terça-feira, 18 de outubro de 2022

Nicolau Saião, Um cheirinho de mistério

 


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     A GRANDE CAÇADA


    Hão-de os homens passar para lá de Plutão, penetrando no grande vazio tão estelarmente cheio e levarão talvez na bolsa, a amenizar-lhes a jornada, um trecho de Vivaldi. Ou de Schubert, de Bach, de Pierre Henry...
   Numa das gavetas, numa das sacolas da nave, para os momentos de grande nostalgia ou de fome de encantamento, livros a granel. Resmas de livros...
   Acredito nisto. Se não acreditasse mais me valia arrumar já as botas. Esses nossos descendentes deverão ser gente sensível - à guisa do tal que, quando esteve lá em cima, ao contemplar o azul da Terra sentiu um nó na garganta e as lágrimas à beira do olhar.   

    Aposto que neste ou naquele vaivém sideral não faltará um exemplar de “Pietr, o Letão” e de “O falcão de Malta".

    Faz agora precisamente 92 anos que Hammet o concebeu. Ano de farta colheita, aliás: Agatha Christie publicava o primeiro relato de miss Marple - 10 anos antes surgira a primeira investigação de Poirot - e Simenon dava à estampa o primeiro Maigret. Frederick Irving Anderson editava o canónico "O livro do assassinato" e David Frome, por seu turno, publicava "Os assassinatos de Hammersmith", o primeiro livro do sr. Pinkerton. Por sua vez, o grande Francis Beeding... Mas fiquemo-nos por aqui, não valerá a pena pôr mais na carta.
    O que, claro, eu quero dizer é que estes livros se lêem como se tivessem sido cozinhados mesmo agora. Por terem ponta de génio? Está de ver, mas principalmente porque a Literatura Policial (LP, "polar", "giallo", chame-se-lhe como se quiser) é um dos sinais específicos do nosso tempo - e o meio-século que foi da década de 20 (anos em que surgiram também H.C.Bailey, Dorothy L.Sayers, Freeman Wills Croft, Earl Derr Biggers, S.S.Van Dine e Anthony Berkeley) até aos anos 70, foram o território de caça dum certo imaginário que reflecte uma maneira de viver, de ser, de circular pelas veredas da existência.
    Logo nos anos a seguir o caso mudaria de figura: não só a science-fiction se convertia em vedeta inquestionável como viriam à luz relatos em que o ambiente político-social seria equacionado, culminando com o aparecimento do "social-thriller", ficando expressas em cada narrativa a corrupção e a decadência de esteios do Estado (tribunais, polícias, entidades da representatividade democrática) doravante sujeitos a um franzir de olhos desconfiado.
    No entanto, apesar da inocência perdida, poderemos continuar a sonhar um pouco, a ter um pouco de esperança - enquanto Sam Spade olhar o espectáculo dos bonzos do poder com um sorriso críptico nos lábios e Marlowe for andando sob a chuva, seguido pelo som nostálgico e difuso de um saxofone...


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