cruel. Para depois - indo ao encontro do desejo impresso do seu interlocutor - se morigerar, tendo assim definitivo acesso às moradas em que oficiam os inteligentes e os deuses, com suas diversas encarnações civis. Mas será mesmo assim, sempre assim? Tenho para mim que não. Afinal, a ironia tem como alvo e como destinatário não só pessoas ou instituições mas também ou sobretudo situações, sucessos, imanências. Falemos claro: na verdade, o alvo último da ironia vem sempre a ser a circunstância final e primeira que dá origem aos números e às coisas. E que o ironista, evidentemente, entende que pelo menos se distraíu dos seus deveres de competência. Por isso é que os mantenedores das religiões reveladas (ainda que laicas ou agindo no século), muito sensatamente lá na sua deles opinião ou concepção, têm visto sempre a ironia como ataque mais ou menos velado à divindade e seus sacrais prestígios. No que lhes diz parte, de seu natural não se revestem eles sempre duma solene, majestática presença? O próprio mestre das trevas não a aprecia - ainda que o faça, digamos, por razões de “racionalidade operacional” do seu múnus peculiar: naquelas paragens, de acordo com a visão canónica, é-se mais partidário do sarcasmo gélido, da chocarrice desgarradora, que afirma evidentemente a falta de razão atribuída às obras do Arquitecto. Por outro lado, no sujeito que ironiza há igualmente com frequência, também, um céptico que vive paredes-meias, em conflito ou desassossego, com um moralista. Mas moralista de tipo especial: um operador a meio caminho entre o cínico e o afectivo melancólico. E é por isso que a ironia é na maioria dos casos como que meia-defesa, tanto mais que traz frequentemente - diria antes: presume sempre - implícita uma certa nostalgia, um certo desgosto de viver, por vezes uma evidente mágoa. Se o riso (até o riso amarelo) é próprio do homem, o auto-conhecimento e o poderoso conhecimento dos outros é mais coisa de deuses, não sendo pacífico imaginar Dionísio ou Ahura-Mazda dirigindo frases irónicas aos seus companheiros de imortalidade, ou sequer a comunicar-se com o homem mediante finas ironias. A voz dos deuses, se para aí estão virados, fala-nos com as inflexões da seriedade, da tragédia ou da absoluta iluminação. Da potestade para a criatura, na carne e no sangue - que como referiu ironicamente Woody Allen é a melhor coisinha que um tipo pode trazer dentro das veias - não se funciona senão na base de uma extrema gravidade, que não admite cenários propostos pela nossa pobre e mortal insuficiência. Neste plano, sabe-se como a Sociedade britânica (que era o deus ex-machina da época) agiu para com Wilde, que durante anos a crivou resolutamente de ironias divertidas e certeiras sem contudo se colocar fora dela. Porque o ironista, que por razões intrínsecas não se apercebe ou não quer verdadeiramente aperceber-se de que a salubridade (não falo em eficácia) implica de facto a prática do humor negro, o qual constitui efectivamente a única real defesa contra o opróbio e o negrume, é no fundo um homem de sistema, porquanto a ironia implica mesmo a assumpção do Sistema. Ele conhece bem quais as armas temíveis que se acumulam a seu lado: vê-as crescer, sente-as desenvolverem-se e propagarem-se, assiste com inquietação ao seu império - que é evidenciado em palavras e acontecimentos, em circuitos e corporações. Ele mesmo se nota frequentemente um pouco fraco, um pouco imbele, um pouco febril, sem as armas miraculosas de que qualquer indivíduo consciente sonharia dispôr para atacar com alguma hipótese de êxito os monstros sociais ou individuais que se agitam em torno. Então, percebe que urge fazer qualquer coisa de forte e de agudo que ilumine o descampado, que erga os corações: é pois assim que, por decisão própria, se chega à ironia, essa inteligência um pouco pérfida, um pouco tímida, um pouco dissimulada que já alguém um dia disse ser a capa e espada dos magoados e dos indecisos e dos que habitam um calvário particular.

A ironia - severa, argumentada, fina, magoada ou sibilina - tem por missão específica funcionar como um filtro que purga dos maus humores e dos fluidos mefíticos a mediana racionalidade que nos deve mover. É um bom remédio contra essas poções maléficas ou duvidosas que nos maculam e nos turvam o quotidiano arguto e salutar que entendemos merecer, para certeira e livremente caminharmos e falarmos. É por isso que o discurso irónico, para verdadeiramente existir, tem de se fazer no interior do circuito comum. É, portanto, sempre social e nunca associal. O que, todavia, não constitui explicação determinante para o Poder nem mesmo lhe interessa muito (a não ser para proibir ou suspeitar), uma vez que este não se move no domínio das exigências éticas mas sim no terreno ervoso da guerra surda às virtualidades mais altas do ser humano.

Mas a mais bela ironia, a mais nobre e talvez a mais legítima, a que sem qualquer sobranceria nos fala sempre do fundo dos tempos, é a que no fim, ou ao fim e ao cabo, ironicamente e quase sem se sentir ou saber, envolve a obra ou se projecta do seu todo, desse produto voluntário ou involuntário de uma vida, já definitivo e com a perfeição do que acabou para sempre e para a eternidade. É, com efeito, o dia final de Giacomo Casanova, esse grande ironista vital, recordando com amargura e enlevamento a sua infância nas ruas da Sereníssima. É Wilde, adiposo e devastado, sentado num banco de jardim em Paris, olhando melancolicamente ao entardecer - enquanto ia distribuindo miolos de pão pela passarada - os transeuntes que decerto o desconheciam, que possivelmente o ignoravam ou quando muito lhe estimariam o seu enorme talento de interrogador do fantástico.

E é Régio, que nos confia num dos seus últimos poemas publicados em livro que “o homem só quer abrir./ Chegou por fim a saber/ que venha lá quem vier/ seja quem for/ só um dos dois pode ser/ desde que não a fingir:/ A morte, o amor.”

***

Um dos textos em que mais intensamente se sente a ironia regiana é a novela supracitada (“Davam grandes passeios aos domingos”. Através de uma curta análise, não exaustiva mas apenas indicativa das linhas principais, é possível perceber de que tipo de elementos se forma a sua estrutura, uma vez que o discurso irónico - como acima acentuámos - não se realiza de uma só maneira, não assume uma única possível efectivação. É claro que a ironia de Eça é bem diversa, por exemplo, da de Jacques Tombelle, a de Raymond Chandler pouco tem a ver com a de Gide.

De forma um pouco matreira - que a ironia serve-se quando é preciso dum certo ar jesuítico para melhor chegar ao seu alvo - a arguta escrita regiana enquanto convive com a tragédia de Rosa Maria e seus pares de jornada retrata de igual modo a cidade provinciana e cruel, beata e intempestiva, acanalhada nos seus próceres e nos seus propósitos, no seu quotidiano aparentemente rural e sereno mas, na verdade, brutal e impiedoso. Dizia Brassens que “les plus grands cons sont les petits cons” e tal certeira asserção vale inteiramente para as cidades. Mas a maior (mais dolorosa?) ironia, que vai para além do que se escreveu - tal como se dá na literatura queirosiana - é a circunstância da cidade em apreço, mau grado a passagem do tempo e dos ritmos com suposta tintagem democrática, continuar fechada, mazomba, encordoada em vivências e em gentes como quando Régio nela residiu e a descreveu. Ainda ali existem os ultramontanos aproveitadores e hipócritas, os politicões de baixo perfil, as famílias senhoris e de bom porte (ainda que um pouco ratado pelo dente hostil da vilanagem); ainda há as damas manteúdas, as mediocridades impantes, um sistema de castas arrivistas ou sedimentadas encrustado num Alentejo deflaccionado e de escassas honras onde o discurso provinciano segue sendo inculto e pretensioso, tratante e de baixo estofo. Rosa Maria pode continuar a sonhar, que muito poucos repararão. Pode nostalgicamente continuar a esperar que um dia, com um garotito pela mão, passeará para os lados do Bonfim, para os lados dos Assentos, pela estrada que vai até à Senhora da Penha. Portalegre, sem dúvida, ainda vai tendo belos passeios para serem dados, uma vez que tudo segue quase igual ao de antigamente: a estação dos comboios ainda é a uma dúzia de quilómetros e a própria frequência de passagem daqueles permanece - por obra e graça da tutela - escassa e pouco serviçal. Todavia, os “Chicos Paleiros” já não se apinocam no cavalicoque. Agora usam o carro de média marca e o jipão dado pela munificência dos subsídios europeus.

Vejamos como Régio, de um só golpe, define com eficiência algo discreta o tipo de hipocrisia vigente: “Em Portalegre, pelo Carnaval, estavam muito em moda tais assaltos. Consistiam no seguinte: um alegre rancho de indivíduos de ambos os sexos (e várias idades, por ter cada uma o seu papel) marcava certa noite para mais ou menos se mascarar, se dispor a dançar, a jogar o Carnaval, a comer, a beber. Nestas amáveis disposições irrompia portas a dentro de determinada família, exigindo-lhe a realização de tais intentos. Claro que a família assaltada era secretamente prevenida, o que permitia evitarem-se desagradáveis surpresas. Entrava no jogo fingindo nada saber; mas encomendava música, preparava uma ou duas salas, fornecia-se de comes-e-bebes de toda a espécie”. Esta passagem define uma situação que é esclarecida pelo que lá não está dito mas nós conhecemos: a circunstância de, para uma certa gente turiferária e inconsciente (o que aliás a novela sublinha com elegância), a vida não passar de um jogo algo pacóvio, natural nessa medida, sinistramente lógico. Ironicamente, essa gente de quem Régio nunca se viu realmente livre enquanto viveu em Portalegre, essas presenças espúrias que tantas vezes lhe estorvaram o quotidiano. Valia-lhe, felizmente, a frequentação de outras gentes mais claras e mais sabedoras. Régio, no entanto, que como ele mesmo admite aqui e ali nunca deixou de ser um provincial (que não um provinciano), lança àqueles um olhar reprovador mas não adusto - o que é característica da ironia não-socrática praticada por autores ocidentais e cristãos e com certa lhaneza de comportamento.

E no final da novela, naquela tirada desgarradora que é das mais comoventes da literatura portuguesa, a sua personagem principal vê claramente visto o buraco negro de um futuro sem contemplações. Sem contemplações? Bem, não sejamos excessivos: “Desde que principiasse a devanear, Rosa Maria aliviava. O seu terrível momento passara, por então. Só estava ainda um pouco assustada por continuar sujeita àqueles acessos. Dominá-los-ia, porém. Correu outra vez, devagarinho, a lingueta da chave; disse do corredor: - Já lá vou, tia Alice. Vê como já passou? Estou perfeitamente boa.

E voltou dentro para chapejar os olhos com água


*** 

   Se “Davam grandes passeios aos domingos” é a história dum drama, “Os alicerces da realidade” é a crónica duma caminhada para a loucura, uma viagem no interior duma tragicomédia. Silvestre, funcionário aposentado, ao passar um dia por um local da cidade - cenário construído a partir das vivências deambulatórias e residenciais do A. - tem “uma impressão estranha”. A partir daí o seu dia-a-dia transfigurar-se-á paulatinamente, tornando Silvestre incapaz para o normalizado convívio com os membros da sua comunidade. Neste conto, a meu gosto um dos melhores da produção regiana, notam-se os mecanismos do discurso irónico como que num corte transversal. Silvestre, julgado pelos padrões clínicos ou do senso comum pode de facto ser um louco (inofensivo), mas deixa-se adivinhar que a verdadeira loucura é bem outra. É, por exemplo, a loucura social, travestida de normal normalidade, que torna inaptos os Silvestres deste mundo que, por muito loucos que sejam, conseguem pelo menos ter a percepção doutros mundos, doutros espaços e doutros tempos. “Ele, ao menos, sabe que sonha. Pela certeza com que o sabe, também sabe que não pode, agora, tardar muito a acordar, - já tem demorado um pouco. Para quê atormentar-se? Qualquer dia, acorda mesmo.”, escreve-se no fim do conto, servindo este finale de Silvestre como comentário aos confrades que, feridos por destino semelhante mas não igual, de repente desencadeavam cenas chocantes, espojando-se no chão ou arrojando-se contra as paredes, ouvindo-se verdadeiros urros como de torturados, acendendo-se brigas violentas, de modo que era preciso empregar a força contra esses pobres energúmenos.(sic).

O que torna este conto significativo e definidor duma característica peculiar da ironia é que aqui e ali se salpica de trechos no género deste: ”A verdade é que ao próprio Silvestre parecia agora que nunca as suas faculdades intelectuais haviam dado tal rendimento. Como serei eu, seu obscuro biógrafo, que o contradiga?”. Neste caso é o autor que por ironia da escrita fala pela boca da criatura, melhor apetrechada para determinados entendimentos. E que é o seu alter ego evidente, sua máquina de chilrear (parafraseando Klee), sua temerosa e, no fundo, temida personificação. Régio, que para mim - que o via passar nas ruas da cidade - sempre foi uma figura de pessoalíssimo recorte, independentemente de tudo o resto era o que se usa chamar, com apreço, um tipo). Ele sabia bem que a ironia, sem ser humor, tem como numa chapa em negativo um determinado tipo de humor e, emparelhada com este, uma certa tristeza, uma certa medida ou desmedida angústia. “Houvera beija-mão às senhoras, entre os homens os cordiais cumprimentos de indivíduos da mesma classe, ditos de espírito e, claro está, um grande à-vontade elegante, no meio do qual se esforçara Silvestre por se apagar, não vendo outra maneira de esconder as suas inibições. Aliás lhe não fora difícil: os que iam chegando encaravam-no com um pequenino choque de surpresa, que logo disfarçavam. Alguns, os mais novos, rapidissimamente o analisavam dos pés à cabeça. As damas relanceavam-lhe um breve olhar, que pareciam recolher. Apresentado ou não, Silvestre ficava de lado, via tudo isto, procurava fingir que não estava presente(...)”, escreve a dado passo. E medite-se um segundo no nome do seu herói, quase igual - e tendo o mesmo significado - ao do protagonista (Silvério) de “Os paradoxos do bem”.

Ao mundo portalegrense das personalidades conspícuas, ao universo das senhoras donas, dos senhores directores, dos senhores funcionários, senhores com princípio meio e fim, opõe o escritor a figura inacabada, em construção ou em declínio, dos silvestres, que viviam na religiosidade existencial de Régio como frutos naturais duma vida mais densa e regenerada. Mesmo que através do equívoco ou da loucura.

E quer-se, à puridade, concepção criativa mais irónica? 

*** 

Em muitas mais páginas, em muitas mais obras se poderia detectar o halo irónico. Cremos, todavia, que epigrafámos suficientemente a estrutura e a conformação da ironia regiana. Não é pois necessário que mais alongadamente - com redundância - a registemos em poemas vários, no teatro e até na crítica. Régio, que era claramente um espírito dramático, em certas ocasiões mesmo um temperamento trágico, contrapontava-lhes um saudável sentido das realidades. Sem ironia o digo - realidades. Porque, como se compreende, não é ao contemplar o trágico ou o dramático da existência que se sente o apelo temível “da corda dos desesperados” - e sim ao meditar-se, a meu ver extemporaneamente, na irrisão que alguns dizem ser a vida. Para Régio, como decerto para muitos de nós, encarada com realismo verifica-se que ela possui um envoltório de sagrado que destroça essa irrisão. Que lhe não pertence, que lhe não é própria. Que efectivamente pertence, sim, às sociedades organizadas, que a ironia - fina, sibilina ou violenta - bem sabe definir e situar.


Nat King Cole, Ansiedad (José Enrique Sarabia)

 



quinta-feira, 27 de maio de 2021

PÓRTICO

 

ns


Queres dominar um povo, os cidadãos?

Tira-lhe primeiro a honra, faz deles bandalhos,

o resto virá por acréscimo”.


Youri Belaiev


Para um minuto de meditação - 96

 


Zuca Sardan



“A poesia só pretende cumprir uma tarefa:

que este mundo não seja habitável só para os imbecis”.

Aldo Pellegrini


Três poemas de Maria Amélia Neto

 




A VIAGEM

Acabo de chegar,
Irmão,
E vim de longe.

Vi rostos
Inclinados sobre a terra
E o torpor do mundo
Num olhar.

Vi as pedras
Da estrada
Ensanguentadas
E o sol
Feito poeira
Sobre as pedras.
Vi a sombra
Da noite
A diluir-se
No frio da madrugada.

Agora
A Morte caminha atrás de mim,

Irmão,
E acabo de chegar.

 

FLUXO

O recolhimento, o silêncio,
O relógio suspenso,
A desintegração do tumulto,
O clamor, a tortura,
O vento salgado,
As liláceas pisadas,
Onde e quando?
Na sala envidraçada,
Que a última luz roxa incendiava?
Ou nas ruas,
Perscrutando os olhos próximos,
Perdidos na sombra, hierática e surda,
Impondo a iniciação inevitável?
Iluminemos a noite,
O rumor imperceptível do tempo,
Criemos um desconhecido brilho
Para os gestos que um irmão
Executa por nós no vasto palco.
Inventemos, silenciosamente, a prece,
A grande prece, a prece ininterrupta

Ao Deus desaparecido


PRELÚDIO

A cidade acorda, atolada de valas.
Penso num sinal, na manhã do mar,
Num gesto remoto,
E sobe da terra um clamor de limites:
Represas, sebes saqueadas,
Um pessegueiro morto,
E todas as nuvens caídas num charco.

Quem atravessou o gelo
E os mares
E o solo fendido
E escutou a gaivota
E andou sempre só,
Queimando o olhar, as veias cansadas,
Esteve serenamente sentado a um lado,
Mas não aprendi.

O sol violeta, a teia de prata,
Luzes e vento abraçando a cidade,
O cais interminável, fronteira adiada,
O vento de novo, águas enlodadas,
Presságio da noite, o preço tão alto,
A pétala, o viço e depois a vala.


Nicolau Saião, Relembrando Charlie Chaplin

 




CHARLOT E OS JOGOS DO ESPELHO

 

   Podemos questionar-nos: Charlot seria Chaplin ao espelho? Pergunta talvez ociosa, mas que não deixa de ser pertinente. Quase diria com humor: para ser Charlot, a Chaplin só lhe faltava o bigodinho.  Senão, vejamos: a vida de Chaplin foi exemplar do ponto de vista de um ser humano que forcejava por se enquadrar numa sociedade que sem cessar fazia esforços para o remeter, com o clássico pontapé no traseiro das suas comédias, para lugares inabordáveis. Recordemos, ao calhar, os episódios Lita Grey*, a tentativa de darem o nosso homem como comunista por ter vendido bónus de guerra (Chaplin comunista é de facto demasiado forte), a censura que lhe faziam em Inglaterra por ter abandonado mais ou menos aquele rincão onde oficiavam os comediantes, esses sim verdadeiros comediantes, no género de Lord Chipendale ou Neville Chamberlain…

   Por isso é que hoje se nota sem precisarmos de lupa – basta-nos a perspectiva do tempo, esse supremo crítico como lhe chamou André Gide – que o riso de Charlot, mesmo o dos seus primeiros momentos que a alguns distraídos pareceram simples vaudeville, é o que fica a qualquer um depois de uma grande e pura tristeza. Pierre Hourcade, que um dia se forçou a debruçar-se sobre os mecanismos do humor, como personagem grada que era e por isso vagamente cómica (ia quase a dizer gravemente cómica) tinha dessa matéria uma ideia que, com maldade, classificarei de “perspectiva de proprietário”. Mais ou menos na altura em que Chaplin nos dava o seu “Monsieur Verdoux”, referia aquele académico que o verdadeiro humor é sempre amável ou alegre, ou seja dito de outro modo: excelente pitança para pessoas sérias e decentes que gostam de amenizar os seus dias...

   Bem melhor andou Wenceslau Fernandez Flores ao referir que “O humorista é um descontente que se ri da Sociedade em vez de a ferir” – o que remete Chaplin para o lugar que é efectivamente o seu: um homem belamente encolerizado com os disparates do mundo, como diria Chesterton, ao qual foi imposto, por inerência de talento (ou, se preferirem, génio) um caminho traçado entre os pardieiros de Londres e, finalmente, as ruas da imensa metrópole americana. E que ele soube transfigurar e tornar perene.

   Ainda hoje se ri a bom rir durante a projecção de ”Os ociosos”, de “A quimera do ouro”, de “As luzes da cidade”, de “Tempos modernos”. Já não estou tão seguro que o mesmo suceda ao vermos “O grande ditador”, ou “Um rei em Nova Iorque”, ou “Monsieur Verdoux”, ou “A condessa de Hong-Kong”. Por esta razão muito simples: hoje sabemos à nossa custa que as gargalhadas podem gelar na garganta e que, no fundo, o que Chaplin encenava eram não comédias mas tragédias e que o riso só lá estava para sublinhar uma evidência já posta em equação por Lautréamont: “Ride, mas chorai ao mesmo tempo. Se não puderdes chorar pelos olhos, chorai pela boca ou por qualquer outro lado. Sejam lágrimas, seja mijo, seja sangue, tanto faz. Mas advirto que um líquido qualquer é aqui indispensável”.

  Dizia Brassai, conversando com Malraux e Picasso, que de cada vez que via nas actualidades Mussolini a discursar tinha a impressão que por detrás lhe estava sempre alguém a dar pontapés no posterior. Mas Mussolini era um patifório um pouco risível, apesar dos desmandos que praticou na pátria de Leopardi. Quanto a Hitler o caso era diferente: sinistro sem contemplações de picardia toscana, era de facto um canalha de alto coturno, um verdadeiro criminoso e um ente que, com a sua simples aparição, espalhava a inquietação à sua volta como nos conta Trevor Roper citado por Jean-Marie Domenach. Será então de espantar que hoje nos apareça muito mais ridículo e verdadeiramente objecto de maior riso ferino? Porque o que admira – o que assim torna a regra mais sensível e com maior relevo – é como é que um patife daquele calibre que de facto era não mais que um ser perturbado, pôde ser tido como profeta e condutor de povos.

   Porque, efectivamente, o riso profundo, verdadeiro, que dói e liberta mesmo à custa de um arranco interior, tem sempre como alvo o fundamental e nunca o acessório. Pois os ditadores, mesmo disfarçados de gente quotidiana, são sempre um pouco como as figuras dos baralhos de cartas: metade do corpo para cima e a outra metade para baixo, como se estivessem cortados a meio por um espelho que os anos articulam apropriadamente.

   Chaplin e Charlot funcionavam noutra base, estavam de corpo inteiro nesta história de imagens devolvidas por um vidro encantado. Agiam noutro plano, que é o da realidade criada depois de se ter atravessado o deserto da estupidez e da mediocridade habilmente forjada por um quotidiano que se auto-designa como responsável e respeitável. À sua maneira contundente, para além de tudo o mais, Chaplin demonstrou-nos e continua a demonstrar-nos esta coisa pacífica e intuitiva: que o riso, tal como os raios da manhã, são o mais eficaz elixir contra a monstruosidade codificada e que, contra ele, os ditadores e os bandidos fardados ficam em petição de miséria – até porque acabam por finalmente compreender que o riso é o verdadeiro precursor daquilo que nas fitas vem efectivamente em sequência e que é a finura de uma estaca plantada em pleno coração do fantasma.

 

Nota – Lita Grey, actriz vulgar mas muito bela, foi casada com Chaplin. Instruída por sua mãe, mulher ávida e cruel, apresentou queixa contra ele com o pretexto de que este quereria praticar no leito conjugal actos eróticos que saíam do habitual – ou seja fellatio, cunnilingus e sodomia – que em certos estados dos EUA são punidos com pesadas penas de prisão. Entre pessoas casadas, repare-se, nomeadamente por qualquer uma das diversas igrejas existentes e sem que haja violência ou constrangimento moral pelo meio.


Charlie Chaplin, Non-sense song

 



segunda-feira, 24 de maio de 2021

Para um minuto de meditação - 95

 

À sombra da morte

Esperava-se que a liberdade de expressão estivesse mais consolidada em sociedades que se dizem abertas. Não está. E a imprensa não é uma vítima da conjuntura: é algoz.

(Dos jornais)

 

  “Controlemos as universidades, as instituições sociais e a imprensa e daí dominaremos a sociedade”

Gramsci


Um poema de Salvatore Quasimodo

 




NA FOLHAGEM DOS SALGUEIROS


E como poderíamos cantar

com o pé estrangeiro no coração,

entre os mortos abandonados nas praças

na relva dura como gelo, para lamentar

do cordeiro das crianças ao choro negro

da mãe que foi para o filho

crucificado no poste telegráfico.

Na folhagem dos salgueiros, por nosso voto,

tínhamos pendurado a nossa lira,

e ela ao triste vento levemente balançou.


(Tradução ns)


Caminhos da Literatura – Inquérito a Nicolau Saião (por Lino Mendes)

 


ns, A escrita


A POESIA

1.      O que define a maior ou menor qualidade de um texto literário?
A mensagem? A riqueza(?)linguística? A maior ou menor dificuldade da sua compreensão?

Resposta de NS

   Eu diria que é um conjunto de condições da qual afasto no entanto, à partida, a dificuldade maior ou menor da sua compreensão, que colocarei sob outro enfoque. E isto porque a dificuldade de entendimento de um texto literário pode até partir da maior ou menor inteligência ou preparação do leitor…

   Dizia Lichtenberg “Se um macaco se mirar num espelho, nunca verá um apóstolo” e a frase creio que tem todo o cabimento, como se entende.

   Indo agora ao cerne da questão, a chamada “mensagem” parte da riqueza linguística (melhor dizendo, da boa articulação da escrita – e é isso que configura a riqueza do que se diz e não um eventual estilo rebuscado ou grandiloquente, digamos assim), sendo o inverso também verdadeiro. Um texto de qualidade pode ser original ou mesmo inusitado, mas não é nunca descabelado ou pedante. Mais: o autor de qualidade nunca busca ser original – a originalidade é uma constituinte da sua escrita, simplesmente, parte dos olhares novos que ele soube abrir ou suscitar. A qualidade é sempre uma resultante: da forma e do conteúdo expressos, que fazem sentido e têm poder criativo e criador.

2.      Duas  situações:
Quem não entende António Aleixo?
Quem entende Camões?(LUSIADAS)
É claro que não vamos fazer comparações. Mas gostava que nos situasse
no seu espaço cada um destes exemplos.

NS - Só gente muito primária poderá não entender António Aleixo. Dito isto, há que referir que entender tem dois níveis (pelo menos) de estruturação: o sentido imediato e o sentido profundo. No primeiro parte-se da leitura corrida, digamos desta maneira. O segundo já requisita percebermos o que o autor dizia, queria de facto dizer, recorrendo a um simbolismo, a uma sugestão ou inflexão apontando mesmo para o que nem necessita de ser expresso claramente. No que se refere a Camôes, há o discurso global (celebração dos “heróis” portugueses), na linha de outras celebrações mais antigas (gregas e romanas). A forma em que está vasado, própria daquele tempo e daquele espaço poético é que não será de fácil apreensão, dependendo mesmo da preparação de cada um. Mais consensual, mais fácil de entender como usa dizer-se, será a sua obra lírica, não epopaica, que a meu ver é inclusivamente a sua mais alta realização. Independentemente da sua força discursiva, principalmente em dados trechos, a olhares modernos Os Lusiadas já começa a aparecer-nos como um “tour de force” que perde claramente no cotejo com A Odisseia (para não falarmos noutros…), dado o seu estrénuo esforço em pintar de epopeia uma incursão claramente histórica pouco entusiasmante dado o seu cariz quotidiano-comercial…por muita retórica patrioteira que se lhe faça em redor.

3.      O rimar deixou de ser necessário para haver poesia
Como sabemos então que se trata de um poema?

NS - O rimar nunca foi indispensável na poesia (como o não é o não rimar ou verso branco), correspondeu apenas a um estágio temporal bem determinado. Saliente-se que em certas épocas chegou a assumir, até, foros de obrigatoriedade por parte de alguns sectores “donos da cultura”. O que mostrava não só o seu autoritarismo como a sua própria falta de cultura. Dizendo de modo explícito: faziam passar por poesia algo que não era mais que rimação (perdoe-se-me o eventual neologismo) sem fulgor e sem valor, repisar monocórdico de conceitos ou de pseudo-moralismos de baixa estirpe.   

   Dito isto, realce-se que há por vezes poemas que, partindo da qualidade de escrita do autor, que sabe manejar a rima de forma a ter sentidos de drama, de ironia ou de graça simplesmente, têm nessa certa rima uma expressão adequadíssima – pois está ali a sublinhar uma intenção, uma qualificação, uma sibilina inflexão que posta doutra forma não resultaria na atingida beleza do poema.

  Um poema – e um poema pode ser em prosa, como se usa dizer – reconhece-se por ter nele uma imanência que atinge os mais secretos, mais profundos e mais desconhecidos, por vezes, sentidos do ser. A poesia é uma construção que toca as fontes da Humanidade e da existência comum e do ser vivente, há algo na frase que ultrapassa a simples verdade da sua estrutura para se projectar na realidade interior das coisas.

  Refira-se que uma novela, um romance, um ensaio – que são obras em prosa – podem ter na sua concretização uma imensa poesia e não precisam de sair da sua estrutura (que é específica). Mais: se, neles, o autor quisesse fazer poesia, ferindo a sua especificidade, provavelmente faria era uma obra falhada e pretensiosa. (Há exemplos de romancistas, novelistas, etc. que quiseram fazer romance/novela poéticos e só fizeram, afinal, emolientes pessegadas…).

  A poesia parte da estrutura intrínseca que lhe configura a permanência no tempo e no espaço. Ser com ou sem rima já é uma sequência (ou uma consequência, se quiserem…).


Edith Piaf, Non, je ne regrette rien (Michel Vaucaire/Charles Dumont)

 




quinta-feira, 20 de maio de 2021

PÓRTICO

 

«Os homens são como o vinho,

a idade melhora os bons e azeda os ruins».

Cícero


UMA FRASE LAPIDAR

 

   Mesmo na noite mais triste/em tempo de servidão/há sempre alguém que resiste/há sempre alguém que diz não.

Manuel Alegre


Para um minuto de meditação - 94

 

   Aqueles que abrem mão da liberdade essencial para adquirir um pouco de segurança temporária, não merecem nem a liberdade nem a segurança.

Benjamin Franklin


José do Carmo Francisco, Breve poema nº 19 para Ana Isabel

 


Estou na «Pátria da Chuva» de Fernando Alves, entre Cardigos (Santarém) e Amoreira (Castelo Branco), perto do pinhal e da ribeira, lugar onde não chega o eco da vitória do Sporting Clube de Portugal no Campeonato de Futebol de 2020/2021.

Só a Antena 1 por Nuno Matos faz vibrar o silêncio e o frio da noite; o dono da casa atirou cinza para as brasas e não há Jeropiga da Beira ou Vinho do Porto para celebrar.

Afinal «os mortos empurram os vivos» (Herberto Helder) e a foto de 1928 tem a chave das lágrimas em júbilo: Cipriano dos Santos (marinheiro), Jorge Vieira (operário) e António Penafiel (marquês). É o carácter da Nobreza na nobreza de carácter.  


Um texto de João Garção

 

A ESCRAVA DE CÓRDOVA - Um Livro, seu Tempo e Lugar



ns


    (Texto da apresentação, na Biblioteca Municipal Dr. Miguel Mota,

do romance de Alberto S. Santos)

 

    Georges Duby, um dos mais notáveis medievalistas do século XX, publicou em 1974 uma obra, hoje clássica, intitulada O Ano Mil, na qual defende que os chamados ‘terrores do ano mil’ são uma ficção literária, uma lenda romântica produzida por autores oitocentistas. No entanto, se este conhecido historiador dissipa esse mito e rejeita a existência de um sentimento generalizado de pânico nas sociedades cristãs do final do primeiro milénio, não deixa de conceder que, esse período, foi para os cristãos uma época de profundas inquietações, de severas angústias e de grandes expectativas. É precisamente neste período de ‘inquietação difusa’ para a Cristandade que decorre a acção da obra de Alberto S. Santos A Escrava de Córdova – mais precisamente, entre os anos de 976 e 1002.

   A delimitação do quadro temporal, no entanto, é por si só insuficiente para nos permitir apreender plenamente as linhas estruturais sobre as quais assenta esta obra. Há também que fazer referência ao quadro geográfico em que a intriga se desenrola. E esse quadro é, quase na sua totalidade, o da Península Ibérica.

   Mãe de muitos povos», como se lhe referiu Santo Isidoro de Sevilha no século VII da nossa era, terra fecundada ao longo de milénios por diversas culturas que aqui floresceram, este território sofreu, nos inícios do século VIII, as investidas da expansão religiosa, política e militar do Islão.

   Na verdade, o imparável avanço islâmico também para o Norte de África traduziu-se, primeiro, na conquista do Egipto e, depois, na submissão dos berberes pelos árabes de Musa ben Nusayr. A passagem para este lado do estreito de Gibraltar fez-se facilmente, aproveitando as rivalidades intestinas que se agudizavam no seio da monarquia hispano-visigótica. E é assim que, a partir de 711, os invasores muçulmanos se foram lançando à conquista deste território e, em batalhas sucessivas, destruíram os quadros políticos, religiosos, administrativos e militares da Hispânia visigótica, empurrando cada vez mais para norte aqueles que ainda optavam pela resistência armada, confinando-os à zona das Astúrias, área onde se constituiu um minúsculo reino cristão.

     Os muçulmanos procuraram então ampliar as suas conquistas na Europa, passando os Pirenéus. No entanto, foram derrotados em duas batalhas decisivas: em Toulouse (721) pelo exército franco chefiado pelo Duque da Aquitânia; e em Poitiers (732), pelas tropas lideradas por Carlos Martel. A expansão muçulmana pela Europa cristã foi, assim, detida. No entanto, no que à Península Ibérica diz respeito, a presença islâmica, enquanto realidade política estruturada sobre um espaço territorial autónomo, far-se-ia sentir durante séculos – o último reduto islâmico no território actualmente português resistiu até 1249 (conquista do Algarve por D. Afonso III), tendo a conquista de Granada pelos Reis Católicos, Fernando e Isabel, em 1492, marcado o final da Reconquista cristã da Península.

     Temos assim, portanto, que o enredo da obra A Escrava de Córdova ocorre num período de claro domínio islâmico sobre a maior parte do actual território peninsular. Os reinos cristãos, se nesse final do século X já não estão confinados aos montanhosos espaços asturianos, não ocupam, no seu conjunto, mais do que um quarto do território peninsular. O grande reino da Península Ibérica – e que ocupa as suas regiões mais férteis – é muçulmano e tem a sua capital em Córdova. Foi chamado de ‘Al-Andaluz’ (atenção: não se trata do equivalente da actual Andaluzia espanhola…).

     Por esta altura, Córdova é, muito provavelmente, a maior cidade da Europa, destronando mesmo Constantinopla. Segundo alguns autores, contaria, então, com cerca de cem mil habitantes (outros, menos comedidos, referem que provavelmente rondaria o meio milhão). Desde 756 e até 929, Córdova foi a capital de um Emirado, independente dos Califas Abássidas de Bagdad. Nesse ano de 929 constitui-se, mesmo, um Califado, elevando-se assim o território do Al-Andaluz à mesma dignidade dos poderes então reinantes em Bagdad e em Tunes e com estes últimos competindo pelo controle do Norte de África. Esta época do Califado (929 a 1031) é vista por muitos autores como a ‘época de ouro’ do Al-Andaluz. A agricultura que aí se praticava era a mais avançada da Europa, assentando a produção fundamentalmente no trigo, na vinha e na oliveira (a chamada ‘tríade mediterrânica’). Esta cidade de Córdova era ainda, sem sombra de qualquer dúvida, um centro científico e cultural de primeira grandeza. Por exemplo, só na maior das suas 70 bibliotecas estavam depositados cerca de 600 mil livros, um número verdadeiramente espantoso se tivermos em linha de conta que a maior biblioteca da cristandade ocidental por esta altura não possuía mais de quatro centenas de trabalhos.

     A partir de 976, o Al-Andaluz foi governado pelo Califa Hisham II, que ainda criança sucedeu a seu pai, tendo, ao longo do seu reinado, deixado bem patente a sua incapacidade governativa. Na verdade, quem, de facto, passou a governar este território foi o seu hajib (condestável) Abu Amir Muhammad ben Amir al-Maafíi, caudilho que, graças aos seus sistemáticos êxitos militares, recebeu o epíteto de al-Mansur (Almançor), ou seja, ‘O Vitorioso’. Venceu os exércitos cristãos em mais de meia centena de devastadoras campanhas – chegou a arrasar Santiago de Compostela e o mosteiro de San Millán de la Cogolla, locais com um profundo simbolismo para o cristianismo peninsular. Na obra em apreço, este líder cordovês desempenha, é claro, um papel relevante.

     É nesta singular cidade, pois, que decorre uma importante parte da obra de Alberto S. Santos. A personagem principal é Ouroana, uma jovem da nobreza portucalense, filha do Governador do território de Anégia, cuja sede se situava no actual concelho de Penafiel. Ao longo das mais de quatrocentas páginas deste livro, escrito de forma fluida, segura e elegante, acompanhamos as vicissitudes pelas quais vão passando esta jovem de cabelos dourados e o lugar-tenente de seu pai, tanto no seu espaço cristão do norte peninsular, quanto nas desconhecidas terras meridionais sob o domínio islâmico. Estes são dois mundos em conflito e diametralmente opostos, tão discrepantes que – e cito – parecem constituir ‘diferentes épocas de evolução da humanidade’ – o primeiro, rude e eminentemente rural e senhorial; e o segundo, requintado, administrativamente bem organizado, urbano e comercial (a que acresce, como já referi, uma prática agrícola bastante desenvolvida e com óptimos resultados). Os seus templos são disto um bom exemplo: só Córdova contava então com cerca de 700 mesquitas, muitas delas imponentes e mesmo opulentas, bem diferentes das pequenas e recatadas igrejas do norte cristão.

     Este livro descreve, pois, algumas jornadas com um marcado cunho épico. O leitor acompanha as extraordinárias viagens de algumas personagens por territórios desconhecidos, com os consequentes e inevitáveis percalços habituais em deambulações dessa natureza. Estas personagens conhecem assim, pela sua própria experiência, aspectos de um mundo até então desconhecido e misterioso. A apreensão empírica dessas realidades vai obrigá-las a reequacionarem várias das suas crenças, suscitando-se, por via desse combate interior, um estado de maior lucidez que lhes permite assimilar melhor o mundo em que se movimentam, mas também, paralelamente, que lhes possibilita compreender aquilo que efectivamente é importante na existência humana.

     Neste sentido, atrevo-me a defender que, se esta obra é um excelente livro de aventuras, no sentido mais autêntico – e portanto nobre – da expressão, ele apresenta igualmente, como atrás referi, o despertar de várias consciências pessoais, pelo que, em conformidade, também realça a existência de algumas verdadeiras viagens iniciáticas – não nos esqueçamos que a Grande Tradição indica que ‘o oculto não é o que não se vê, mas o que se não entende’.

     Fica imediatamente claro ao leitor que, para escrever este seu trabalho, Alberto S. Santos empreendeu um notável labor de investigação. Não se pense, porém, que estamos em presença de um texto cerrado e quase hermético para quem não dispuser de significativos conhecimentos históricos. É que essa solidez documental não foi utilizada pelo autor para produzir uma obra num estilo enfatuado e professoral, mas sim para elucidar sobre aspectos históricos e culturais dos mundos cristão, judaico e muçulmano. Estas explicações, constituindo uma das mais-valias deste livro, são indispensáveis ao correcto desenvolvimento da sua intriga, com ela se harmonizando. A componente descritiva desta obra incorpora, em conformidade, uma vertente pedagógica assinalável: nas situações de batalha, por exemplo, a tipologia do armamento, as tácticas utilizadas, as motivações dos contendores, são aspectos tratados com todo o rigor, mas também com suficiente agilidade para que essas explanações não quebrem o ritmo da escrita. O mesmo poderia ser dito dos demais elementos do quotidiano em que as personagens se vão movimentando, sobressaindo, neste campo, os que têm a ver com parâmetros de requinte que a civilização do Al-Andaluz atingiu: os banhos, os produtos de beleza e os correlativos serviços dispensados aos que os podiam pagar e deles usufruir, o refinamento da gastronomia, o aprimoramento dos jardins, o esmero colocado na construção de estruturas arquitectónicas …

     Em algumas dessas descrições, Alberto S. Santos, com mestria, mergulha o leitor num turbilhão de odores, de texturas e de cores - componente sensitiva, aliás, bem ao gosto das gentes meridionais. Dou um exemplo do que afirmo, retirado do início do Capítulo XL: ‘Abdus encontrava-se sentado num banco de jardim da sua residência, sob um gracioso e frondoso ulmeiro. Ouvia-se o murmurejar da água que caía continuamente num tanque e ajudava a refrescar o ambiente. Nele se encontravam gerânios e nenúfares, quais luminosas estrelas flutuantes multicolores. Vermelho, cor-de-rosa, salmão… mas os mais belos eram amarelo-pêssego que se abriam de manhã e, quando fechavam, à noite, adquiriam já uma cor acobreada. As narinas de quem frequentasse aquele jardim não poderiam evitar o suave aroma dos nenúfares e das rosas trepadeiras carmesins.”.

     Não se pense, contudo, que o autor construiu um trabalho delicodoce e encomiástico sobre o esplendor do Al-Andaluz e que, por extensão, cedeu à tentação de cantar loas algo simplistas às virtudes da civilização islâmica, contemporizando com aqueles que ainda defendem o mito da sistemática e perdurável convivência pacífica das três religiões no sul da Península Ibérica. Tenho para mim que o facto de Alberto Santos também contribuir, com esta sua obra, ‘para resgatar do olvido a época de ouro […]’ do Al-Andaluz, para parafrasear o Professor Adalberto Alves, tal não significa que o autor tenha sido condescendente com os seus piores aspectos, que os desconheça ou que secundarize o facto, facilmente comprovável, de a invasão islâmica da Península Ibérica também ter aniquilado uma florescente e refinada cultura hispano-visigótica, de que eram epígonos personalidades como o erudito Santo Isidoro de Sevilha, os historiadores Idácio e Paulo Orosio, o filósofo João de Bíclaro ou, até, o Rei-poeta Sisebuto, por exemplo.

     Além do mais, acredito perfeitamente que Alberto S. Santos, ao pensar esta obra e ao desenvolver as suas linhas de evolução, tinha a clara consciência do facto de a sua estrutura apresentar significativas debilidades se apenas exibisse a faceta mais bondosa de uma civilização que, se expressou grandeza e esplendor em diversos domínios, também não deixou de assentar em certas traves-mestras que, hoje, não podem deixar de ser encaradas com aversão.

     Outra componente essencial à compreensão desta obra, em minha opinião, é a intransigente defesa que o autor faz dos princípios humanistas, encarados enquanto elementos que integram um sistema ético que tem no Homem, como diria Sartre, ‘o fim e o valor superior’. Ora, o autor defende que é através da componente espiritual que o ser humano acederá à plenitude desse humanismo que liberta de dogmatismos destrutivos e que constrói pontes de entendimento entre os indivíduos.

     Neste enquadramento, Alberto S. Santos não deixa de esclarecer que a mais importante forma de Jihad – ou seja, de Guerra Santa – é a ‘que se estabelece no interior de cada um contra as próprias tentações e defeitos, com vista à sua elevação moral e espiritual.’ (p. 194). Várias são as personagens que, nesse percurso, se vão procurando conduzir segundo princípios de justiça, de compaixão e de honra. O pai de Ouroana, o Conde Múnio Viegas, por exemplo, verbera os cristãos que, por diversos interesses pessoais, são coniventes com Almançor. E questiona: ‘Que honra têm esses desgraçados? Que recompensa esperarão no final dos seus dias? Que dirão os seus filhos, sabendo-os traidores?’ (p. 127). E o seu lugar-tenente, Ermígio, faz coro com o seu amo em matéria de honra, proclamando, a dado passo, a propósito da palavra dada: ‘Promessa é dívida.’ (p. 128). A defesa destes princípios e a abertura à compreensão das várias facetas da realidade circundante, levam algumas destas personagens a viver apaixonadamente a sua religião, mas através de vivências despidas de fanatismo, a ponto de expressarem que estão cientes que a sua própria religião contém princípios escritos – frequentemente levados à prática, de forma nefasta - que são desmandos, exageros e sinais de intolerância relativamente aos crentes de outras religiões. Veja-se, como bom exemplo disto que refiro, o diálogo entre o cristão Ermígio e o judeu Ben Jacob, no Capítulo XLIII. Nesta linha de pensamento, este último afirma: ‘A harmonia só se desfaz quando as questões religiosas se sobrepõem à boa convivência entre raças e credos.’. (p. 240).

     Ora, nesta outra transição de milénio, agora como há mil anos, a sociedade ocidental continua perpassada por temores de diversa índole, ou não fosse o medo um dos mais antigos e perenes inquilinos do coração humano.

     Num outro livro que viria a ser um dos seus últimos, Georges Duby (a quem me referi no início desta intervenção) apontou a existência de inquietações e de angústias na sociedade contemporânea e o facto de esta tender a virar-se para o passado, para as suas memórias, como uma forma de ganhar confiança e de apaziguar apreensões relacionadas com a possibilidade de perda da sua identidade cultural. Num mundo transformado numa “aldeia global”, para utilizar a feliz expressão de Marshall McLuhan, este tipo de receios ganha uma particular relevância. Há ainda outro género de temores que estão na ordem do dia. Um deles não pode deixar de ser referido aquando da abordagem a uma obra, como esta de Alberto S. Santos, que discorre acerca da civilização islâmica do Al-Andaluz e persiste em relembrar-nos – qual grilo de Pinóquio - que também nela o povo português tem raízes. Esse temor é o do actual terrorismo islâmico.

     Desde o 11 de Setembro de 2001 que as acções da Al-Qaeda e de outros grupos terroristas ganharam um novo fôlego – e maior tempo de antena – para atingirem objectivos ocidentais que são, na sua enorme maioria, de cariz ideológico, mais do que militar: sedes diplomáticas, homens de negócios e trabalhadores, turistas, igrejas, missionários e fiéis cristãos, sinagogas, hospitais. No mundo ocidental, não foram poucos os que procuraram encontrar explicações para este corrupio de atentados, as quais, em alguns casos, mais pareciam legitimações do que explicações…

     Ora, em 7 de Outubro de 2001, no Cairo, um terrorista da Al-Qaeda e porta-voz de Bin Laden apelou à Guerra Santa – “uma guerra entre o Islão e os infiéis”, como então referiu – e realçou a necessidade de recuperarem o Al-Andaluz, aspecto que o próprio Bin Laden reafirmou num vídeo divulgado aquando da sua celebração do primeiro aniversário dos atentados de 11 de Setembro. Em Julho de 2002, entretanto, militares marroquinos ocuparam o ilhote espanhol de Perejil e hastearam a sua bandeira, em sinal de soberania sobre este local, até que a Espanha respondeu com intensa actividade diplomática e com meios militares apropriados, recuperando o ilhote e pondo fim a esta insólita e provocatória actuação marroquina. Anos mais tarde, na manhã de 11 de Março de 2004, uma série de atentados terroristas sacudiram Madrid, causando 191 mortos e mais de 1500 feridos. E, desta vez, não foi obra da ETA, mas sim de terroristas islâmicos. E os exemplos poderiam multiplicar-se…

     Como é que nós, portugueses e espanhóis, deveremos abordar o nosso relacionamento com uma cultura frequentemente antagónica, mas que lança raízes na nossa história e que a marcou de forma indelével, como esta obra de Alberto S. Santos, A Escrava de Córdova, permite constatar? E, numa perspectiva mais ampla, como deve o mundo ocidental situar-se perante o Islão?

     Em minha opinião, parece-me muito avisada uma orientação de S. Paulo contida na sua 1.ª Carta aos Tessalonicenses: ‘Examinai tudo, guardai o que é bom. Afastai-vos de toda a espécie de mal.’.

     A este propósito, um escritor e poeta português manifestava-me, há dias, a sua opinião sobre este assunto, com a qual estou plenamente de acordo. Dizia-me ele: ‘Mediante leis equilibradas, o Mundo Democrático e livre, sem ceder a chantagens, tem de dizer firmemente: ‘pratiquem a vossa religião. Há liberdade para isso. Mas a sua prática não vos dá a prerrogativa de ultrapassarem os direitos humanos que tanto custaram a conquistar. A prática da vossa religião não pode consistir numa forma de obviar à prática da cidadania democrática, nem consentiremos que a ela se sobreponha. De contrário, é apenas um instrumento de pressão e subversão que não admitiremos!’’.

     Pelo que atrás deixo dito e para concluir, entendo que Alberto S. Santos, ao realizar esta obra, não só produziu um trabalho que divulga de maneira muito digna uma época insuficientemente conhecida pelos portugueses, mas que conduziria à construção da nossa nacionalidade; como escreveu um bom livro que nos entretém, nos ensina e - para os interessados - nos sugere caminhos seguros que deverão ser utilizados no nosso permanente esforço de aperfeiçoamento interior.

 *

JG – Licenciado em História da Arte e mestre em História de Portugal pela Universidade de Coimbra. Especialista em teoria artística e arte aplicada.


Aos confrades, amigos, adeptos e simpatizantes

     Devido a um problema informático de última hora, não nos será possível fazer a postagem desta semana.    Esperando resolvê-lo em breve,...