“DUAS PALAVRAS SOBRE ANTÓNIO SALVADO: O HOMEM E O CIDADÃO, O AUTOR PLURAL”
João Garção, Óleo sobre cartão
(Intervenção de NS, apresentado por Fernando Paulouro, no Colóquio
Internacional de Castelo Branco dedicado a AS).
INTRODUÇÃO
Muito
boa tarde minhas senhoras e meus senhores.
Ao
iniciar a minha comunicação, saudando os presentes com muito apreço, peço
licença para citar um trecho da carta que há dias enviei aos confrades com que
habitualmente me correspondo e aos quais vou dando conhecimento dos tratos
públicos em que me envolvo:
No dia 25 estarei em Castelo Branco - entre
muitos outros autores - a apresentar uma Comunicação no âmbito da homenagem
(Colóquio internacional) a António Salvado levada a efeito pela autarquia
albicastrense, a quem felicito vivamente pela iniciativa.
A minha intervenção encarará o poeta nas suas
vertentes de homem solidário, cidadão honrado e autor excelso, cuja estatura e
cuja figura nunca se macularam com o cinismo do politicamente correcto, a hipocrisia
e a pedante sofreguidão de notoriedade apoiada num vazio frequentemente muito
em voga.
A sua obra de tradutor, de
ensaísta, de poeta, de professor e de museologista aí está para o certificar.
E é assim que, embora
excursionando em universos conceptuais-literários diferentes, ainda que
próximos e irmanados – tenho todo o gosto (além da natural subida honra pelo
convite que me dirigiram) em estar presente e dar testemunho conferido por
muitos anos de convívio intelectual e pessoal com o Autor de "O extenso continente" e tantos
outros importantes textos suscitadores, pois o verdadeiro poeta é não
só o inspirado mas também aquele que inspira.
1.
Disse
um dia o filósofo Anacársis, (século VI antes da nossa era) numa frase depois
célebre, que "Há três espécies de homens: os vivos, os mortos e os que
andam no mar".
Estabelecia
ele, assim, uma excepcionalidade que séculos mais tarde John
Milton completaria juntando-lhe outra espécie de navegadores: os poetas.
O grande autor de "O
Paraíso perdido", sem ironias ou inflexões de efeito mas pautado por razões muito próprias (Milton
cegara, o que não o poupou contudo a espúrias hostilidades de outros mais cegos
que ele...) e não esquecida decerto a proposta platónica de que os poetas
deviam ser expulsos da polis, afixava a pergunta - como já se fez
na nossa época mais ou menos fáustica mas corroída por estranhezas: serão os
poetas sobreviventes? Sobreviventes de uma espécie muito própria e
num continente de qualidade, pelos menos os que o são
efectivamente e não meros rimadores ou proto-líricos estipendiados ou
capturados por interesses de sector a que se juntam, coincidindo, os seus interesses próprios...
E, nesta perspectiva e uma vez que a agenda dos poetas, em todas as
épocas, não só estabelece um perfil como propõe uma figura significante das
incursões que o ser humano efectua tanto por dentro como por fora, digamos que
essa sobrevivência é afinal o sinal
mais claro da sua permanência no tempo e do seu direito a existir nos tempos que lhe foram dados viver.
“O que permanece os poetas o fundam”,
disse Novalis. E, além de o fundarem, o propõem a toda a humanidade,
acrescentaríamos nós na linha do que um dia pensou e exarou Lautréamont para
conferir que na verdade o que está em
baixo é como o que está no alto, para que se faça o milagre de uma só coisa.
Anos se leva a
descobrir a pátria:
a terra onde
existir p´ra sempre a salvo,
o barro que
há-de modelar a alma,
a língua a ser
sabida a ser falada.
E que os rios e
serras e que mares
e que cidades
grandes ou lugares,
que plantas
animais vão habitar
essas paisagens
virgens a brotarem.
Porque o
amor — uma conquista lenta —
precisa de passado
e de presente
quando constrói os
elos do futuro;
que a pátria
seja em ânsia toda a gente —
de mãos nas mãos
e olhos indif´rentes
a quem não queira
partilhar o fruto.
ns
Como disse num dos seus ensaios Jorge Luis Borges, “A linguagem não esgota a expressão da
realidade”.
Efectivamente é
necessário mais qualquer coisa. E essa qualquer
coisa afinal tão poderosa e criadora e que poderíamos definir como o íntimo
fulgor de uma iluminada inspiração visando o que está fora e o que está dentro,
é do inteiro conhecimento de António Salvado.
Eu diria: sem
alardes, sem sobressaltos até, granjeada e fruída duma forma tão natural e tão
serena, tão filha duma quase silenciosa maneira de existir, que me apeteceria
trazer aqui à colação – e porque estamos a contas com um amigo de Marcial e de
Juvenal – a frase de um grande cultor dos clássicos, Lord Halifax:” O verdadeiro mérito é como os rios, quanto
mais profundo menos ruído faz”.
2.
Em 2010,
na revista do espaço literário TRIPLOV dei a lume sobre o poeta de “Interior
à luz” um bloco que, um par de anos após, sairia na forma de antologia
mínima sob a chancela da Sirgo.
Permitam-me que cite a pequena introdução.
Referi eu
nela “Há, neste acervo, um verso que a meu ver descreve com exactidão o
mundo da escrita de António Salvado: “só a natureza purifica os sons”,
diz ele a dada altura no poema dedicado a Claudio Rodriguez. (Claudio
Rodriguez, sublinho, ou seja: um dos poetas europeus onde a natureza se
confrontou decisivamente com os sons duma modernidade assumida, reencaminhada
nos troços vicinais de um continente que não perdera de vista a claridade da
Grécia mas sabia ser impossível não a tentar reconverter através do mergulho
achado em Rimbaud e Dylan Thomas).
Poeta da
natureza, António Salvado? Sim, mas também da linguagem que a certifica,
perpassa e ultrapassa. Conhecedor dos clássicos, sempre soube viajar – como
fica patente nesta pequena antologia – pela comovida desconstrução da escrita.
E, assim, é
um contemporâneo tanto dos que se foram como de todos os outros que a seguir
irão vindo”.
Acrescentaria agora: poeta da nostalgia e da
memória, duas linhas de força que norteiam grande parte da sua poesia, ainda
que a sua lira se envolva noutras, quais sejam o apego àquilo que se observa na
senda dum realismo caldeado pelas presenças do amor aos pequenos ritmos –
aparentemente pequenos, sublinharia – à grande contemplação do que nos rodeia a
todos e ao autor o rodeou em momentos que ele cifrou para lhes guardar a
singularidade.
É NOITE, MÃE
As folhas já começam a
cobrir
o bosque, mãe, do teu outono puro...
São tantas as palavras deste amor
que presas os meus lábios retiveram
pra colocar na tua face, mãe!...
Continuamente o bosque se define
em lividez de pântanos agora,
e aviva sempre mais as desprendidas
folhas que tornam minha dor maior.
No chão do sangue que me deste, humilde
e triste, as beijo. Um dia pra contigo
terei sido cruel: a minha boca,
em cada latejar do vento pelos ramos,
procura, seca, o teu perdão imenso...
É noite, mãe: aguardo, olhos fechados,
que uma qualquer manhã me ressuscite!...
Versos esses que atingem noutro registo a
fundíssima lembrança de presenças amadas e onde se percebe, para além do que se
pressente, o sinal maior duma comoção que as palavras permitem evocar e, diria,
tornar figura intensa duma re-ligação.
EPITÁFIO PARA MINHA MÃE
Porque sabias os
caminhos
que encontrarias
na viagem,
sem desaires nem
labirintos
a tua vida foi a
simples
maneira de
atravessares
no mundo brenhas e
neblinas.
Não precisavas de
milagres
para aqueceres a
tua crença:
afagos de
serenidade,
os dias chegavam
passavam
com a mesma
limpidez quente
e mansa que a fé
torna clara.
Desfolho rente à
tua campa
os ramos de
malvas: lembranças
do cálido
peregrinar
das contas puras
do rosário
que os dedos do
amor rezaram
à espera de um céu
alcançado.
Um outro timbre na obra de António Salvado
é-nos dado pelo senso de humor crítico e pela ironia, crespa mas afável (como
sabem uma por vezes não desdenha a outra…até a implica) bem patentes nos seus
epigramas e quadras (im)populares, como ele as designou. Mas eu preferiria
colocar o acento tónico na sua atenção às coisas simples, a essas coisas simples da natureza reconfigurada
e dos quotidianos transmutados pela apreensão do que de verdadeiramente imenso têm
em si.
Foi nas perenes
coisas que aprendi
a ser: a casa do
amor cercada
de ruas que subiam
junto ao fim
do céu que sempre
mais se prolongava,
de longo mudos
maternais jardins
onde as eternas
flores eram lagos
de fragrância
ofegante colorida
e os lagos sol em
água mergulhado.
E nela: o pão
cantado sobre a mesa,
a bilha da ternura
a renascer,
a pureza do linho
a dedilhar
as palavras nos
lábios entoadas…
deito longe a
saudade: permanece
a casa do amor, em
mim, perene.
Não poderei nem
quererei passar de forma leve sobre a sua figura de tradutor. E dou relevo à maneira
como colocou em língua portuguesa, salubre e luminosa, autores como Ricardo
Paseyro, Cláudio Rodriguez, Harold Alvarado Tenório ou o aqui presente, em boa
hora, Alfredo Pérez Alencart. Nem a mão certeira com que colocou em verso, por
exemplo, o bom e jucundo Apuleio.
A finalizar estas necessariamente breves
reflexões, eu gostaria de dar também relevo, duma forma tangível, ao homem
solidário, ao companheiro que, no que me diz parte, por duas vezes assumiu
fraternidade frontal e pública e ao qual cabem inteiramente as
ns
palavras
de António José de Almeida que rezam:” Não
basta apenas possuirmos a posição erecta, é necessário que firmemente nos
mantenhamos nela”.
Pelas nossas obras, pelo todo com que iremos
passar para o pouco ou o muito que nos couber de permanência no porvir? Sem
dúvida, arrisco dizer, mas também pela qualidade humana, de ligação aos grandes
temas da existência, a saber: a dignidade, o respeito pelos outros e por nós
próprios, tudo o que é honrado e que permite que respondamos, a alguém que um
dia disse: “O autor de talento não é
necessariamente uma boa-pessoa!”, desta maneira muito simples, muito
concreta e assaz acertada: “Sim. Mas cremos
que será sempre uma pessoa boa!”.
E como as grandes realidades da vida não
podem ser, nunca são afinal, ultrapassadas ou postas de lado com piruetas ou
com esquivanços, eu afixo aqui a minha consideração, a minha estima e o meu
apreço intelectual e humano por esta pessoa
boa a quem endosso o meu abraço firme e a quem tomarei a liberdade de chamar,
a terminar: meu querido Poeta, meu querido Amigo António Salvado!
ns