segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Para um minuto de meditação - 47

 

“Nada mais injusto do que a desvalorização do livro em nome da vida vivida. O livro inclui uma experiência que se junta à nossa, alargando os horizontes da nossa própria existência.

  O livro é vida autêntica, larga porta para os mundos fantásticos, único caminho que nos pode levar para além dos limites estreitos do imediato.”

 

                                                                     Pedro de Moura e Sá


Um poema de Juan Pedro Moro (Alcalá de Henares, 1966)

 

Londres

 

Visitei Londres pela primeira vez numa manhã de Primavera.

Numa das margens do rio, um pouco ao estilo vitoriano

rapazolas snifavam tranquilamente

tornavam real e popular o mistério que William

Blake espalhou pelas coisas do inferno e do céu.

Velho carola

O que eu lhe li nas entrelinhas

o que eu inventei à sua custa com a proverbial

lucidez mediterrânica

Mas passemos adiante. Salvo erro

e creio que isto é exacto 

daquela maneira desasada é que habitualmente circulavam

os que numa serena e fresca noite resolveram limpar o sebo

mesmo sob o nariz dos transeuntes

à jovem Elisabeth Douglas com sete naifadas no baço

(a sua mãe, o seu pai choroso

o ar compungido da locutora boazona

o cheiro provável a cera fria dos demais figurantes)

Os cisnes em Datchet Court

solenes como dois turistas numa pensão da linha.

Londres, Londres  dali vejo partir os velhos aventureiros

G.A.Henty com a sua gravata verde os olhos piscos

Poetas envinagrados conjurando-se a uma esquina

lançando a âncora num pub despertando lembranças

Sucheu   Bali   as savanas do monte Kenya

lá passam de autocarro até Hampstead

não naturalmente pelos livros mas sobretudo

pelos leitores “recordo-me que uma vez

tentei trabalhar numa casa depois de uma outra quadrilha

lá ter estado” . O meu vizinho que sabe

que tudo é citação faz-me sorrir

conta-me coisas   adormece-me.

 

Muitas coisas ficam desconstruídas, do grave

ao divertido

ao fim duma meditação intempestiva

Os domingos de sol

As prímulas na pradaria de Runnymede

O choro de Defoe ou de Donne sobre os rochedos de Chaltenham

O amplexo de um preto velho numa lojeca de Carnaby Street.

Mas a inocência

é já matéria sem relevo

é uma pérola uma pedra fibra descarnada e melancólica.

Londres exactamente   e tudo o mais é divagação

há 300 anos eu aqui seria um inimigo.

Os salpicos de lama feriam-me a concentração

mas não havia bruma   ouvia-se

um piano mecânico nas redondezas

Deserta a cidade rapaziada pedante mariquices isabelinas

- o obelisco como um carvalho nas colinas de Cape Staines.

É difícil pensei eu lançar o olhar em volta

tanta coisa poderia eu sei lá acontecer

A rapariga junto ao poste de iluminação, pensativa

Cinco sonatinas para violoncelo e a sombra de Mateus Pipperbarem

uma voz que ondula de repente   e pára.

Ferrovias contudo desdobravam-se ao longo dos continentes e foi então

que me ocorreu   Mas que faço

eu aqui

No entanto uma doçura muito velha percorria-me de cima a baixo

a Inglaterra florida e violenta martelava-me na cabeça

Robinson surgia de súbito acenando, com um jornal na mão

Interrogativo um pouco alucinado.

 

A minha alegria ousará abrir caminho por aqueles labirintos.

A tepidez do Inverno num lugar mais aprazível.

Olho de novo o céu. A multidão comprime-se.

Noutras condições pergunto ainda estarei no recanto que sonhara?

 

                                                                        (Tradução ns)


É assim que se faz a estória...

 

Um texto de José do Carmo Francisco






«As palavras em jogo» não são para todos mas podiam ser

    Já sei, desde 1978 quando comecei a escrever no «Diário Popular», que Portugal tem um sistema cultural tenebroso, entre maldade, estupidez e má fé. Luís de Camões em «Os Lusíadas» termina o Canto X com as palavras «ter inveja». O morto que fala, o cantor que não canta, o juiz que trabalha na TV, tudo isso e muito mais, são sintomas da doença do sistema cultural. A maior parte dos portugueses conhece Bulhão Pato pelas amêijoas, Bocage pelas anedotas e Camões pelo olho perdido. Um dia quis entrevistar um escritor que me respondeu «Eu estou habituado a dar entrevistas a grandes jornalistas!». Contaram-me que um responsável cultural falou de mim nestes termos: «Não o ponham tão alto que ele nem é licenciado!».

  Este assunto não é pessoal, longe disso. Estamos sempre a aprender; hoje quero referir um aspecto que desconhecia por completo. O livro «As palavras em jogo» (Editora Padrões Culturais) vai ser destruído por decisão do administrador da massa falida. Mesmo que alguém o queira comprar para o oferecer a Escolas ou Bibliotecas não o pode fazer. O livro tem 220 páginas e integra entrevistas com as seguintes figuras: Álvaro Cunhal, Américo Guerreiro de Sousa, António Alçada Baptista, António Roquete, Carlos Mendes, Clara Pinto Correia, Daniel Sampaio, David Mourão-Ferreira, Dinis Machado, E.M. Melo e Castro, Eduardo Guerra Carneiro. Eduardo Nery, Fausto, Francisco José Viegas, Helena Marques, Joaquim Pessoa, José Duarte, José Fernandes Fafe, José Manuel Mendes, José Nuno Martins, José Quitério, Lídia Jorge, Luís Filipe Maçarico, Mário Jorge, Matos Maia, Mia Couto, Nicolau Saião, Rita Ferro, Romeu Correia e Urbano Tavares Rodrigues.

   Junta-se uma memória de Francisco dos Santos, o primeiro português a jogar em Itália no ano de 1907, tendo sido capitão da equipa da Lázio.      

   Nota NS

   Claro que o que neste texto se conta nem precisa de comentários…Segundo soube, é usual fazer-se assim, numa clara acção de estraçalhamento do livro, da palavra escrita. Um facto semelhante é referido, no “Diário da Abuxarda”, pelo seu autor Marcelo Duarte Mathias, que numa entrada de Março de 2007 nos conta que também a um livro seu foi aplicado o cutelo destruidor…

  É destas pequenas(grandes)“nuances” que se faz a estória…de tempos deste tempo.


Eddie Constantine, Old Man River

 



quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Para um minuto de meditação - 46

 

“O que falta hoje aos políticos: a imaginação, misto de memória e intuição, e sobretudo cultura histórica, que é a chave do resto”.

                                                                     Marcelo Duarte Mathias


Poemas de Jean-Paul Mestas (tradução de Cristino Cortes)

 

Anne Frank


Agora tudo promete.

Toda a gente fala sem maneiras.

Tu poderás voltar

com uma outra infância

uma boneca

que tenha encontrado a língua.

 

Tu terás de novo as brincadeiras

de que nunca tiveste medo

a magia

como tu a imaginavas

antes do grito da roseira

e do desgosto das rolas.

 

 

Ludwig van Beethoven

 

                                                     «O som profundo da verdadeira alegria… »

                                                                Heiligenstadt, 6 de Outubro de 1802 

 

 

Não o soube conservar

e para o voltar a sentir

socorri-me da mais longa das encruzilhadas

por entre o canto dos pardais;

 

 

entretanto passaram os Invernos,

as manhãs cinzentas destilam

um sol impaciente,

num planeta irreflectido

atravessado por silogismos.

 

 

O som profundo da verdadeira alegria

favorece uma efervescência

e produz por vezes choques

em que a vida parece ofegante

com seus enganos e delicadezas.

 

 

O som profundo da verdadeira alegria

como um fundo de melodia

arrebata o infortúnio

e no obscuro

                     desabrocha.

 

Outonal 

 

                                           

Nos jardins secretos

as flores não escondem

senão o que dizem as folhas

vendo chegar o Outono

nos braços do vento

nos braços

dos amores que desaparecem.

 

 

Poetas

 

Não tiveram de seu

mais que a impressão

de pertencer ao século

e de entrar com ele

num reino onde a inocência

reconhece as suas colinas vagas

tomadas pelas rosas.

Viam-se crescer

   falavam deles

   os seus livros

   eram como vestidos de seda                              

   fazendo sonhar as mulheres.

 

    Terá chegado um rasgão

     a moda

     um verso a mais

     a morte

 

     e a euforia bateu em debandada.

 

Cada manhã conserva um prodígio

escuta

uma palavra sonha o que será

logo que tenha seguido

o homem que lhe abre o caminho

por entre as nuvens.

         

 

François Villon

 

 

Nós já nos cruzámos

não sei mais onde

tu atravessavas a noite

eu ia

de cometa em cometa

não compreendendo de todo

porque tinhas desaparecido

sem me deixar uma palavra

nem a tua última morada.


Nicolau Saião, Os verbos irregulares

 

ns



      SCIENCE FICTION

 

- Pois bem, meu senhores - disse o mais velho, que parecia ter ascendente sobre os outros - Façamos então o ponto de situação...o ponto em que estamos de momento. Pode começar você, Lestat...

- De momento, meu caro Vlad - disse repuxando a boca bem desenhada o jovem louro e atlético - temos gente nossa bem motivada em todas as cidades do globo. O discurso que lhes é comum insiste num ponto: o nosso direito a dispormos dos nossos ritmos místicos, da nossa… "ideologia" se assim me posso exprimir. É a tecla em que temos batido sem desfalecimentos. A questão de sermos uma comunidade vilipendiada, perseguida...discriminada...ofendida. Creio que me faço entender!

- Bem visto! - ronronou Vlad Tepes com um luzir nos olhos ardentes - E a nível de jornais, de gente que faz a diferença...como páram as modas? Você, Sagramor, pode elucidar-nos?

- É p'ra já, meus amigos - preambulou o negro de estatura elevada e de musculoso recorte na sua voz cantante e fascinadora - Para já, os homens de negócios que estão à frente desse sector já se juntaram em grande parte a nós. Intuiram que têm de ser compreensivos, modernos, que tem de haver tolerância com o nosso…colectivo. E na classe política e intelectual também existe um equilíbrio paralelo...Alguns dos homens de topo e mesmo outros medianos já entenderam a razão dos nossos… direitos. E são partidários do diálogo: já se começaram a desobstruir reuniões… O próprio Tónho, o próprio Marce…

- Não me venha com esses nomes! – cortou do lado a mulher de estatura coleante, sensual, de cabelos e olhos negros retintos, agitando a mão de unhas longas e pintadas de vermelho - Esses estão para onde lhes dá a brisa, Sagramor!

- Não seja exagerada, Carmilla... - disse Vlad Tepes censurando-a com algum vigor - Esse tipo de operadores sociais pode ser bem útil à nossa causa. Os fala-baratos também têm lugar na nossa demanda, não se esqueça. Tornam as massas maleáveis, compreendeu? E quanto ao seu sector? Isso é que interessa, o resto...é fantasia!

- Bom - disse Carmilla von Karnstein - O elemento feminino vai-se portando como se espera... Um pouco de moda, um pouco de tratamento televisivo, um bocado de romantismo e de doçura para adequar as meninges... Percebem?

   O jovem Lestat riu com gosto, pondo à mostra os dentes brancos e fortes como os de um lobo viril. 

 - Certo, cara Carmilla, certo. Boa jogada! As senhoras também terão um grande papel nesta opereta... A paz, a brandura de coração...O idealismo… Também o usei com esmero lá nos lindos Estados do meu sul natal. Parece que foi há três dias…e já lá vai uma eternidade!

- Porque bem vêem, meus amigos - disse Vlad Tepes com discernimento - O importante é levar isto, por enquanto, com mansidão e equilíbrio. O que se ganha com violências bruscas junto do grosso da opinião pública? Isso devemos deixar, quando fizer falta, para as unidades de combate...Elas sabem como agir. Quanto a nós é irmos pela diplomacia. De contrário ainda nos aparece aí de novo esse metediço, esse violento do Van Helsing e as suas exagerações. Não acham?

   E na sala mergulhada em amena penumbra criada por pesados reposteiros de veludo escarlate, em volta da magnífica mesa de carvalho escuro, as cabeças dos confrades acenaram afirmativamente, como se fôssem uma só.

 

  

 

CHIC  A  VALER!

 

Conde d’Abranhos - Mas não acha você, Rabecaz, que esta evangelização das massas tem que ser conduzida com jeitinho? Apelando aos sentimentos de brio do nosso bom povo e sendo discretos...habilidosos? Eu lá com os meus economistas era assim...E, se algum fulano levantava cabelo, era sem barulho que o transferia de serviço...que lhe dava uma tarefa inócua, estilo pontapé p'la escada acima... como se dizia nos tempos do compadre Salazaref.

 

Rabecaz - Ó Abranhos, valha-o deus! Isso são métodos de sacrista, homem! Eu nesta minha herdade, aprendi que com a malta só a porrete. É o que eles entendem, além disso lá dizia o conselheiro Acácio que este povo precisa de sentir a mão dum homem de brios no cachaço...senão desatam a querer descanso...e tal...e lá se nos vai a obra que tanto custou a erguer. Dá-me cá um ferro! É cascar-se-lhes, p'ra bem deste belo “sitio” (como dizia o nosso inventor) que queremos continuar a ter!

 

Dâmaso Salcede - Pois eu não concordo nem com um nem com outro! Quanto a mim isto vai ao lugar com umas palavrinhas sedutoras apropriadas. Lábia, meninos! Conversa de afagar corações, o que não significa que não se metam, se fizer falta, umas ferroadas...umas insinuaçõezinhas torpes ao gosto da maltosa! Como é que pensam que eu consigo o que quero na minha função? Ponho os ajudantes a tarimbar…suavemente. E para os trabalhos mais baixos, se tivermos precisão, mete-se o Medinas com a sua enxurrada de boa lábia a cair em cima da cabeça dos que não queiram as sopas. Chegou-me aos ouvidos que anda por aí uma rapaziada subversiva na Trotinet...

 

Rabecaz – Eu já não acredito que as palavras salvem, como diz aquele letrista premiado. Independentemente disso, estão comigo para o que der e vier, não é assim? Ai a pena que eu tenho que aqui não seja a minha região meio-beirôa! Haviam de comer poucas naquela lombeira... Dava-lhes pr'ó tabaco! Nenhum desses negregados se safaria de comer no côco umas berlaitadas, que é para aprenderem como elas mordem. Ou mandava-os para o deserto da margem sul... Comigo vai tudo raso!

 

Conde d’Abranhos – Você é sem dúvida um homem de sucesso, mas muito empolgado. Nestas coisas é preciso calma e tecnologia e falar-se-lhes ao sentimento de fidalguia…Um povo que andou nos mares, Rabecaz, não é lá qualquer coisa, seja-se da sua Beira ou do meu Entre Douro natal. Temos de aproveitar os salutares sentimentos de contestação e, mansamente, com habilidade televisiva encaminhá-los na direcção certa… O que eles não podem congeminar, podia fazer-lhes mal à enxaqueca, é que no fim quem deve ficar com o superavit é cá a bela panelinha, hein?!

 

 

Dâmaso Salcêde – Não deixa de ter razão...Mas como dizia o nosso inventor, a malta fica fula se lhe vão aos víveres... Como é que podemos ultrapassar essa, chamemos-lhe assim, pequena dificuldade?

Rabecaz – Bem visto, mas não perturbe a sua digestão. No momento próprio o Alpedrinha, aquele nosso criado lá dos orientes que agora está nos audiovisuais, arranja aí um escândalo da bola em termos, ou uma festarola estilo Expo qualquer coisa...e o panorama ficará uma delícia, vai ver.

 

(Fragmento único da única peça que até ao momento se conhece do grande Essa de Quelroz, aqui transcrita por um pesquisador de atónitas literaturas actuais).


Brahms, Hungarian Dance No.5

 



segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Para um minuto de meditação - 45

 

“Um homem que tem uma vida interior tempestuosa e não procura a sua transfiguração na palavra escrita é simplesmente um homem que não tem uma vida interior tempestuosa”.

                                                                                            Cesare Pavese


Um poema de José do Carmo Francisco

 




Retrato breve de Lucas no Paragon


Meu neto Lucas atravessa o Paragon

Entre patos no lago e papagaios de papel

Entre o trânsito intenso e o planetário.

Nasceu em 2011 no dia sete de Abril

Mas é segundo só nesta cronologia

 Dos quatro netos não faço distinção.

Em sonhos e pesadelos entram todos

Ninguém fica de fora nestes enredos

Nem Tomás, Lucas, Pedro ou António.

Lucas não conhece ainda as biografias

De Charles Gounod e John Stuart Mill

E passa muita vez à porta das casas.

Seu destino é outro, é apenas ser feliz

Sem olhar para o lado nem parar

Porque tudo na vida é um mistério.

Lucas atravessa devagar o Paragon

Em dia especial de não ir à Escola

E na forte razão de ser deste poema.    


In memoriam - Sobre Lud, habitante do outro lado do espelho (Junho 1948 - Julho 2001)

 


Lud, Paisagem, serigrafia (colecção ns)



A notícia, vinda no JL pela mão de Vítor Silva Tavares, apanhou-me de chofre.

  Horas antes, já um ex-colega tentara entrar em contacto comigo para me transmitir a triste notícia. E isto porque, à puridade aqui fica dito, a última conversa que tivéramos no dia anterior fôra precisamente sobre Lud - Ludgero Viegas Pinto - o pintor e poeta bissexto, o imprevisível Lud que contudo comigo sempre agira como um cavalheiro e confrade fraternal.

  Afinal, o Lud  já estava morto à hora em que concertávamos pedir-lhe desenhos para o suplemento que eu então co-coordenava (FANAL, inDistrito de Portalegre”) e em que combinávamos apanhá-lo, na próxima ida a Lisboa, para uma conversata até às tantas. Mas a vida – a vida que a morte, essa, não tem nada senão negrume – tem destes arrepios, destes desconchavos que nos derribam a alegria. A essa hora, a esse tempo em que congeminávamos projectos que o incluíam, já o Lud lisboeta dos quatro costados e alentejano por casamento e inclinação (como tantas vezes me disse nos tempos em que frequentávamos Monte da Pedra (Comenda), terra de sua mulher) percorria outros caminhos, outras jornadas de peculiar desenvoltura. Talvez em passo estugado, como usava nos seus bons tempos de empenhado fruidor de ritmos epicuristas, ou em passeio mais pausado desde que uma recomendação de médico lhe aconselhara dietas menos reconfortantes. À hora em que nós o recordávamos pensando para ele diferentes enquadramentos, Lud retoiçava  já noutras paragens com o seu atento olho negro de português retinto, o cabelo asa de corvo e o bigode à Douglas Fairbanks dos seus bons tempos.


  Lá por setenta e um setenta e dois, em certo dia apareceu-me na Estação Meteorológica onde eu, pela mão de Vitorino Caramelo, me iniciava como ajudante de meteorologista (única profissão que de facto tive, o resto foi só caminho civil para tratos de existência quotidiana) um sujeito de porte atlético solenemente vestido com um desses fatos azulados que se usavam na década, impecável camisa branca e gravata a condizer. Vinha falar com os responsáveis dum Liceu ou duma Escola do burgo portalegrense para que cordatamente o admitissem como professor de desenho. Propósito louvável,  mas algo quimérico. Como pouco depois vim a saber  pelo mesmo Pedro Oom que para mim lhe entregara recomendação, só por intemerato desígnio é que Lud se dera a esse périplo de potencial labutador…Com efeito, Lud  não era propriamente cidadão que conseguisse estar dia após dia, com esmero, ensinando estudantinhos com propósito e persistência. Ele mesmo se encarregou, digamos, de me esclarecer sobre o inusitado da indumentária, da farpela de dandy: “É só para a entrevista…”, elucidou-me na sua voz educada de alfacinha encartado.



Lud, O terceiro (óleo)


De modo que o que lhe ficou dessa viagem algo quimérica foi só um belo almoço na aprazível “Casa Capote” e, dispersa pelos anos, a amizade do signatário.

   De tempos a tempos aparecia-me em Portalegre, em geral acompanhado de um primo amigalhaço ou dum vizinho conterrâneo da esposa e lá íamos nós a caminho da aldeia de Monte da Pedra onde, numa simpática tasquinha a condizer, depois de lauta manducação de petiscos regionais nos entregávamos ao prazer singular e algo desenquadrado da declamação de poemas e ao trautear de algumas canções – manutenção de minha lavra – que o Lud acompanhava com fervor mas sem timbre excessivo…

    Em Lisboa, algumas vezes com Carlos Martins e, pelo menos uma vez, com o grande pintor Luís Osório e o poeta editor Henrique Madeira, demos nossos passeios cortados eventualmente por alguma partida das que gostava de artilhar. Pirraças em vol d’oiseau  mas que nunca indiciavam maldade, antes certificavam um humor de cepa lusitana sem ferocidades.

   Colaborou comigo em suplementos e revistas. Fez capa para um livro meu que não chegou a sair na altura por o seu presuntivo editor ter falido com pequenino estrondo, mas que foi o suficiente para se lhe entravar a rota. Expusemos em conjunto aqui e ali, no país e lá fora com envios pela prestimosa  e bendita via postal. E até combinámos, num dia mais sonhador e pachorrento, uma viagem a Itália que o Lud afinal não pôde fruir por mor de outros afazeres e, razão muito ponderosa, por não lhe abundar marcadamente o vil metal.

   Em casa dos familiares próximos do Dr. Feliciano Falcão, médico analista de excepção já falecido, conviva e amigo de Régio, está decerto uma obra sua. Foi compra/venda feita durante uma das tais viagens até aos rincões da serra de São Mamede. Por mor desse negócio artístico proveitoso, generosamente, o pintor quis debruçar-se comigo, fazendo do seu bolso as honras do bródio, sobre uma vasta pratada de marisco acompanhada de outros pitéus e líquidos condizentes, numa Casa do ramo bem conhecida ali ao pé do Coliseu da capital.

    Lud tinha mão de pintor e era – para mim sempre foi, como o atesta uma dedicatória iluminada com um desenho e aposta no meu exemplar de um livro de C.W.Ceram – um conversador tonificante ainda que algo deambulatório. Levemente intempestivo para alguns, não sei porquê mas sempre manifestou pelo que aqui o evoca e relembra uma cordialidade afectuosa e um companheirismo intelectual que nunca desceu à zombaria ou ao descontrole. Ares serenos do Alentejo o enlevavam nesses momentos? Não o sei, nunca o soube nem procurei tirar isso a limpo, confesso que jamais pensei muito nisso. Mesmo agora e quando ele se foi e só restou um halo de saudade com uma dúzia de anos.

  Nessa altura senti uma sensível amargura e disse para os meus botões enquanto lhe recordava o perfil desaparecido: “Até sempre, amigo Ludgero. Que descanses coloridamente, já sem as tuas habituais inquietações, na absoluta paz final!”. 



Lud, Gato número seis (óleo)



Leonard Cohen, Hallelujah (por André Rieu)

 



quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Para um minuto de meditação - 44

 

“A linguagem é viva, quando falam as obras. Cessem, por favor, as palavras; falem as obras.”

                           Fernando Martim de Bulhões, dito Sto. António de Lisboa


Poemas de Renato Suttana

 

FRUTOS

 

“E frutos deliciosos aí esperavam que tivéssemos fome.”

 

                                                                      André Gide

 

 

I

 

Estes frutos que o dia me oferece,

tão generosamente ali dispostos,

sobre a mesa, que um sol de abril aquece,

não são erros de abril, não são supostos:

 

são frutos em que o tempo amadurece

para além de surpresas e desgostos:

abertos ao fervor da minha prece,

como totens do dia, como rostos.

 

Quando para eles ergo a minha mão,

vazia de lembrança e pensamento,

de ter construído e conformado em vão –

 

o que deles obtenho é a forma clara:

uma delícia rubra do momento

que me sustenta, me confirma e ampara.

 

 

II

 

Maçãs: não vos cantei como devia,

quando, lento de espera e pensamento,

me dispersei entre os sinais do dia,

a procurar um rastro no amplo vento.

 

Não me aqueci ao sol que em vós havia,

nem de ser vosso espelho tive o intento,

bastando-me a penumbra da porfia

e o jogo sem sentido do momento.

 

Indiferente ao que de vós o imenso

incêndio do verão testemunhava,

sobre o meu olho pávido suspenso,

 

busquei na sombra a sombra em que se dava

a comédia imprecisa do que penso,

onde o meu sonho em neutro se inflamava.

 

 

III

 

Laranjas, de áurea cor que o olho medita,

que seriam sem vós a minha sede

e este desejo em mim, que o tempo mede,

de uma coisa mais própria, mais finita?

 

Se esta ânsia de encontrar, enorme e aflita,

que se ergue contra mim, como uma rede

(ou como contra um vento uma parede),

não descobrisse em vós o que a limita,

 

que seria este arder da noite à aurora,

este ignorar que em nada se melhora,

senão no vosso sumo ardente e estivo?

 

Em vós o meu orgulho se modera,

minha velha impaciência aprende a espera,

e eu sou somente aquilo de que vivo.

 

 

IV

 

Carne suave da pêra, que eu desvendo

entre os ventos e as horas, como quem

decifrasse a palavra de ninguém

sob aquela que o dia vai dizendo

 

(e se importasse mais com o sol que vem

do que com o seu silêncio ermo e tremendo:

em que nada descubro nem aprendo,

que é apenas uma luz que o dia tem).

 

Teu sabor em meu lábio me serena,

como um rio é sereno em seu descer,

correndo para o mar que ao longe acena :

 

como uma espada aplaca o aço que faz

o corpo do seu sono mais falaz –

onde o perigo aguarda e quer nascer.

 

 

V

 

Dorme – rugoso e espesso – o coração

do pêssego, em silêncio, dentro dele:

e o seu bater e a sua pulsação

não se adivinha sob a cor da pele,

 

que é rósea e aveludada. E, quando a mão –

toda pressa que apanha ou que repele

tenta um esforço de decifração,

o que ele diz ao tato não é ele:

 

é preciso prová-lo, lentamente,

numa tarde de outubro em que ter fome

tem o sabor da  fome que se sente;

 

ou, como uma asa prova o ar que a sustenta,

partilhar do que é túmido e sem nome.

na calma completude em que se inventa.

 

 

VI

 

Apresento-vos, pois: eis a banana,

na sua forma própria, tropical;

dentro da casca a polpa inaugural,

e além da polpa a fonte de onde emana

 

maciez e odor numa mistura tal

que do açúcar ao tato a mão se engana

e o olho toma a nuança que a engalana

(seu agudo amarelo original)

 

por qualquer coisa de íntima, que envolve

não o corpo do fruto madurado,

mas o próprio dulçor que se resolve

 

em consistência e forma; ou como um dedo

que, erguido em riste para o não provado,

mostra também a terra e seu segredo.

 

 

VII

 

Uma festa de mangas em dezembro

e um frenesi de insetos; e o que vejo

supera o êxtase de ontem, que não lembro,

sopitada a monção do meu desejo.

 

E no entanto ainda quero, ainda planejo,

ainda procuro como quem de um membro

privado ainda buscasse algum sobejo,

já velhos os desastres de novembro.

 

Desço da casca ao sumo, e vou de mim

à promessa dourada que se guarda

em seu jamais tocar extremo ou fim:

 

pois é dezembro em tudo; e, se o sentido

paira em nós como um sol adormecido,

é justo que ele acenda, é justo que arda.

 

 

VIII

 

Teus segredos não foram revelados,

e entanto ei-los ali: junto à soleira,

pela mão de algum deus depositados,

que também nos legou a arte e a maneira.

 

(Portanto não se diga da videira

que seus caminhos foram sazonados;

mas diga-se: são muitos, não trilhados,

que é o mesmo que se diz da vida inteira.)

 

Do mistério da seiva, que trabalhas

pacientemente, enquanto a estação foge,

dê-se ao vencido a luz que se concede

 

ao vencedor de pugnas e batalhas:

o vasto esquecimento e o riso de hoje,

banhando como um rio a nossa sede.

 

 

IX

 

O dia em vós se anima, em vossa chama;

e eu em vós me consolo, em vós me aqueço,

na vermelha adstringência em que se inflama

qualquer coisa de mim que não esqueço:

 

e vogo então, mais rente ao que pareço,

em direção à voz que me conclama

para o centro da coisa em que começo

e sou também, na luz que se derrama.

 

(Caquis – na tarde acesa, e nada mais

que os complemente nisso ou que os resuma

em pensamentos nítidos e atuais.)

 

Que palavra direi que vos explique,

vos torne mais do dia ou simplifique –

no dia que se basta e se consuma?

 

 

X

 

Abacate: entre tons de verde e escuro,

tua semente evoca a geometria

deste mundo em que a vida, em queda, cria,

gerando as formas simples do futuro.

 

Dentro do teu invólucro maduro

(em mistérios de tempo e de alquimia),

ensinaste aos verdores do amplo dia

um gesto mais contido, um tom mais puro.

 

Se da paisagem guardas uma parte

em tua carne esmeraldina e agreste,

só não o sabe quem não foi provar-te:

 

quem não desceu à claridade doce

que se aprofunda em ti, como se fosse

a aurora dessa noite que te veste.

 

17/19-11-2005

 

Renato Suttana (n. 1966) é professor universitário e autor de Uma poética do deslimite: o poema como imagem na obra de Manoel de Barros (dissertação de mestrado, PUC-MG, 1995) e dos livros Visita do fantasma na noite (poesia, 2002), O livro da noite (prosa, 2005) e João Cabral de Melo Neto: o poeta e a voz da modernidade (São Paulo: Editora Scortecci, 2005) e Bichos (poesia, 2005, ed. integralmente ilustrada por NS).


Aos confrades, amigos, adeptos e simpatizantes

     Devido a um problema informático de última hora, não nos será possível fazer a postagem desta semana.    Esperando resolvê-lo em breve,...