quinta-feira, 29 de abril de 2021

UMA FRASE LAPIDAR

 

  O homem honesto é aquele que luta contra o snobismo do embrutecimento, do conformismo e do não-conformismo, contra as religiões e os clãs, contra as falsas libertações e os valores duvidosos impostos pelas mafias político-religiosas – o homem honesto é aquele que muitas vezes se encontra só.

Robert Charroux


Para um minuto de meditação - 88

 

Duarte Lima julgado em Portugal



Julgamento de Duarte Lima pelo homicídio de Rosalina Ribeiro, no Rio de Janeiro, vai mesmo acontecer em Portugal — e não no Brasil, como pedia o ex-deputado.

(Dos jornais)


   Um homem de qualidade… bem portuguesa. Deputado, porta-voz de um partido do arco governamental… Homem de fé e muito sério… Apreciador e executante de piano… Amigo do seu amigo e causídico de talento… Atualmente prisioneiro modelo…

   Em resumo, um senhor que se tiver o azar de ser condenado vai deixar tristinhos muitos cavalheiros distintos como ele…Vida madrasta!

Jaime Sabino


Russell Edson, Uma viagem através do luar

 




Durante o sono quando o corpo de um ancião deixa
de conhecer os seus limites e jaz abatido pela
gravidade como um lago de cera na sua cama... Cai
em gotas até ao chão e ali se move como uma lágrima tombando
pelo queixo... Sob a porta das traseiras até ao campo prateado,
como um vaso de esperma, gelado sob a lua, como se voltasse à
sua primeira essência, invertebrado e absurdo.

A lua leva-o p’lo ar até à sua planície branca, uma nuvem
em forma de homem velho, com poros de estrelas.

Ele flutua através dos negros ramos altos, um cadáver emaranhado
numa árvore à beira do rio.


(Tradução de ns)

Nicolau Saião, Evocações espanholas

 

                                                                    A don Juan Valderrama

                                      A don Josep Andreu i Laserre (Charlie Rivel)

                                                                                       in memoriam

 

1.

 

   Por su gracia

 




   Juanito Valderrama ergue a voz e solta o seu cante grande. E abrem-se os céus. Os céus de Sevilha, entre renques de laranjeiras, entre os odores de Sevilha, ao pé da sombra da Giralda, ao pé da Catedral a propósito da qual o cardeal Pedralva disse “Faremos uma igreja tão imponente que os vindouros dirão que estávamos todos loucos!”.

  Canta Juanito em criança e canta depois de velho. Andaluz dos pés à cabeça, voz de plata policromada, canta “Las carretas del rocio”, “La rosa cautiva”, “La hija de Juan Simón”…Canta e no seu canto vibra o amor e a morte, o desespero e a mais funda alegria, o vigor e a altivez e a simplicidade varonil de um povo de pessoas e não de números. E com ele cantam, sem cantarem com ele, Pedro Martin, o “Chato de las vendas” que morreu de desgosto duas horas depois de saber, durante a guerra civil, que o iam fuzilar. E Jimenez Rejano com a sua voz de vendaval, e Caracol, e os irmãos Montoya, e Camarón, e Paco de Lucia com a sua guitarra trágica e poética. E a Niña de la Puebla, que canta aquela que é provavelmente a mais bela canção de amor já feita pela tradição popular e pelo génio desse povo: a comovente, exaltante, lírica e desgarradora “Campanilleros en los pueblos de mi Andalucia”.

  Mas canta também o maestro Pepe Marchena, de grave e doce voz de hombre y caballero. E o Niño de Penarrubia, essa fonte de pura água andaluza. E os anónimos dos tascos, do “venga vino”, os azeitoneiros de Jaén, os “niños del mar” de Almeria, os minericos de Linares e Cartagena. E cantam o quê?

  Os fandanguillos, as alegrias, as seguidillas e as campanilleras do flamenco – que é a meu ver a maior invenção musical e cantaora já feita pelo povo. E onde ressoa a dignidade, a paciência, os momentos de fruição dessas gentes anónimas e pobres – mas tão ricas! – esses “gitanos de aristocrácia/ cantaores de cante grande/ flamenco en sus quatro ramas” que souberam erguer a figura entre os solavancos do tempo e os volteios das cordas das guitarras.

  Juanito Valderrama… Hombre! Toma mi pañuelo blanco para limpiarte la cara!

 

2.

 

    Em Louvor dos Palhaços




   Não por simbolismo mais ou menos evidente, não por se estar em tempo de clowns, de malabaristas, de hipnotizadores e de ilusionistas – mas sim por no fim do inverno a memória parecer mais nostálgica, intercedendo pelos tempos de grandes alegrias, de viagens interiores, de meandros que se acariciam com a palavra, com a recordação. Um mundo juvenil de circo, fremente e encantado.

   Charlie Rivel, que vi ao vivo em Madrid numa tarde de surpresas, no decorrer duma matinée inesquecível, com o seu lentíssimo andar, com as suas pequenas frases entrecortadas, com o seu huuuuuu! de rosto rodando para o céu, esse som surpreendente pontuando as estorinhas comoventes, terríveis e poéticas daquele que foi considerado o melhor palhaço do mundo.

   E os Irmãos Campos, portugueses retintos num elenco circense todo composto por húngaros de Linda-a-Pastora, por franceses do Cadaval, por italianos da Madragoa? E Oscarito, o palhaço bailarino com as pernas de arame que todo se desconjuntava quando Simeão, o palhaço-rico, o submetia a rudes diálogos de que aliás saía mal-ferido? E que com o seu serrote-violino, com a sua trompete destravada, com o seu saxofone bicéfalo nos levava por todos os lugares onde o sonho podia acontecer?

  E – posto que agora por fora – as distintas partenaires que eram jovens em início de carreira ou madames a finalizá-la, mas inteiramente frequentáveis para olhos adolescentes (um toquezinho de inusitado que ainda lhes conferia mais sedução…)?

  Deixem que me lembre desses anos de vinho e rosas… Em Portalegre por todo o Rossio, em frente do antigo campo da bola, por detrás da belíssima cascata do jardim barroco infelizmente passado à estória da História, quando ainda lá havia uma esplanada de Café sob um cedro do Líbano, onde pelas tardes a rapaziada hoje madura ia deslumbrar-se nos serões de província…

  Deixem que me recorde - como se, com vossa licença, tasquinhasse expeditamente um pacote de amendoins, antes de entrarem os trapezistas, os domadores, os hipnotizadores e outros acrobatas.

                                                                                                                                             

Nota: Aos interessados, sugerimos as biografias:

 

António Burgos,“Mi España querida”, introdução de Juan Manuel Serrat, (“La esfera de los libros”)

 

Sebastià Gasch, “Charlie Rivel, pallasso català “, (Ed.Alcides, Barcelona) 

 

ns


Juanito Valderrama, El emigrante

 



segunda-feira, 26 de abril de 2021

UMA FRASE LAPIDAR

 

“A arte revolucionária não é a que exibe um conteúdo de propaganda, mas aquela que apresenta com originalidade e autenticidade os sentimentos do Homem”.

Sarane Alexandrien


Para um minuto de meditação - 87

 


ns



Artistas chineses têm de amar a pátria e o partido

   Governo chinês deu a conhecer 10 mandamentos sobre conduta e ideologia que detalham penas que podem ir até à expulsão.

(Dos jornais)

 

   Em Portugal são mais discretos. Dão subsídios a quem for amável para com o regime, tornam invisíveis os artistas incómodos, festejam os que com a sua ideologia elevam a pátria “proletária” e possibilitam que os génios por via político-administrativa se vão da lei da morte libertando.

    São mais “discretos e civilizados” (mais hipócritas) que os chineses, que levam tudo à bruta.

Carlos Toscano


Nicolau Saião, O elogio do cretino

 


Mayté Bayon



(Dedicado, com apreço, aos cretinos lusos & estrangeiros)


Devo dizer

que gosto de cretinos. Não, garanto que não é por piedade

mas por apreço convicto. Talvez com uma pontinha de malícia

mas sem acinte nem ferrete. Uma (como dizer?) maneira

de tímida ternura.

Afinal - não é verdade? - o cretino

é uma espécie humanoide altamente meritória

e multifacetada: vive connosco à mão de semear, conhecemo-lo

das ruas, vemo-lo

na TV, lemo-lo nos jornais… Ele acompanhou sempre

nos mais expressos lugares

a rude humanidade

desde o fundo dos tempos, desde os primórdios

da vida. À roda da fogueira

lá nas épocas longínquas do período quaternário

quando ainda não havia cretinices modernas (televisão, rádio

parlamento…) podeis crer que já havia, embora hirsuto

um ou outro cretinus sapiens. E pelos tempos fora

na idade dos ancestros da pré-história

que seria dos inícios adequados

da social organização

sem um par de cretinos a adorná-la?

 

Seja na arte ou na literatura

nos ramos do saber que o mundo louva

ou demais regras e ofícios

como poderiam os cretinos dispensar-se?  Cretino foi, ao acaso

o tolo do Caim, ou o pobre do Job

ou – na quadra das letras – o bom do Pinheiro Chagas

que teve a parvoíce de ser contemporâneo

do Eça magricelas.

E nos domínios vicejantes da pintura

o tremendo Bouguereau, que dizia de Cézanne

que este só fazia borradelas.

Ou nos salões do espírito

sagrado

o magistral Bossuet, a águia de Mons

que Deus tenha bem guardado.

Enfim, nobres exemplos

de douta cretinice. Pois o cretino é plural

e em todo o lado sabe imiscuir-se.

 

(Aqui um aparte

para os estudiosos de gabinete: não deve confundir-se

o propriamente cretino, cretinus boçalis, com o pedaço-de-asno

que, sendo semelhante – a olhares sem estética – claramente

pertence

a outra espécie cinegética).

 

Na boa sociedade, naquilo a que se chama

a melhor sociedade, a tal que se pauta por livros de etiqueta

escritos em geral por excelentes senhoras – às vezes

excelentes cretinas –

o patarata é um valor seguro: já pensaram

que seria das páginas sociais de afidalgados

ou mesmo só de notáveis burgueses agregados

sem um ror de cretinos e cretinas interessados

em lhes saber da folha, em lhes saber dos fados?

 

A vida sem cretinos

é como um lar sem pão, teatro sem enredo, jardim

sem flores ou passarinhos (olha que imagem cretina!),

como dizem as poetisas de arrabalde

com vaporosa graça

quase divina.

 

Numa recepção de Estado, no salão duma autarquia,

numa cerimónia de homenagem a um

que nada fez mas morreu tarde

ou demasiado cedo, co’os diabos do talento

seja na capital ou na feliz província

a presença de cretinos é uma joia sem preço:

são os que convictamente

mais aplaudem, sem maldade

nem cálculo traiçoeiro

ou gritam apoiado

criando felicidade

no elenco inteiro

ou mais valia, nas forças vivas da cidade.

(E em geral,

por ironia do destino

o orador habitual

é que costuma ser, por sinal

o maior cretino!)

 

Sim. Gosto de palonços. Ei-los que desfilam: na política,

no professorado

na res publica (que, como se sabe, significa coisa pública

– dou o esclarecimento

não esteja algum cretino a ler-me) o palonço

é fundamental.

Quem diz palonço diz palonça (explico já

não vá

alguma feminista cretina

pensar que o meu poema a discrimina).

A cretinice pura

é algo de adorável como tudo o que é puro:

um puro mel, um puro amor, uma pura

doidice, uma pura miséria…

 

Mas para que o cretino seja esplêndido

necessita de ambiente a condizer: bons ares e boas águas, está claro

mas também uma família recheada de atenções e de cuidados,

ao velho estilo patriarcal, cultivando modelarmente

os sãos e pacientes

cretinos valores.

Não precisa, todavia

de ser fundamentalista praticante

desses conceitos sem jaça: ele há tanto cretino oriundo

de meios inconvencionais! Como o cacto, o cretino

adapta-se a qualquer terreno, por mais adusto que seja!

 

Façamos-lhe justiça: o cretino, digamos, é como

um livro aberto - o que ali está

não engana. Por isso tantos cretinos, por serem senhores

graves e concentrados

até chegam a ministros,

a assessores,

a deputados.

(Também sucede que alguns

no entanto

nunca passam de criados…).

 

O cretino estimula as próprias artes, as próprias letras. Até a filosofia!

Lembremos

as expressões fenomenal cretino, cretino piramidal, cretino apimentado,

cretino até dizer basta. Enfim, altos jogos verbais como

tudo o que o humano engenho inventa. Já houve quem dissesse

que ele é como as castanhas: nem sempre

as maiores são as mais saborosas!

 

Os cretinos rurais…

Os cretinos citadinos…

Os cretinos intermédios

sociais, profissionais…

Os viandantes cretinos…

 

Enfim, não divaguemos!

 

Vou, então, terminar.

Meter um ponto final

antes que, impaciente

o leitor inteligente

me apode gentilmente

de redundante ou, até,

de chatarrão

 

- espécie de parente

maganão

que também merece versos!

 

ns


Do livro recentemente publicado “A escrita e o seu contrário)


Lino Mendes, Crónica na VERTICAL

 




A nossa identidade não tem preço


   Não obstante o Ministério respectivo o ter reconhecido oficialmente como “Cultura Tradicional”, o Folclore caiu neste período da pandemia na sua maior confusão de sempre, o que eu considero impensável e nada abonador da nossa cultura. E muito especialmente porque figuras cimeiras do momento não sabem interpretar a “convenção de 2003 da UNESCO” e há anos que se vem considerando com uma ligeireza irresponsável o CIOFF(*) como tradicional e folclore.

   Trata-se de três patrimónios imateriais, mas apenas um é folclore, aquele que assenta no autêntico, no tradicional. no identitário. A convenção - e basta ser convencionado para não ser folclore - assenta no constantemente transformado, na criatividade. Podemos até dizer que cada um é aquilo que o outro não pode ser.

   Para agravar a situação, o senhor Presidente da Federação defende em artigo do jornal Folclore que se deve à UNESCO o folclore não ter cortado com o passado, quando foi isso mesmo que ela fez com a convenção. Aliás, numa carta que a mesma UNESCO nos enviou, deixa bem claro que sendo o folclore a “tradição do passado”, a convenção dá-nos a “a tradição do contemporâneo”.

   Agora e quanto ao CIOF, é a situação mais absurda que se encontra na nossa cultura.

   Como é possível haver ali o folclore e o tradicional, se os respectivos festivais devem estar em conformidade com a Convenção da Salvaguarda do Intangível Património Cultural da UNESCO, isso é incluídos na tal “tradição do contemporâneo”. E como consequência de tudo isto temos cá o CIOFF PORTUGAL sem que os nossos grupos respeitem o regulamento, embora participem em festivais e organizem alguns dos mesmos.

   E uma nota final na mesma linha: a Federação organizou a Carta Tradicional do Folclore Português, que no fundo é a Carta Tradicional da Convenção de 2003.

   Já disse tudo o que tinha a dizer sobre a matéria, e já pedi o contraditório, mas ninguém contesta embora sigam por outros caminhos. Mas quem me conhece sabe que mais do que impor a minha ideia, importa clarificar a situação.

   Claro que isto é uma simples síntese do muito que se pode dizer para chegar ao pormenor.

   E, curioso, os amigos com quem agora estou em contradição são pessoas com os quais muito aprendi.

   Deixe-se, entretanto e aqui este REGISTO!

(*) - Grupos do CIOFF são aqueles que só aparecem em especial no verão, para participar dizem eles, em festivais internacionais de folclore, mas são escolas e companhias por vezes profissionais de dança, com coreógrafos. Nada têm de tradicional.

     Já o demonstrei fundamentando e ninguém apareceu a contestar. Fi-lo inclusivamente junto do Ministério da Cultura.

                                     (Nota do autor)

 

Lino Mendes


Rodrigo Leão, O retiro

 



quinta-feira, 22 de abril de 2021

UMA FRASE LAPIDAR

 

“Um Estado que não se regesse segundo a justiça, reduzir-se-ia a um bando de ladrões”

Agostinho de Hipona (354-430)


Para um minuto de meditação - 86

 



Tudo se resume a uma única palavra: medíocre.

Medíocre a governar, medíocre a liderar o partido, medíocre a mentir, medíocre a defender-se.

Mas talvez não tão medíocre como os que o guindaram à posição que atingiu, o seguiram acefalamente dentro do partido, ainda lá estão como se nada tivesse sido com eles, e o protegeram até ao fim.

Sérgio de Almeida Correia

 

  Mais que uma personagem, Sócrates é hoje um sintoma, um case study. Nós interrogamo-nos, perplexos, como é que um tipo assim, profissional medíocre, escrevente medíocre e medíocre personalidade mitómana que punha amigos a comprar livros para subir no ranking, pôde ser primeiro-ministro e “menino de ouro do PS”. Só o ambiente do seu tempo, analisado pelos estudiosos do ramo, explicará tal facto surpreendente.

Helena Monteiro

 

  O que deveria ter sido a oportunidade de ouro de vincar uma Justiça imune ao peso político e financeiro, uma viragem para um tempo novo, no qual aos poderosos não é permitido ‘cuspir na sopa’, acabou por ser uma entrega de bandeja aos popularuchos de discurso vazio que se espezinham para trepar ao poleiro do gamanço.

Pedro Abrunhosa

 

  Medina e Vieira da Silva já vieram espingardear o ex-“animal feroz da política” que hoje é mais uma anedota a liquidar. Quanto demorará que o próprio Galamba, fósquinhas-mor do reino, em breve venha fazer o mesmo? Sócrates, este pássaro bisnau espertalhão como se julga, não sabia que “quem se mete com o PS leva”? Dentro em pouco não será mais que um frangalho, sendo já uma caricatura risível dele mesmo.

Alfredo Lamparina


António Salvado, Poemas

 




“E DE SORRISO EM SORRISO…”

 

E de sorriso em sorriso

isso bastou   para amarem-se:

dizendo frugais palavras

mas sonoras de sentidos.

Nas langues horas vividas

era no silêncio grave

que os seus olhos se exaltavam,

que as suas bocas bebiam.

E quando os dedos se uniram,

quando as mãos s’entrelaçaram,

a noite havia surgido

como intenção desejada.

Depois    sem rumo partiram

para o amor consumarem.   

 

“UM FIO D’ÁGUA…”

 

Um fio d’água foi o teu passar

tão fugidio que os meus olhos    presos

àquele movimento de surpresa

quase sem ver    mas vendo-te    ficaram.

 

Tua figura esguia meneava-se

como folhas vernais dum arvoredo

que uma brisa veloz tivesse aflado

subitamente para mais crescerem.

 

E assim cruzaste a minha solidão

sorrindo tão de leve que nem lembro

se para mim olhaste    em tal exílio.

 

Mas satisfez o que me deste    então:

que uma fonte escondida existe sempre

capaz de brotar água: seja um fio.

 

“A COROA DE NÉVOA…”

 

A coroa de névoa

que sobrevoa a vila

será a porta aberta

ao começo do dia.

Permite penetrar-se

lenta    serenamente

por cores matizadas

que a coloram    também.

A pouco e pouco deixa

em pequenos fragmentos

que por ela se veja

o casario    além.

E janelas    que se abrem,

escancaradas portas:

o bulício usual

de tudo o que se move –

o repassar das gentes

trocando vãs palavras,

ou animais que arrastam

consigo iguais lamentos…

A névoa fugiu    longe,

e outra névoa    começa

em diverso horizonte

d’incertezas    nublado

e cada vez mais perto:

do dia a dia as mágoas

e ninguém que as impeça.


Sobre António Salvado

 

“DUAS PALAVRAS SOBRE ANTÓNIO SALVADO: O HOMEM E O CIDADÃO, O AUTOR PLURAL” 



João Garção, Óleo sobre cartão


(Intervenção de NS, apresentado por Fernando Paulouro, no Colóquio Internacional de Castelo Branco dedicado a AS).

 

    INTRODUÇÃO  

 

   Muito boa tarde minhas senhoras e meus senhores.

 

   Ao iniciar a minha comunicação, saudando os presentes com muito apreço, peço licença para citar um trecho da carta que há dias enviei aos confrades com que habitualmente me correspondo e aos quais vou dando conhecimento dos tratos públicos em que me envolvo:

 

   No dia 25 estarei em Castelo Branco - entre muitos outros autores - a apresentar uma Comunicação no âmbito da homenagem (Colóquio internacional) a António Salvado levada a efeito pela autarquia albicastrense, a quem felicito vivamente pela iniciativa.

 

  A minha intervenção encarará o poeta nas suas vertentes de homem solidário, cidadão honrado e autor excelso, cuja estatura e cuja figura nunca se macularam com o cinismo do politicamente correcto, a hipocrisia e a pedante sofreguidão de notoriedade apoiada num vazio frequentemente muito em voga.

  A sua obra de tradutor, de ensaísta, de poeta, de professor e de museologista aí está para o certificar.

 

  E é assim que, embora excursionando em universos conceptuais-literários diferentes, ainda que próximos e irmanados – tenho todo o gosto (além da natural subida honra pelo convite que me dirigiram) em estar presente e dar testemunho conferido por muitos anos de convívio intelectual e pessoal com o Autor de "O extenso continente" e tantos outros importantes textos suscitadores, pois o verdadeiro poeta é não só o inspirado mas também aquele que inspira.

 

 1.

   Disse um dia o filósofo Anacársis, (século VI antes da nossa era) numa frase depois célebre, que "Há três espécies de homens: os vivos, os mortos e os que andam no mar".  

 

   Estabelecia ele, assim, uma excepcionalidade que séculos mais tarde John Milton completaria juntando-lhe outra espécie de navegadores: os poetas. 

 

  O grande autor de "O Paraíso perdido", sem ironias ou inflexões de efeito mas pautado por razões muito próprias (Milton cegara, o que não o poupou contudo a espúrias hostilidades de outros mais cegos que ele...) e não esquecida decerto a proposta platónica de que os poetas deviam ser expulsos da polis, afixava a pergunta - como já se fez na nossa época mais ou menos fáustica mas corroída por estranhezas: serão os poetas sobreviventes? Sobreviventes de uma espécie muito própria e num continente de qualidade, pelos menos os que o são efectivamente e não meros rimadores ou proto-líricos estipendiados ou capturados por interesses de sector a que se juntam, coincidindo, os seus interesses próprios... 

 

   E, nesta perspectiva e uma vez que a agenda dos poetas, em todas as épocas, não só estabelece um perfil como propõe uma figura significante das incursões que o ser humano efectua tanto por dentro como por fora, digamos que essa sobrevivência é afinal o sinal mais claro da sua permanência no tempo e do seu direito a existir nos tempos que lhe foram dados viver.

 

   “O que permanece os poetas o fundam”, disse Novalis. E, além de o fundarem, o propõem a toda a humanidade, acrescentaríamos nós na linha do que um dia pensou e exarou Lautréamont para conferir que na verdade o que está em baixo é como o que está no alto, para que se faça o milagre de uma só coisa.

 

Anos se leva a descobrir a pátria:

a terra onde existir   p´ra sempre a salvo,

o barro que há-de    modelar a alma,

a língua a ser sabida   a ser falada.

E que os rios e serras e que mares

e que cidades grandes    ou lugares,

que plantas  animais   vão habitar

essas paisagens virgens   a brotarem.

 

Porque o amor  — uma conquista lenta —

precisa de passado e de presente

quando constrói os elos do futuro;

 

que a pátria seja    em ânsia   toda a gente —

de mãos nas mãos   e olhos indif´rentes

a quem não queira partilhar o fruto.




ns


Como disse num dos seus ensaios Jorge Luis Borges, “A linguagem não esgota a expressão da realidade”.

 

    Efectivamente é necessário mais qualquer coisa. E essa qualquer coisa afinal tão poderosa e criadora e que poderíamos definir como o íntimo fulgor de uma iluminada inspiração visando o que está fora e o que está dentro, é do inteiro conhecimento de António Salvado.

 

  Eu diria: sem alardes, sem sobressaltos até, granjeada e fruída duma forma tão natural e tão serena, tão filha duma quase silenciosa maneira de existir, que me apeteceria trazer aqui à colação – e porque estamos a contas com um amigo de Marcial e de Juvenal – a frase de um grande cultor dos clássicos, Lord Halifax:” O verdadeiro mérito é como os rios, quanto mais profundo menos ruído faz”.

 

 2.

Em 2010, na revista do espaço literário TRIPLOV dei a lume sobre o poeta de “Interior à luz” um bloco que, um par de anos após, sairia na forma de antologia mínima sob a chancela da Sirgo.

   Permitam-me que cite a pequena introdução.

   Referi eu nela Há, neste acervo, um verso que a meu ver descreve com exactidão o mundo da escrita de António Salvado: “só a natureza purifica os sons”, diz ele a dada altura no poema dedicado a Claudio Rodriguez. (Claudio Rodriguez, sublinho, ou seja: um dos poetas europeus onde a natureza se confrontou decisivamente com os sons duma modernidade assumida, reencaminhada nos troços vicinais de um continente que não perdera de vista a claridade da Grécia mas sabia ser impossível não a tentar reconverter através do mergulho achado em Rimbaud e Dylan Thomas).

  Poeta da natureza, António Salvado? Sim, mas também da linguagem que a certifica, perpassa e ultrapassa. Conhecedor dos clássicos, sempre soube viajar – como fica patente nesta pequena antologia – pela comovida desconstrução da escrita.

  E, assim, é um contemporâneo tanto dos que se foram como de todos os outros que a seguir irão vindo”.

  Acrescentaria agora: poeta da nostalgia e da memória, duas linhas de força que norteiam grande parte da sua poesia, ainda que a sua lira se envolva noutras, quais sejam o apego àquilo que se observa na senda dum realismo caldeado pelas presenças do amor aos pequenos ritmos – aparentemente pequenos, sublinharia – à grande contemplação do que nos rodeia a todos e ao autor o rodeou em momentos que ele cifrou para lhes guardar a singularidade.

É NOITE, MÃE

As folhas já começam a cobrir 
o bosque, mãe, do teu outono puro... 
São tantas as palavras deste amor 
que presas os meus lábios retiveram 
pra colocar na tua face, mãe!... 

Continuamente o bosque se define 
em lividez de pântanos agora, 
e aviva sempre mais as desprendidas 
folhas que tornam minha dor maior. 
No chão do sangue que me deste, humilde 
e triste, as beijo. Um dia pra contigo 
terei sido cruel: a minha boca, 
em cada latejar do vento pelos ramos, 
procura, seca, o teu perdão imenso... 

É noite, mãe: aguardo, olhos fechados, 
que uma qualquer manhã me ressuscite!... 

   Versos esses que atingem noutro registo a fundíssima lembrança de presenças amadas e onde se percebe, para além do que se pressente, o sinal maior duma comoção que as palavras permitem evocar e, diria, tornar figura intensa duma re-ligação.


EPITÁFIO PARA MINHA MÃE

Porque sabias os caminhos

que encontrarias na viagem,

sem desaires nem labirintos

a tua vida foi a simples

maneira de atravessares

no mundo brenhas e neblinas.

 

Não precisavas de milagres

para aqueceres a tua crença:

afagos de serenidade,

os dias chegavam passavam

com a mesma limpidez quente

e mansa que a fé torna clara.

 

Desfolho rente à tua campa

os ramos de malvas: lembranças

do cálido peregrinar

das contas puras do rosário

que os dedos do amor rezaram

à espera de um céu alcançado.

 

   Um outro timbre na obra de António Salvado é-nos dado pelo senso de humor crítico e pela ironia, crespa mas afável (como sabem uma por vezes não desdenha a outra…até a implica) bem patentes nos seus epigramas e quadras (im)populares, como ele as designou. Mas eu preferiria colocar o acento tónico na sua atenção às coisas simples, a essas coisas simples da natureza reconfigurada e dos quotidianos transmutados pela apreensão do que de verdadeiramente imenso têm em si.

Foi nas perenes coisas que aprendi

a ser: a casa do amor cercada

de ruas que subiam junto ao fim

do céu que sempre mais se prolongava,

 

de longo mudos maternais jardins

onde as eternas flores eram lagos

de fragrância ofegante colorida

e os lagos sol em água mergulhado.

 

E nela: o pão cantado sobre a mesa,

a bilha da ternura a renascer,

a pureza do linho a dedilhar

as palavras nos lábios entoadas…

 

deito longe a saudade: permanece

a casa do amor, em mim, perene.

 

  Não poderei nem quererei passar de forma leve sobre a sua figura de tradutor. E dou relevo à maneira como colocou em língua portuguesa, salubre e luminosa, autores como Ricardo Paseyro, Cláudio Rodriguez, Harold Alvarado Tenório ou o aqui presente, em boa hora, Alfredo Pérez Alencart. Nem a mão certeira com que colocou em verso, por exemplo, o bom e jucundo Apuleio.

 

   A finalizar estas necessariamente breves reflexões, eu gostaria de dar também relevo, duma forma tangível, ao homem solidário, ao companheiro que, no que me diz parte, por duas vezes assumiu fraternidade frontal e pública e ao qual cabem inteiramente as



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palavras de António José de Almeida que rezam:” Não basta apenas possuirmos a posição erecta, é necessário que firmemente nos mantenhamos nela”.

   Pelas nossas obras, pelo todo com que iremos passar para o pouco ou o muito que nos couber de permanência no porvir? Sem dúvida, arrisco dizer, mas também pela qualidade humana, de ligação aos grandes temas da existência, a saber: a dignidade, o respeito pelos outros e por nós próprios, tudo o que é honrado e que permite que respondamos, a alguém que um dia disse: “O autor de talento não é necessariamente uma boa-pessoa!”, desta maneira muito simples, muito concreta e assaz acertada: “Sim. Mas cremos que será sempre uma pessoa boa!”.

   E como as grandes realidades da vida não podem ser, nunca são afinal, ultrapassadas ou postas de lado com piruetas ou com esquivanços, eu afixo aqui a minha consideração, a minha estima e o meu apreço intelectual e humano por esta pessoa boa a quem endosso o meu abraço firme e a quem tomarei a liberdade de chamar, a terminar: meu querido Poeta, meu querido Amigo António Salvado!

 

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Aos confrades, amigos, adeptos e simpatizantes

     Devido a um problema informático de última hora, não nos será possível fazer a postagem desta semana.    Esperando resolvê-lo em breve,...