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A GRANDE
CAÇADA
Hão-de os homens passar para lá de Plutão, penetrando no grande vazio
tão estelarmente cheio e levarão talvez na bolsa, a amenizar-lhes a jornada, um
trecho de Vivaldi. Ou de Schubert, de Bach, de Pierre Henry...
Numa das gavetas, numa das sacolas da
nave, para os momentos de grande nostalgia ou de fome de encantamento, livros a
granel. Resmas de livros...
Acredito nisto. Se não acreditasse
mais me valia arrumar já as botas. Esses nossos descendentes deverão ser gente
sensível - à guisa do tal que, quando esteve lá em cima, ao contemplar o azul
da Terra sentiu um nó na garganta e as lágrimas à beira do olhar.
Aposto que
neste ou naquele vaivém sideral não faltará um exemplar de “Pietr, o Letão” e
de “O falcão de Malta".
Faz agora
precisamente 92 anos que Hammet o concebeu. Ano de farta colheita, aliás:
Agatha Christie publicava o primeiro relato de miss Marple - 10 anos antes
surgira a primeira investigação de Poirot - e Simenon dava à estampa o primeiro
Maigret. Frederick Irving Anderson editava o canónico "O livro do
assassinato" e David Frome, por seu turno, publicava "Os assassinatos
de Hammersmith", o primeiro livro do sr. Pinkerton. Por sua vez, o grande
Francis Beeding... Mas fiquemo-nos por aqui, não valerá a pena pôr mais na carta.
O que, claro, eu quero dizer é que
estes livros se lêem como se tivessem sido cozinhados mesmo agora. Por terem
ponta de génio? Está de ver, mas principalmente porque a Literatura Policial
(LP, "polar", "giallo", chame-se-lhe como se
quiser) é um dos sinais específicos do nosso tempo - e o meio-século que foi da
década de 20 (anos em que surgiram também H.C.Bailey, Dorothy L.Sayers, Freeman
Wills Croft, Earl Derr Biggers, S.S.Van Dine e Anthony Berkeley) até aos anos
70, foram o território de caça dum certo imaginário que reflecte uma maneira de
viver, de ser, de circular pelas veredas da existência.
Logo nos anos a seguir o caso mudaria
de figura: não só a science-fiction
se convertia em vedeta inquestionável como viriam à luz relatos em que o ambiente
político-social seria equacionado, culminando com o aparecimento do "social-thriller", ficando expressas
em cada narrativa a corrupção e a decadência de esteios do Estado (tribunais,
polícias, entidades da representatividade democrática) doravante sujeitos a um
franzir de olhos desconfiado.
No entanto, apesar da inocência
perdida, poderemos continuar a sonhar um pouco, a ter um pouco de esperança -
enquanto Sam Spade olhar o espectáculo dos bonzos do poder com um sorriso
críptico nos lábios e Marlowe for andando sob a chuva, seguido pelo som
nostálgico e difuso de um saxofone...
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