quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Para um minuto de meditação - 69

 


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Covid-19

Carta aberta às televisões pede informação sóbria

e critica "obsessão opinativa"

    Dezenas de personalidades assinam uma carta aberta dirigida às televisões generalistas a pedir contenção na informação sobre a pandemia e a criticar o que consideram ser o excesso informativo, o tom agressivo usado nalgumas entrevistas e a “obsessão opinativa”.

                                                                                                (Dos jornais)

 

     Pelos signatários se conhece o objectivo. Temos pessoal do PCP, das FP 25, da cultura de esquerda, etc., gente que amou os países que controlavam os respectivos media. Que a comunicação social é longa e repetitiva não há dúvidas. Que sendo subsidiada exprime a voz de quem a subsidia também não temos dúvidas. A única dúvida é: - então o que é que pretendem mais? 

                                                                                                   J Sm

 

   A dada altura “discretamente” inserida no meio da epístola em que se expandem, os signatários verberam e citamos “o apontar incessante de culpados, os libelos acusatórios contra responsáveis do Governo e da DGS”.

   Aqui é que bate o ponto. É este o facto que a nosso ver realmente os move! O resto é apenas “ganga” habilmente disposta para indrominar ingénuos de boa fé.

   E quando se sabe que recentemente a gerência governamental distribuiu milhões para “ajudar” as têvês e outros órgãos informativos da corda, percebe-se porque é que estes senhores e senhoras (tudo gente das extremas antes e depois de Abril) afinal ainda pretendem mais apertão.

    Ainda mais “orientação” e controle? Como nos “sóbrios” tempos dos gulags?

                                                                                    José Bernardo da Gama


Um poema de Alfredo Pérez Alencart

 

TE AGITAS PELO LOBO E O CORDEIRO

 

 Te estremeces pelo lobo e pelo cordeiro.

Amas de forma ultra-humana, sem limites, como a música

do universo. Oh profunda sinfonia forjando

o sagrado do começo ao fim, alto pretexto onde domina

a esperança. Oh sucessão eterna que desencadeias

assonâncias, instintos laborando rumo ao magma

do transcendente, da cadência absoluta

concebida com o compartilhamento das águas profundas

e das saborosas delícias de um contravoo angelical

acomodadas para suportar o Vento mais copioso.

Estarás como a sempre-viva, qual presença transumante.

Ficarás na luz que não mata o pôr do sol.

Estando sem estar, tu és evidência,

cérebro verbal destacando faíscas de pureza,

pulsações sem cativeiro, correta chamada de translação

além de anseios e de desvelados sonhos.

Pertencias ao terreno do Despretensioso,

ao seu ritmo oculto, à sua chama lenta, felizmente

extemporânea, qual aliança indecifrável.

Pertencias ao portal das testemunhas,

para profecia de outro Reino, ao refinado alento,

cuja plenitude reside onde floresce o sublime.

Integravas o verbo de uma estrela.

Pertencias ao corpo ferido de ternura sofredora.

Pertencendo à asa que desaparece pelos ares.

Pertencias à linhagem que coleta inocências de sete em sete.

Te perpetuas na antecipação da alegria

e ascendes, porque tua Unidade conhece a fórmula

das diásporas e dos deslumbramentos.

Clamas por tua orfandade. Clamas contra chicotes agressivos,

confraternizando com os perseguidos, abraçando-os,

compartilhando com eles a realidade dos milagres.

Nada te rebaixa,

criatura de nome formosamente pronunciado,

pele aliciante, contorno para penetrar

em frondes de renascimento quente.

Tu manténs o dom de ser o antes e o depois,

lâmpada iluminando os breves voos do pássaro, sua sombra

na alta noite do abismo.

Conduzes os fervores rumo ao amanhecer adolescente,

pulsas com tua estatura de Árvore da vida, regas violetas

com o leito de tuas transpirações.

Exemplo horizontal o das mãos estendidas,

o do pulso que sustenta! Beleza da forma na paisagem!

Oh Deus, que desejo nu é este Amor

avançando eterno, dando-se, assim, tão pródigo!

 

Que seivas estás doando? Que outros vaga-lumes te rodeiam?

 

                                                             Tradução de Cláudio Aguiar


Nicolau Saião, Os melhores romances e novelas de 1900 à actualidade

 


   O romance e a novela, géneros eminentemente populares na medida em que a literatura o pode ser, foram durante algum tempo encarados por diversos pensadores (e, convenhamos, com certa razão) como prestes a esgotar o território literário específico, reduzido que estaria o seu campo de manobras. Especialistas houve que defenderam mesmo a ideia de que romance e novela iriam pouco a pouco entrar em ocultação por se ter tornado caduco o tipo de discurso que os fundamentava, havendo quem emitisse a opinião de que o seu desaparecimento seria apenas uma questão de tempo. Os referidos géneros, segundo esses analistas, tinham sido ultrapassados por outro tipo de relatos mais científicos e directos. O único comentário que me ocorre é que, no mínimo, esses analistas conheciam mal o mundo em que viviam – esse mundo sempre sedento de narrativas. Compreensivelmente, todavia, foi nessa altura que surgiu algo que veio reformar ou modificar a efabulação romanesca habitual: o chamado novo romance, aliás a breve trecho seguido por outras concepções inovadoras. É fácil verificar que o romance e a novela – e não estamos a referir-nos a sedimentos mefíticos como a narrativa cor-de-rosa, o obreirismo best-seller ou a literatura light – se aguentaram bem, sendo até neste tempo que vieram a lume alguns relatos explosivos e convincentes dos géneros que diziam pouco menos que moribundos. Renovadas as fibras naturalmente amolecidas da sua estrutura específica, romance e novela permanecem como vigias abertas na escuna da arte viva – tendo em atenção que maus e requentados narradores sempre houve e sempre haverá. Mas a esses cidadãos, por vezes ornados dum sucesso que lhes faz bom proveito, nada lhes devemos que valha a pena guardar – tanto mais que o tempo, com a sensatez que se lhe conhece, ajusta contas com eles e elas a cada década que passa. A lista que segue é composta pelas obras que a meu ver, nos dois géneros, gozam da absoluta perfeição e expressa-se em quarenta títulos divididos equitativamente, de 1900 à presente data. Por último, quero dizer que tenho da escrita, mormente quando se chama literatura, uma ideia que é esta: ela suscita emoções como um deserto ou um mar e é tão estimulante como uma montanha ou um bosque sombrio. Assim sendo, acreditando que neste mundo frequentemente invertebrado há que ter a decência e a galhardia de afirmar, digo que a minha lista a proponho tendo contudo, obviamente, todo o respeito por outras opiniões muito diferentes.

Vinte romances

 O homem sem qualidades – Robert Musil

Narciso e Goldmundo – Hermann Hesse

 As caves do Vaticano – André Gide

 O desertor – Lajos Zilahy

Margarita e o mestre – Mikhail Bulgakov

 O falecido Matias Pascal – Luigi Pirandelo

Semana santa – Louis Aragon

Os nus e os mortos- Norman Mailer

Em busca do tempo perdido – Marcel Proust

A obra ao negro – Marguerite Yourcenar

 A montanha mágica – Thomas Mann

A ponte sobre o Drina – Ivo Andric

 Os sonâmbulos - Herman Broch

O parque das corças – Norman Mailer

As raízes do céu – Romain Gary

A consciência de Zeno – Ítalo Svevo

 Debaixo do vulcão – Malcolm Lowry

Adoração – Jacques Borel

O hussardo sobre o telhado – Jean Giono

 Os jovens leões – Irwin Shaw

 

Vinte novelas

A viola – Michel del Castillo

 O caso de Charles Dexter Ward – H.P.Lovecraft

 O ouro – Blaise Cendrars

Os mágicos – J.B.Priestley

Uma agulha no palheiro – J.D.Salinger

 Musk - Percy Kemp

A fábrica de absoluto – Karel Kapek

A confissão da meia-noite – Georges Duhamel

A margem – André Pieyre de Mandiargues

Almas cinzentas – Philipe Claudel

 A queda – Albert Camus

O segredo da curva das dunas – Geoffrey Jenkins

 O incendiário – Egon Hostovski

Cosmos – Witold Gombrovicz

O pássaro pintado – Jerzy Kosinski

O homem da montanha – Dino Buzzatti

Versão original – Bill S. Ballinger

O cavalo de Herbeleau – Jean Husson

O perfume – Patrick Susskind

O jardineiro do rei – Frédéric Richaud

 

                                                             ns


Sara Brightman & Andrea Bocelli, Time to say goodbye

 



segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Para um minuto de meditação - 68

 

   Recentemente, num mail remetido aos confrades a propósito dum protesto insensato contra o confinamento decretado pelo governo, escrevi o seguinte:” Se alguma liberdade nos querem eventualmente tirar, não é neste campo que isso deve ser procurado“. Sim. É neste, que aqui se deixa:


Deputado do PS defende demolição do Padrão dos Descobrimentos




   Deputado defende que as "revoluções servem para fazer cortes" e sugere que "devia ter havido sangue" no 25 de abril. Não é literal, diz ao Observador. Mas demolição do Padrão dos Descobrimentos sim.

                                                                                         (Dos jornais)

 

   Na verdade este imbecil não é muito diferente dos talibãs que destruíram estátuas ancestrais, ou de todos os bárbaros, que após uma conquista todos os símbolos destruíram aos vencidos... A esquerda caviar, supostamente tolerante, no seu melhor, que, infelizmente, é o PS de hoje.

                                                                                       Manuel Goncalves

 

   Um outro compincha, violento e provocador, propõe que se mate o homem branco. Este, que se destrua património nacional e que devia ter havido sangue, ter havido mortos no 25 de Abril…e, ardilosamente como o outro, diz depois que é metáfora.

  Mas não se pense que a esquerda governamental enlouqueceu de vez. Não! Eles sabem o que dizem, de forma já descarada e brutal: este discurso é sim o prolegómeno do que tentarão fazer depois, quando a ditadura que visam estiver a funcionar em pleno.

   E o silêncio de Costa é revelador e, na verdade, o que permite pela sua complacência (ou deveria dizer cumplicidade?) que o totalitarismo pouco a pouco se instale em Portugal. Mas não passarão!

                                                                                         Álvaro de Navarro


José Carlos Costa Marques, A carta perdida

 

Era uma carta perdida. Uma simples carta,
perdida entre centenas de outras,
perdidas também, rasgadas,
nunca lembradas.
Esta porém brilha na sua escuridão
de carta várias vezes procurada,
nunca encontrada.
Lançaria ela alguma luz num recanto apagado
de uma memória declinante?
Como foi, como é, como teria sido?
Inútil procurar mais.
O brilho que brilharia brilha agora
no ato mesmo da perda
e na memória de a ter perdido.
Biliões de cartas perdidas, triliões de pedras,
estelas e daguerreótipos,
quintiliões de imagens digitais
preenchem o universo,
E a sua luz vai velozmente caindo na mortalha
do olvido,
sem parar.
Não salvarão a memória humana
condenada a perder-se.
Lembras a mãe muito querida
e a outra mãe também adorada.
Como seria
terem ambas vivido numa memória de trevas?
Ou que luz mais inapagável teria junto delas
brilhado?
Agora, a carta perdida
que lançaria luz sobre esconsos e outroras,
brilha sim de um outro brilho.
O do sorriso que acolheu a perda
e dela fez o inesperado, o improvável,
luminoso momento vivo que perdura
na transitória recordação de estarmos vivos,
O achado.

               
Águas Santas, 26 de fevereiro de 2020

                                               José Carlos Costa Marques


Renato Epifânio, Sobre Manuel Patrício

 




    No volume II das “Obras Escolhidas” de Manuel Ferreira Patrício, republicamos, numa versão devidamente revista, a sua Dissertação de Doutoramento – A Pedagogia de Leonardo Coimbra: Teoria e Prática –, concluída em 1983 e posteriormente publicada (“sem alterações”, segundo o próprio), pela Porto Editora, em 1992. Pela sua extensão, esta é uma obra que teria que ocupar o espaço de um dos volumes desta Colecção das “Obras Escolhidas” de Manuel Ferreira Patrício. Sendo que, pela sua qualidade, esta é igualmente uma obra que mereceria sempre o maior destaque – quer na história da hermenêutica de Leonardo Coimbra no plano académico, quer na história filosófica do próprio Manuel Ferreira Patrício, independentemente do facto, por si só significativo, desta obra ter sido a sua Dissertação do Doutoramento. Com efeito, nesta obra, os dois eixos principais da produção do nosso autor que referimos no Prefácio ao primeiro volume (“a Teorização da Educação e a Hermenêutica Filosófica”) aparecem inquebrantavelmente ligados entre si. Para Manuel Ferreira Patrício, a verdadeira Teorização da Educação só poderá ser de matriz filosófica. E é por isso que, nesta obra, tematiza “A Pedagogia de Leonardo Coimbra”, na “teoria” e na “prática”, a partir dos fundamentos filosóficos leonardinos.

   O mesmo fará, nas décadas seguintes, a respeito de outros autores. Por isso, aliás, cedo se tornou evidente para nós a inviabilidade de separar, nesta Colecção, os textos de Teorização da Educação dos textos de Hermenêutica Filosófica. Decerto, há textos em que o pendor está mais num dos eixos do que no noutro. Mas em todo eles, diríamos, há essa interligação axial: em todos os textos de Teorização da Educação, há uma clara procura de uma fundamentação filosófica (ainda que nem sempre com remissão para algum autor específico – sendo que, em todos eles, diríamos igualmente, paira a sombra luminosa de Leonardo Coimbra e da sua razão poética como visão amorosa…). Contrapolarmente, em (quase) todos os textos de Hermenêutica Filosófica há sempre uma tendência para encontrar uma “pedagogia”, ou, como prefere dizer Manuel Ferreira Patrício, uma “antropagogia”, não fosse essa, afinal, para o nosso autor, a vocação maior da própria filosofia: a formação integral do ser humano, a sua “plenificação”. E é também isso o que acontece, exemplarmente, nesta obra: mesmo quando essa “pedagogia” (ou “antropagogia”) está (muito) submersa, Manuel Ferreira Patrício faz-nos esse trabalho – faz-nos essa oferta – de trazê-la à tona…

   Para além disso, como dissemos, esta é uma obra marcante na história da hermenêutica de Leonardo Coimbra no plano académico – ao contrário do que foi acontecendo, como é sabido, em círculos extra-académicos, como o designado “Grupo da Filosofia Portuguesa”, onde Leonardo Coimbra nunca foi esquecido, desde logo pelos seus discípulos José Marinho e Álvaro Ribeiro. Após as pioneiras Dissertações de Doutoramento de Manuel da Costa Freitas (Momentum activitas subjecti in cognitione iuxta Leonardi Coimbra doctrinam, 1954) e Ângelo Alves (O sistema filosófico de Leonardo Coimbra, 1962), Leonardo Coimbra não foi, de facto, um autor muito estudado universitariamente – o contra-exemplo mais proeminente terá sido o do estudioso brasileiro Miguel Spinelli, igualmente doutorado, em 1980, com uma dissertação sobre Leonardo Coimbra (A Filosofia de Leonardo Coimbra: o Homem e a Vida, dois termos da sua antropologia filosófica, publicada, no ano seguinte, pela Faculdade de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa)Com esta sua obra, Manuel Ferreira Patrício resgatou-o desse injusto oblívio, abrindo o caminho para que, já neste século, outras Dissertações de Doutoramento emergissem. Falamos, em particular, de duas: A Ontologia integral de Leonardo Coimbra (2001), de Manuel Cândido Pimentel, e A Metafísica da Experiência em Leonardo Coimbra (2011), de Samuel Dimas.

   Post Scriptum: No que respeita a todo o trabalho de digitalização e revisão da Dissertação de Doutoramento de Manuel Ferreira Patrício, agradecemos, em particular, a Paulo Santos.

                                                                                           Renato Epifânio


André Rieu & Georghe Zamfir, The Lonely Shepherd

 



quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Para um minuto de meditação - 67

 




Manifesto pede "destituição imediata" de Pablo Iglesias

por não acreditar na democracia 


196 figuras políticas de vários partidos pedem a demissão do vice-presidente do governo espanhol. "A democracia espanhola não pode permitir a presença de um incendiário no Conselho de Ministros."

                                                                           (Dos jornais)

 

  Em Portugal, um comparsa ideológico de Iglesias e adepto de Trotsky o justamente chamado “carniceiro de Kronstadt” pois mandou assassinar milhares de pessoas daquela cidade russa, e que é um notório partidário da chamada “ditadura do proletariado”, pertence ao conselho de Estado. Como se pode chegar a esta vergonha?              

                                                                           Lionel Menandro

 

 

   Porque não se faz uma petição por cá contra a vergonha de termos um Francisco Louçã como conselheiro de estado? Um dia a história também julgará esta humilhação da nossa democracia.

                                                                             Manuel Matos

 


   “Pode um homem sorrir e sorrir e no entanto ser um canalha?”

                                                                                    Shakespeare


José do Carmo Francisco, Sandy Denny

 


Sandy Denny (1947-1978) 



Não deixo que mais ninguém dispute estas lágrimas

Sei que morreste mas não reconheço a tua morte

Para mim não caíste nem foste para o hospital

Apenas flutuas a meio das escadas como num sonho.

São apenas minhas estas silenciosas lágrimas

Que o meu inglês não traduz nem consegue traduzir

Fico com os discos e fotocopio os teus poemas

Para serem discutidos na aula e é tudo.

É uma liturgia muito banal mas é minha

Não tenho outra maneira de te dizer adeus

Agora que enches de música outros territórios

Agora que alimentas uma grande saudade.  


Gaspar Garção, Philip K. Dick: realidade e simulacro no pós-modernismo da Ficção Científica

 



“Gosto de construir Universos que depois se desfazem.

Gosto de vê-los a “descolarem-se”, e gosto de ver como as

personagens nos meus livros lidam com este problema.

Tenho um amor secreto pelo Caos”.

Philip K. Dick

 

 

Philip K. Dick, escritor norte-americano, nascido em 1928 e falecido em 1982, é um dos autores mais importantes do chamado pós-modernismo, tendo vindo nos últimos anos a ter um reconhecimento crítico e académico que não possuiu em vida, e que é exemplificado da melhor maneira através das recentes reedições das suas obras, como na coleção da influente e canónica Library of America, que já dedicou dois dos seus volumes aos livros mais importantes de Dick, tais como “Do Androids Dream of Electric Sheep?", traduzido em Portugal como “Blade Runner – Perigo Iminente” e adaptado ao cinema na obra-prima de Ridley Scott, “Ubik”, “Os Três Estigmas de Palmer Eldritch”, “Flow My Tears, the Policeman Said/Vazio Infinito”, “O Homem do Castelo Alto”, “A Scanner Darkly”, traduzido e filmado como “O Homem Duplo”, por Richard Linklater, etc.

Curiosamente, para um escritor que no início da sua carreira teve de escrever centenas de contos e dezenas de romances para pagar as contas e as pensões de alimentos das suas ex-mulheres, a sua obra tem sido “minada” pela máquina de Hollywood (além dos filmes já mencionados, destacam-se “Total Recall/Desafio Total”, de Paul Verhoeven, “Relatório Minoritário”, de Steven Spielberg, “Screamers - Gritos Mortais”, “Impostor”, “Next - Sem Alternativa”, “Paycheck/Pago para Esquecer”, “The Adjustment Bureau/Agentes do Destino”), que geralmente aproveita apenas as suas ideias gerais, os seus conceitos extremamente originais, mas deixa de fora o intenso questionar da noção de realidade, do que significa ser humano, e também a forte empatia com as suas personagens, geralmente trabalhadores e pessoas comuns, mas que têm a coragem de questionar o que se passa à sua volta.

 

Um escritor visionário e a sua visão da realidade

 

O tema deste trabalho, e que demonstra o porquê do pós-modernismo e dos escritores atuais, e não apenas os de Ficção Científica, usarem e aproveitarem os conceitos centrais da obra de Dick, cada vez mais atual, é o de compreender o que é a nossa Realidade, percebida como tal pelos nossos sentidos, e o que poderá ser um mundo que não é mais que um simulacro, uma simulação, virtual ou provocada pelos sentidos, ou através de fenómenos que não são facilmente explicáveis:

 

Talvez cada ser humano viva num mundo único, um mundo privado, diferente daqueles habitados e experimentados por todos os humanos… Se a realidade difere de pessoa para pessoa, podemos falar de uma realidade singular, ou deveríamos pelo contrário falar de realidades plurais? E se há realidades plurais, haverá algumas mais verdadeiras (mais reais) do que as outras?” (Akgiray, 2004: 6).

 

Andrew M. Butler, na sua obra sobre Dick, descreve um episódio ocorrido com o escritor, e que todos já experimentámos, uma ou outra vez na vida:

 

“Entro na cozinha para pôr a chaleira ao lume. É de noite, por isso tento alcançar o interruptor de luz, à minha esquerda. Tacteio a parede um bocado, mas ainda assim, não o consigo encontrar. Olho com mais atenção a parede, e nada. De repente, apercebo-me que o interruptor está no outro lado da porta, sempre esteve do outro lado, embora me consiga lembrar, com toda a certeza, que houve uma altura em que o interruptor não estava nesse lado da parede…” (2000:7).

 

O título do capítulo inicial do livro de Butler é indicativo desta faceta da obra de Philip K. Dick: Para Além do Véu. Na sua obra, e para as suas personagens, a realidade está sempre sujeita a revisão.

Dick é o poeta laureado das falsas memórias e das falsas experiências. Várias vezes, as suas personagens consomem drogas alucinogénias que os levam até uma realidade diferente, a estranhos lugares, e no final do livro, o leitor nunca está certo de que as personagens voltaram à “sua” realidade. De facto, nem as próprias personagens sabem em que realidade estão. Ou então, as personagens de Dick vivem num mundo perfeito, com vidas perfeitas, apenas para se aperceberem, num golpe do destino, que essa realidade é uma ilusão, que o mundo é um palco e que as pessoas nele são meramente fragmentos da imaginação, como escreveu Shakespeare.

Mas Philip K. Dick está também interessado na natureza da nossa definição de Realidade. Como Butler explica:

 

“Serão tudo e todos os que vemos na televisão algo de real? Afinal, muitas das estrelas que vemos na televisão não envelhecem. Poderá esta ubiquidade ser explicada pelo facto de serem na realidade androides, simulacros, programados para nos venderem comida de gato, e manter-nos a todos hipnotizados com maus concursos, esperançados em obter produtos de consumo que nunca ganharemos, e sermos ricos para além dos nossos sonhos?” (2000: 8).

 

Mesmo com tantos significados dúbios e realidades que poderão não o ser, há alturas em que os seus protagonistas têm de acreditar que a sua realidade é a verdadeira realidade. E depois, têm de aguentar com todas as suas forças, quando o oposto prova ser verdade.

 

Como construir um universo que não se desfaça dois dias depois

 

            Philip K. Dick, além dos seus livros de Ficção Científica, Fantasia (e alguns sobre a realidade contemporânea da América nos anos 50 e 60), foi sempre um estudioso muito sério de Filosofia, de História da Religião, da forma como o sobrenatural e o não explicado entram nas nossas vidas, tendo escrito extensas notas sobre Filosofia Grega, a História de Roma, Teologia, Cosmogonia e Cosmologia.

Este interesse em compreender um universo que o desafiava e o deslumbrava, está presente na maioria das suas obras, mas principalmente nos seus artigos, discursos e cartas.

O texto fundamental para compreender a visão de Dick sobre o mundo e sobre a natureza humana, é o célebre discurso que fez em Metz, na Conferência de Ficção Científica de 1978, intitulado “If you find this World bad, you should see some of the others/ Se acham este Mundo mau, deviam ver alguns dos outros”.

Nesta palestra, que na altura lançou o mundo literário da Ficção Científica num turbilhão, Dick apresenta várias teses, como a dos mundos simulados, mundos falsos, mundos alternativos, de dimensões que se sobrepõem umas às outras:

 

“Proponho-vos pensarem que a criação destes chamados “presentes alternativos” estão continuamente a ter lugar. O próprio facto de conceptualmente conseguirmos lidar com esta noção – ou seja, aceitá-la como uma ideia plausível – é o primeiro passo para conseguirmos distinguir esses processos por nós próprios (…) Mas provavelmente, tudo o que conseguiremos serão vestígios de memórias, fugidias impressões, sonhos, nebulosas intuições de que de alguma maneira as coisas eram diferentes – e não antigamente, mas agora” (Sutin, 1995: 242).

 

Realidade objetiva e Realidade subjetiva

 

Numa das suas histórias mais influentes, “The Electric Ant/A Formiga Mecânica”, a personagem principal, Garson Poole, depois de ficar magoada num acidente do qual não se recorda, acorda num hospital com um braço mecânico, e descobre que o que perceciona à sua volta não é mais do que um produto de uma máquina cibernética dentro do seu corpo, que transmite para o seu cérebro impulsos que determinam o que para ele é a “realidade”.

No final deste conto, Poole pretende sentir tudo o que o rodeia ao mesmo tempo:

 

Tenho a oportunidade de experimentar tudo. Em simultâneo. Conhecer o Universo na sua totalidade, de estar momentaneamente em contacto com toda a realidade. Uma composição sinfónica a entrar no meu cérebro, fora do Tempo, todas as notas, todos os instrumentos, a tocarem ao mesmo tempo. E todas a s sinfonias, ao mesmo tempo” (Dick, 2002:330).

 

Depois desta experiência avassaladora, Poole tem uma “sobrecarga” de sensações e emoções, e desaparece dentro do computador que afinal albergava a sua “consciência”, durante todo o tempo em que pensava que estava vivo. Ao mesmo tempo que Poole desaparece, toda a sua realidade e as pessoas que conheciam, começam a ficar translúcidas e a desaparecer.

Dick tenta, no espaço de poucas páginas, chegar ao âmago da noção de “Realidade”, que ele definiu como “Algo que, no momento em que deixamos de acreditar nesse algo, não desaparece” (Sutin, 1995: 263).

Nas palavras de Poole, “A realidade objetiva é uma construção sintética, que lida com uma universalização hipotética de uma multitude de realidades subjetivas” (Dick, 2002: 331).

 

Drogas, Alucinações e a Demanda da realidade

 

            No discurso de Metz, Philip K. Dick leva ainda mais longe a sua demanda pela realidade, descrevendo as diferenças entre o reino empírico, o reino dos sentidos e o reino arquétipo que existe por detrás do véu:

Podemos sonhar com pessoas ou lugares que nunca vimos, de forma tão vívida como se os tivéssemos na realidade visto, na realidade conhecido. Mas não saberíamos o que fazer desta sensação (…). A nossa única e pronunciada impressão seria, provavelmente, a de que já tínhamos feito o que estávamos a fazer naquele momento, que tínhamos vivido um momento anteriormente. (…) Teríamos a impressão avassaladora de que estávamos a reviver o presente, precisamente da mesma maneira, ouvindo e dizendo as mesmas coisas…” (Sutin, 1995: 243).

 

Philip K. Dick usou o reino da especulação para explorar a natureza da Humanidade e a sua nunca-terminada interrogação de si própria. É difícil encontrar um escritor mais pós-moderno que Dick, que nos fala do paradoxo em que vivemos, ainda hoje, no mundo moderno.

 

Bibliografia:

 

Akgiray, Meva (2004). From science fiction to postmodernism in three novels of American writer Philip K. Dick.

Butler, Andrew M. (2000). Cyberpunk. Herts: Pocket Book Essentials

Butler, Andrew M. (2000). Philip K. Dick. Herts: Pocket Book Essentials

Dick, Philip K. (2002). The selected short stories of Philip K. Dick. New York: Pantheon Books

Sutin, Lawrence (ed.) (1995). The shifting realities of Philip K. Dick: selected literary and philosophical writings. New York: Vintage Books

 

                                                        *

Gaspar Garção - (Portalegre, 1974). Licenciado em Jornalismo e Comunicação pela Escola Superior de Educação de Portalegre e mestre de Jornalismo, Comunicação e Cultura na mesma entidade. Dedicando-se à análise da ficção científica nos seus diversos ramos, é autor de "Relance sobre o humano na literatura de antecipação". Escreveu ainda "Charlie Chaplin e o mito de Charlot". Orientou ciclos cinematográficos sobre F.C. e sobre aspectos dos primeiros anos do cinema mudo. Trabalha no Gabinete de Comunicação da Câmara Municipal de Portalegre.


Aos confrades, amigos, adeptos e simpatizantes

     Devido a um problema informático de última hora, não nos será possível fazer a postagem desta semana.    Esperando resolvê-lo em breve,...