segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Para que a Terra não esqueça

 

POLITICAMENTE CORRECTO


Cultura do cancelamento


O cuidado foi redobrado, pois um cancelamento, mesmo injusto ou infundado, pode arruinar a reputação de qualquer pessoa, influenciar contratos e afectar os rendimentos pecuniários de quem for visado.

À medida que o tempo foi passando o fenómeno encontrou nas redes sociais o hospedeiro perfeito para poder proliferar, contribuindo para o crescimento de uma onda de intolerância atroz, que submergia todos quantos se lhe atravessavam no caminho, mesmo que para isso, muitas das vezes, nada tenham feito a não ser serem permeáveis a uma certa dose de mesquinhez alheia, desinformação ou mera má interpretação das suas acções.

(Dos jornais)

 

  É a arma agora preferida para extinguir o pensamento livre, o raciocínio fundamentado e a liberdade de expressão. A nova versão do que se fazia na Alemanha nazi, na antiga e atual Rússia e em todos os outros regimes totalitários para reprimir as consciências livres. Orwell bem o previu…

Celestino Arruda


Dois poemas de Floriano Martins

 


ns



VARIAÇÕES EM TORNO DE UMA PALETA GASTA

 

6. Ergue-se o alvo diante de mim,

dividido o arco entre o fogo e a fúria.

Não há nomes, só rostos.

Sombras prolongadas

muito além da luz. Flâmula

viciada em suas agulhas.

Golpe de deslizes, preciso engano das palavras

que nos refazem. Luz desprendida,

o branco no sótão da alma,

a obscura

penugem do mundo refeito na ausência do alvo.

Uma vez mais o agônico

acorrentado à imagem de seus suplícios.

 


O BANHO DAS MODELOS

 

6. Em qualquer momento revela-se tua queda,

seja na máscara da volúpia, no desânimo

de certas horas guardadas longe de si ou…

Desfigura-se a eternidade em tuas imagens.

Acesso de excessos ao redor da mesma dor.

Há haveres infernais? Suspeita o poeta de

que seus versos expõem o revés de toda moral?

Os amores de Catulo, os tiros de Rimbaud.

A poesia recolhe o ressoar de suas sombras.

Partilha consigo as indomáveis contradições

que elegeram as cortesãs por seus mistérios.

A fidelidade ao prazer leva consigo o tormento

tanto quanto a eternidade ama o instante.

 

in “365 POEMAS & FOTOS”


José do Carmo Francisco, Primeira pessoa do singular

 


Javier Pagola



A empregada do senhor Alexandre Herculano


A primeira vez que ouvi falar no tenebroso «sistema cultural português» foi em Janeiro de 1981 quando José Palla e Carmo, poeta, tradutor e crítico literário, meu colega do Departamento Operacional de Estrangeiro do Banco Português do Atlântico em Lisboa disse a propósito do meu livro «Iniciais»: «Tu ganhaste um prémio dado por um júri de alto nível mas olha que quando o teu livro sair muita gente vai dizer – Vamos lá ver se isto vale alguma coisa apesar de ter ganho um prémio». Nessa altura eu estava ainda um bocado verde para essas coisas, tinha começado a publicar livros colectivos em 1971 e colaborava no «Diário Popular» desde 1978. Mais tarde percebi melhor. O jornalista Orlando Neves contou-me que ouviu a Carvalhão Duarte, director do velho jornal «República» a história da empregada do historiador Alexandre Herculano na quinta da Azóia de Baixo. Alguém lhe perguntou lá por 1915 como era o patrão no seu quotidiano. A resposta da senhora foi assim: «Era boa pessoa mas um mandrião; passava o dia a ler e a escrever!» Ora o sistema cultural é como as moedas – tem duas faces, tem sempre duas faces. O outro lado desta questão é que foi com os direitos de autor da sua «História de Portugal» que Alexandre Herculano comprou a quinta na Azóia de Baixo, perto da Santarém. Por isso deve-se pensar duas vezes pois (como diz o lugar comum) nem tanto ao mar nem tanto à terra. Somos um país pequeno e pobre mas as coisas não são simples. Nunca são simples. Muito menos no sistema cultural português onde há de tudo como na botica. Ou na farmácia, já agora. Os médicos já não escrevem na receita «faça segundo a arte» pois já ninguém faz os manipulados.


Salvatore Adamo, C'est ma vie

 



terça-feira, 25 de outubro de 2022

Para que a Terra não esqueça

 


ns



Francisca Van Dunem

acha que repetição "exaustiva" de imagens de violência nos media

gera sentimentos de insegurança.

 

A ex-ministra da Justiça Francisca Van Dunem alertou quarta-feira que a repetição “exaustiva” de imagens de violência nos média gera uma perceção errada de insegurança, num país onde a taxa de criminalidade é baixa.

(Dos jornais)

 

   A insegurança existe. Não é a sua repetição exaustiva na TV que gera o sentimento. É ver o terror e a dor na cara das vítimas de roubo ou agressão física. Esse sentimento de revolta e injustiça, que esta ministra não combateu. E isso é muito triste.

   Já sobre os apelos à censura encapotada, não podem ter lugar num país ocidental. Tudo isto confirma que nunca devia ter sido ministra.

  José Maxelas

 

   Grave. Muito grave. Quem vive na sua bolha elitista não gosta de ouvir os pobres a espalharem os relatos dos males que os afligem. Se vivesse num bairro dos subúrbios, veria como a insegurança e o crime são um problema gravíssimo e uma ameaça a um dos fundamentos do bem-estar das populações - a segurança física.

Lino Pinheiro

 

   Van Dunem sempre apoiou poderes absolutistas, como o do Eduardo dos Santos em Angola. Dessa forma sugere uma limitação da liberdade de imprensa e controlo dos media. Que bela imagem! 

 Não me esqueço das festas nas prisões durante o reinado dela. 

  Ramiro Gondão

 

   Então vá de esconder. Eu até achava que os telejornais deviam ser substituídos por a Hora das Variedades ou Melodias de Sempre com Mónica Sintra, Clemente e Toy...

   Já está na reforma, mas ainda abre a boca para dizer disparates. Sentimo-nos inseguros não devido às imagens mas porque as facadas, as pauladas, os assaltos a residências, o espancamento de idosos, as violações e todo o tipo de torpezas fazem parte do nosso dia- a-dia e não é por censurar jornalistas que a violência vai desaparecer. Quem vai lucrar com isso é o governo que depois se pode gabar de sermos dos países mais seguros do mundo.    

   Dra. Francisca, goze a reforma e não diga baboseiras!

   Jorge Lima


Dois poemas de Jean Hautepierre

 


ns



OS FOGOS DE OUTONO


Nos arredores

Dos dias tristes

De Novembro,

 

Dias que se foram

Nas paredes cinzentas

Dum quarto,

 

O lado avermelhado

Das árvores em sangue

Como que estala

 

Lança os fogos

Em longos adeuses

A um céu pálido;

 

Depois na noite

Vazia de esperança

E de dor

 

Vêm os bandos

De corvos negros

Da planície

 

Gritando, gritando

E um vento forte

Para longe os leva.


 

DANÇAI, DANÇAI, BELAS GALHOFEIRAS!


Em recordação da festa da música de 1993

(um cavaleiro e quatro cavaleiras)


Dançai, dançai belas galhofeiras!

Dançai, dançai! O dia é belo;

Mas as noites são mais misteriosas,

E a luz do archote

Mais louca e livre que a onda

Pelo dia lançada sobre o mundo.

 

Dançai, dançai! Embriagadas, orgulhosas

Na glória da juventude,

Brilhando as luzes

Sobre os vossos rostos triunfantes!

E magnificamente ligeiras

Saltitando do dia que se vai

Como as chamas passageiras

Que redemoinham na noite!

 

(Tradução de Cristino Cortes)


Um texto de Joaquim Saial

 




10 anos e 109 “Crónicas do Norte Atlântico” no “Terra Nova”

 

    Um primeiro texto, “D. Faustino Moreira dos Santos, antigo bispo de Cabo Verde”, inaugurou a minha colaboração com o jornal “Terra Nova”, em Fevereiro de 2007. Seguiram-se em Junho de 2009 “Cidade Velha, uma das sete maravilhas de origem portuguesa no Mundo, motivo de orgulho para portugueses e cabo-verdianos”, em Dezembro de 2010 “Padre António Figueira Pinto, um nome a recordar na Praia e em Cabo Verde” e, em Julho de 2012, o texto humorístico “A verdadeira, celestial-terrena e até agora desconhecida história do nascimento do Colá-Sanjom, na Ribeira de Julião”. Entretanto, e porque uma colaboradora frequente deixou de escrever para o jornal, Frei  António Fidalgo, então à frente do TN, convidou-me para uma participação regular na publicação que dirigia. E assim começou esta deliciosa aventura, no número duplo de Agosto/Setembro de 2012, prolongada por uma década, com o TN depois sob a direcção de Frei Gilson Frede, desde o n.º 424, de Janeiro de 2013. Chamada “Crónicas do Norte Atlântico”, por se reportar sobretudo a assuntos de Cabo Verde, Portugal e Estados Unidos da América (por vezes comuns), teve como texto de abertura “1.º de Maio de 1914: a primeira Festa da Árvore em Cabo Verde”. O presente é o 109 e não o 120, porque o TN só publica onze números anuais e por vezes (raras, aliás) para além do habitual de verão (Agosto/Setembro) sai esporádico número duplo, como sucedeu recentemente com o n.º 526, de Abril/Maio.

    Durante estes 10 anos, em que escrevi mais de 200 páginas A4, muitos assuntos passaram pelas “Crónicas do Norte Atlântico”, relacionados com variadas vertentes da história, cultura, ensino, agricultura, biografia, actividade marítima e aérea, acção política, ensino e arte, entre outros, de Cabo Verde. Lembremos alguns títulos de temáticas, em geral tratadas pela primeira vez:

 

- A questão do gado em Cabo Verde, no início do século XX

- Subsídios para a história do ensino em Cabo Verde

- Génese e ocaso da Italcable, a Companhia Italiana dos Cabos Telegráficos Submarinos em São Vicente

- O "excelente cavalheiro" Leão "Leo" Lopes, prestigiado cabo-verdiano da América

- Veleiros da "Carreira de Cabo Verde - EUA" e outros navios americanos relacionados com as ilhas

- Curiosos aspectos da aventurosa vida do capitão de veleiros "John" de Sousa

- Contributos para o estudo das relações culturais entre Cabo Verde e o Brasil

- Deportações para Cabo Verde, na primeira metade do século XX – Alguns exemplos

- Dr. António Manuel da Costa Lereno, médico militar português e "cabo-verdiano" de boa memória

- Cabo-verdianos "prisioneiros" em São Tomé e Príncipe, o espinho cravado na memória de três nações: achegas para a história de um drama humano ainda em curso

- Mornas e outras músicas com selo cabo-verdiano, do lado de lá do mar

- Relembrando o médico e escritor Henrique Teixeira de Sousa, longo colaborador do "Terra Nova"

- Pintor Roger Chapelet numa São Vicente muito francesa

- Deputados por Cabo Verde em Lisboa: o dia do fim

- Arte pública colonial em Cabo Verde

- Medalhística cabo-verdiana

- A Escuna “John R. Manta”: da caça à baleia à carreira da Cabo Verde

- Arte pública escultórica do período colonial em Cabo Verde

- Adjacência para Cabo Verde, a miragem perseguida – Um discurso do Dr. Adriano Duarte Siva, deputado por Cabo Verde na Assembleia Nacional, em Lisboa

- João Juff, o “capitão preto” de veleiros, comandante de “uma tripulação e brancos”

- Militares cabo-verdianos na Grande Guerra

- Alfred J. Gomes, um advogado bravense na América

- O cabo-verdiano "americano" Adalberto Rosário, nas comemorações henriquinas de 1960 e noutras actividades

- Projecto secreto de aliciamento de Onésimo Silveira das autoridades portuguesas em 1972.

- Memórias da aviação em Cabo Verde (conjunto de vários textos, ainda não finalizado)

 

    Quantos mais se seguirão? Obviamente, não o sabemos, mas muitos estão ainda em carteira, prontos para aqui serem dados à estampa e à atenção dos leitores, sempre com as riquíssimas, variadas e aliciantes cultura e história de Cabo Verde por tema. É até possível que um dia venham a ser publicados em livro, se editora preclara e interessada aparecer. Veremos!… Entretanto, no próximo mês, continuará a série sobre as memórias da aviação em Cabo Verde, já em 8.º capítulo.


Cesária Évora, Sodade

 



terça-feira, 18 de outubro de 2022

Para que a Terra não esqueça

 


ns



  Costa diz, Marcelo repete


   Continua a admirar-me que o Presidente da República tenha escolhido para si este papel: o de ser cúmplice institucional de um primeiro-ministro que, após anos de imobilismo, arrasta o país com ele.

(Dos jornais)

 

   Costa e Marcelo são dois personagens de carne e osso, mas que replicam outras duas figuras bem conhecidas da banda desenhada: os célebres Dupont e Dupond. Infelizmente para nós, ao contrário dos personagens de Tintim, estas não são inócuas nem nos fazem rir. Pelo contrário, arrastam-nos para a cauda da Europa, para a falta de sentido crítico e de uma cultura de exigência. Se isso não é de admirar com as políticas socialistas do faz de conta, já com a "esponja mágica", que tudo apaga e desvaloriza, o caso devia ser diferente. Junta-se a isto a ineficácia da oposição e temos o quadro de um país de políticos superlativamente medíocres e incompetentes.

Carlos Vito


Três poemas de Eduardo Bento

 


ns, O segredo



Ainda habitam avencas nas paredes.

Uma roseira esquecida

resiste em florações de medo.

É o triunfo da erva sobre a flor,

a derrota de um velho sonho

onde o olhar deixou de penetrar a paisagem

e onde

a voz amarga do abandono

nos diz da possível alegria

de outras estações

ou gestos, palavras,

a mão sobre outra mão

desnudando um nome.

 

*

 

Da casa não partimos nunca. Apenas a

rodeamos, andamos em volta.

Não trilhamos outro caminho que não seja o do

regresso.

 

A memória prende-se a este chão. Ali

permanecemos ao nascer do sol

ou quando a lua acende no nosso coração

passos de outrora, apagadas

recordações. Vozes.

 

Todos os mortos se esqueceram de dizer adeus.

 

*

 

Repara nos sulcos de tristeza deixados pelos

dias. As escarpas falam da passagem dos

ventos e do som lamentoso das ondas. Tudo

nos diz da nossa breve estrada.

O pó modela o definitivo abandono da

casa em ruínas. Olha a porta por onde

debandaram todos os sonhos.

Assim aprenderás que as formas, as cores,

a agridoce polpa dos frutos não suportam a

demora.

Mesmo que os teus passos ressoem cada vez

mais longe, voltado para o poente  espero o

teu regresso.

 

in “A casa já não abriga vozes”


Nicolau Saião, Um cheirinho de mistério

 


ns



     A GRANDE CAÇADA


    Hão-de os homens passar para lá de Plutão, penetrando no grande vazio tão estelarmente cheio e levarão talvez na bolsa, a amenizar-lhes a jornada, um trecho de Vivaldi. Ou de Schubert, de Bach, de Pierre Henry...
   Numa das gavetas, numa das sacolas da nave, para os momentos de grande nostalgia ou de fome de encantamento, livros a granel. Resmas de livros...
   Acredito nisto. Se não acreditasse mais me valia arrumar já as botas. Esses nossos descendentes deverão ser gente sensível - à guisa do tal que, quando esteve lá em cima, ao contemplar o azul da Terra sentiu um nó na garganta e as lágrimas à beira do olhar.   

    Aposto que neste ou naquele vaivém sideral não faltará um exemplar de “Pietr, o Letão” e de “O falcão de Malta".

    Faz agora precisamente 92 anos que Hammet o concebeu. Ano de farta colheita, aliás: Agatha Christie publicava o primeiro relato de miss Marple - 10 anos antes surgira a primeira investigação de Poirot - e Simenon dava à estampa o primeiro Maigret. Frederick Irving Anderson editava o canónico "O livro do assassinato" e David Frome, por seu turno, publicava "Os assassinatos de Hammersmith", o primeiro livro do sr. Pinkerton. Por sua vez, o grande Francis Beeding... Mas fiquemo-nos por aqui, não valerá a pena pôr mais na carta.
    O que, claro, eu quero dizer é que estes livros se lêem como se tivessem sido cozinhados mesmo agora. Por terem ponta de génio? Está de ver, mas principalmente porque a Literatura Policial (LP, "polar", "giallo", chame-se-lhe como se quiser) é um dos sinais específicos do nosso tempo - e o meio-século que foi da década de 20 (anos em que surgiram também H.C.Bailey, Dorothy L.Sayers, Freeman Wills Croft, Earl Derr Biggers, S.S.Van Dine e Anthony Berkeley) até aos anos 70, foram o território de caça dum certo imaginário que reflecte uma maneira de viver, de ser, de circular pelas veredas da existência.
    Logo nos anos a seguir o caso mudaria de figura: não só a science-fiction se convertia em vedeta inquestionável como viriam à luz relatos em que o ambiente político-social seria equacionado, culminando com o aparecimento do "social-thriller", ficando expressas em cada narrativa a corrupção e a decadência de esteios do Estado (tribunais, polícias, entidades da representatividade democrática) doravante sujeitos a um franzir de olhos desconfiado.
    No entanto, apesar da inocência perdida, poderemos continuar a sonhar um pouco, a ter um pouco de esperança - enquanto Sam Spade olhar o espectáculo dos bonzos do poder com um sorriso críptico nos lábios e Marlowe for andando sob a chuva, seguido pelo som nostálgico e difuso de um saxofone...


The Cranberries, Zombie

 



terça-feira, 11 de outubro de 2022

Para que a Terra não esqueça

 



Uma imagem sem palavras


Um poema de Dusan Matic

 


ns



O RIO VAI CORRENDO

 

Deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem

deixa-os vestir o que vestem

eu não estou aqui para vender bocejos  para chorar

ilusões perdidas

sobre abismos abertos

Eu não sou uma pessoa que descreve todas

as tarefas de que eu gosto

deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem

deixa-os carregar a lama

deixa a rosa da consciência descansar pacificamente sobre a mesa para esse

tempo

em cada cabelo cada estrela aparecerá tarde

enquanto os pés das crianças se derretem em campos tão largos como

a primeira neve

e a centopeia agarra as sombras caindo sobre a parede

e a relva cresce acima da tua testa

a relva do esquecimento ou a relva das memórias não importa

deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem

deixa-os lavar o sangue

a relva do esquecimento ou a relva das memórias é tudo isso

que ainda resta

deixa os rios fluírem, deixa-os levar amor

deixa os rios sonharem até eu chegar ao fim

deixa-os fluir ao redor da estátua mais belos do que a carne do lilás

mais belos do que o tempero silencioso da lua podre

mais belos do que o sussurro silencioso de uma lua assustadora

deixa a tesoura da dor vaguear sobre aquelas clareiras

ao luar

luz da lua nua luz da lua estéril

é melhor eles vaguearem aqui onde a lua gelada aquece

do que nos quartos onde os amantes recém-adormecidos dormem

deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem cheios

de luar

deixa a tesoura da dor e os arquivos da dor vaguearem

para atenuar as palavras afiadas e ásperas que surgem como

cargas dessas camas de fogo e de cabeça para baixo

no paraíso

deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem

deixa-os vestir o que vestem

deixa-os sussurrar para os solitários ao longo das bordas

deixa as cidades andarem de mãos dadas

eles cortam a respiração e colocam o pé debaixo dela

e de tudo o que te importa

deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem

deixa-os carregar a lama e a dor

quem és tu para levantar a mão atrás do braço da consciência sobre a mesa

deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem

quem és tu que gritas melancolicamente e ninguém dá a sua cabeça

que se virou

deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem

deixa-os carregar ouro e dor

quem és tu para tecer armadilhas em torno de castelos

onde morrem os pombos

tu gentil e desconhecido

quem és tu para olhar tanto para a estátua

mais mortal do que o cheiro dos jacintos

todas as agulhas arrancadas da carne dolorida que não existe

e encontrou as suas esperanças na encruzilhada onde

de tarde o vento sopra e onde não há sinal

deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem

deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem

entra na primeira casa, vira à esquerda e segue ao longo do corredor

e abre bem ali

a primeira porta

deixa as palavras fluírem, deixa as palavras fluírem, deixa as palavras fluírem

de uma para a outra para a terceira e assim por diante na última

onde a janela está aberta tu encontrarás um gongo

ignora tudo o que puderes

escuta

nada

bate novamente no gongo com toda a força

ouvirás boas risadas que se te destinam

apenas não brinques na janela não brinques

nos bloqueios

deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem

e não olhes para trás

na janela, não brinques ao esconde-esconde

olha apenas: algo está sonhando ali

quanto dessa morte está escrita e cuja morte está nos cegos

olhos da estátua

não brinques ao esconde-esconde na beira da janela

uma tontura é tão fácil quanto o são as palavras

deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem

deixa as palavras fluírem, deixa as palavras fluírem, deixa as palavras fluírem

o que é uma noite numa sala vazia ao lado de um gongo

em que tu bates incessantemente

deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem

para quem são todas as noites e ela a NOITE

que os abrange a todos

sem sombra sem maquilhagem na copa da manhã vai cantar

o PÁSSARO

deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem

deixa-os carregar o amor

e o que é uma noite esperando as medidas

ainda mais uma vez a espera é

mais rápida do que o contar

deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem

que eles levem os céus com eles, que eles levem os seus próprios

tabuleiros

ou seja, nós

tu simplesmente ouve o pássaro e ri desse vermelho e

ouve de repente

os risos dos lábios da estátua que eles perderam

para olhar antes de eles saírem da praça ao redor

da meia-noite

risadas boas e a ti destinadas

perdeu-se o significado caloroso e simples da palavra que irá

hoje para repetir mecanicamente

um significado caloroso que apenas as crianças terão na frente das vitrines

começando hoje antes de ir para a escola, sim

eles entendem

deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem

deixa as palavras fluírem, deixa as palavras fluírem, deixa as palavras fluírem

em cada cabelo cada estrela tarde aparecerá

 

e uma estrela tardia em cada palavra que aparece.

 

(Tradução de Nicolau Saião)


Nicolau Saião, Relembrando

 


Desenho de José Régio



Relance sobre a pintura de Régio

 

Desenhar era, para Régio, uma naturalidade. Importa logo de início epigrafar esta naturalidade, que cultivara desde muito novo – quando ele e seu irmão Júlio (como Joaquim Pacheco Neves assinala no seu livro Os desenhos de Régio) pintavam lado a lado nesse tempo de Natal colorido pelos prestígios da memória.

Independentemente de ser uma naturalidade era uma faculdade que ia bem para além do gosto inato de qualquer ser votado aos mundos onde o fulgor das coisas espirituais nos faz andar atentos à Arte. O mínimo que se poderá dizer de Régio é que era um bom desenhador – mesmo um excelente desenhador. Pintor de domingo? Bom – só se a maior atenção dada às letras e aos seus duros caminhos de concretização (para encher a célebre página branca é preciso muito esforço, muito suor, para além do talento, o que não está ao alcance dos zoilos) o remete para essa qualificação, aliás inadequada e frequentemente pacóvia. Claro que para um indivíduo como Régio não há hobbies deste cariz – são algo de demasiado fundo e grave, com a gravidade sagrada da vida e da mirada que sobre ela lança um ser de excepção como Régio foi.

 Assentemos portanto que nele o interesse pela pintura e o acto de desenhar/pintar era um dos aspectos da sua rica vida de relação com os mistérios da arte entendida por extenso. Depois, se nos debruçarmos sobre o seu traço, os seus temas (a sua maneira ou, para utilizarmos a expressão do grande crítico português de artes plásticas, o arqtº Mário de Oliveira, a sua intenção) verificaremos que não andava longe do que se fazia naquele tempo: um figurativismo lírico em tons ora mansos ora adustos jogando com as cores complementares.

 A visitação da figura humana é uma das constantes a que recorria, fossem essas figuras de entalhe sagrado ou profano. E, neste caso, haveria também que perguntar: onde fica traçada a linha que absolutamente separa o profano do sagrado? Pergunta que já a propósito de obras de diversos pintores autóctones ou estrangeiros – pense-se em Beckman, por exemplo, ou em Chagall ou, entre nós, em Mário Botas – se tem colocado, visto que uma figura de mulher é frequentemente a figura da Virgem (e vice-versa) e a figura de um mendigo pode ser a figura de Cristo, noutra encarnação, noutro místico enquadramento, noutra dimensão real ou onírica.

Régio revela-se inteiramente nessas silhuetas contorcidas, nesses rostos arrepanhados, nessas expressões de êxtase, de fúria, de inconcreta estupefacção – de interrogação, de medo, de alguma esperança. E, estranhamente, nalguma súbita frescura de um rosto, de um olhar, de um movimento, de uma feição secreta. Como Claude Roy, poder-se-ia perguntar: “Essa frescura será uma ilusão do nosso olhar ou a expressão da unanimidade das origens?”.

Na sua singeleza, há que ver os desenhos de Régio como os irmãos daqueles que Júlio executava. Não é difícil, não é mesmo possível, não se ver nos de Régio a versão como num espelho trágico daquilo que em Júlio é calma e lirismo, mas uma calma e um lirismo bafejados pelo sopro dum surrealismo metafórico, carregado de significados poéticos e de serenidade duramente conquistada. Júlio (Saúl Dias), que tenho como um dos maiores poetas do século vinte português (a minha participação na homenagem que lhe foi feita em livro organizado por Valter Hugo Mãe não foi um act gratuit da minha parte, pois não escrevo textos de circunstância – e sim uma atitude de puro apreço) foi igualmente o protagonista central duma incursão da maravilha pictórica no mundo por vezes contraditório da pintura portuguesa. Régio, votado a outros mesteres mais instantes, que lhe carregavam o quotidiano de tarefas que à escrita iam desaguar, teve o seu percurso de diferente recorte. Mas o que fez brilha e distingue-se, porque pelos seus próprios meios se tinha – mais uma vez parafraseando Roy – humanizado, enriquecido, metamorfoseado.

E isto, repare-se, ante os mundos do alto e os do baixo: os da carne e os da alma, para tudo dizer.


Aos confrades, amigos, adeptos e simpatizantes

     Devido a um problema informático de última hora, não nos será possível fazer a postagem desta semana.    Esperando resolvê-lo em breve,...