Uma vez não são vezes… Mas
por vezes acontece que, ao lermos nos jornais determinados textos, somos
suscitados a reproduzi-los por mor da sua qualidade, da sua justeza momentosa e
do retrato de realidade que transportam.
É o que sucede com este artigo, da autoria de
Diogo Vaz Pinto, vindo a lume no Jornal I – e aqui lhes deixamos a nossa vénia
cordial – que se reproduza neste nosso espaço dada a sua qualidade insofismável.
Manuel Hermínio Monteiro. 20
anos depois,
porque foi esquecido o mais cúmplice editor dos poetas?
Tinha 48 anos quando morreu. Duas décadas depois, o que justifica
tenha sido apagado o homem que, depois do 25 de Abril, pegou numa editora
moribunda, rasgou o caminho numa direcção inesperada, editando poetas, criando
colecções inovadoras, dando um fôlego inusitado à divulgação e à crítica,
ajudando a dar-nos uma ideia do meio literário como algo vibrante, enquanto
marcava a agenda, e fazia da publicação de livros verdadeiros eventos e de
tantos autores, alguns esquecidos, figuras de culto?
Também o ódio, a inveja e a mesquinhez rezam, também elas
criam os seus deuses medíocres, e nesta terra só parece haver verdadeira
devoção na inveja e na inimizade. Isso talvez explique por que tão poucos são
lembrados com a estima pelas melhores coisas que entre nós se fizeram. E assim
é no campo da cultura, particularmente no que respeita aos livros, num país
onde tão poucos leitores sentem a dívida que têm para com os editores. Nesse
cálculo de sombras, se são apagados os raros exemplos de editores que foram
capazes de contrariar a modorra em que vivemos, é comum depois reunirem-se os
outros para concordar que não existem hoje ideias que salvem nem um ambiente
que fundamente os nossos melhores esforços. Tudo se perde, e deste modo, como
se diz num poema de Sophia, navegamos sem o mapa que fizemos. Tudo isto se
agravou depois do fenómeno da concentração editorial, e este meio mal parece
ter sobrevivido, tendo digerido o próprio estômago, a sua capacidade de mostrar
confiança nas próprias ideias que divulga, de modo a fundamentar assim uma
prática. Hoje, dos editores não se espera grande coisa, não são tidos nem
achados em qualquer discussão pública, não apenas porque quando o fazem pouco
acrescentam, mas também porque a época se tornou demasiado cínica para sequer
contemplar hipóteses de salvação. O país não está para as grandes voltas do
espírito, para intrigas oníricas, e é cada vez mais só até ao joelho. Assim,
quase tudo o que ainda vai sendo publicado com algum espírito crítico, morre
debaixo da saia das instituições, nomeadamente as académicas, e tantas outras
coisas não chegam a ser realizadas, sufocando no regime burocrático desse
“impecáveis profissionais enfermos de prudência”, que condenam às margens
aquilo que, mais tarde, virá a ocupar o centro do fenómeno literário.
Nos dez anos da morte de Manuel Hermínio Monteiro, a
editora que resgatara da falência e que se tornou um caso de sucesso publicando
poesia, sofreu “um duro golpe perpetrado por Manuel Rosa”, que lhe sucedeu à
frente da Assírio & Alvim. Quem o disse foi Manuela Correia, companheira
muito cúmplice de mais de duas décadas de vida de Hermínio. Num protocolo de
colaboração para as áreas de edição e distribuição firmado com o grupo Porto
Editora, ficou aberta a porta ao que já se antecipava que viria a suceder mais
tarde: a aquisição daquele catálogo e a dissolução da sua linha editorial,
passando a Assírio a ser apenas mais outra chancela e tendo, entretanto,
perdido o seu papel enquanto referência na edição de poesia inédita. Manuela
Correia esclareceu ao i que tinha entendido todo aquele
processo como “uma tentativa de branqueamento” no que concerne à história da
editora, sendo “omitido de forma consciente o papel de Manuel Hermínio Monteiro
na construção daquela que, hoje, ainda chamamos a Assírio & Alvim”. Porque
não há como resgatar aquele projecto, numa manobra que permitiu, no entanto,
que Vasco David, sobrinho de Manuel Rosa, chegasse, anos mais tarde, à direcção
editorial da divisão literária da Porto Editora, podemos ainda fazer alguma
coisa pela memória do homem que, segundo um outro editor do mesmo grupo,
Francisco José Viegas, disse ter transformado a forma de olhar e conceber a
edição contemporânea e ter marcado uma nova geração de editores e autores. E
esta tentativa de resgate é feita quando passam vinte anos do desaparecimento
de Hermínio, tendo essa efeméride passado em branco.
Dele se poderia dizer, usando as palavras de René
Magritte, que, neste país, “toda a gente se parece com ele”, pois era português
em tudo, mas depois havia outra coisa, um desejo desesperado daqueles que se
foram daqui, que deram o melhor deste sangue a outras paragens, se muita gente
se parece com ele, ele não era o Manuel do par com a Maria que vai com as
outras, pois os seus olhos estavam atentos à cidade e ao campo também, e ao
princípio do mundo como ao seu fim. Ele era dono das recordações, pormenorizava
as aparências. O seu sonho provou ser infalível perante tantos outros que não
fizeram qualquer caminho, ou se venderam por muito pouco. Ele era dominado por
essa demanda do longínquo. Tinha a consciência afinada pelo assombro de tantas
leituras, e sabia como esse é o melhor sistema, pois consegue criar uma
convivência que não se baseia na força, antes apoiando-se “numa delicada
urdidura de acordos e numa incessante conversação” (Irene Vallejo)
Nasceu bem no interior numa aldeia de Trás-os-Montes,
Parada do Pinhão (Concelho de Sabrosa), e ali viveu até aos dez anos, fazendo a
instrução primária, e contava como, tendo nascido em 1952, cresceu pelo século
XIX, tendo visto chegar a electricidade, a rádio e a televisão “A escola era
uma mesa muito grande numa sala; em bancos corridos estavam numa pontinha os
meninos da primeira classe e na outra ponta estavam os da quarta, alguns já com
17 ou 18 anos”, contou numa entrevista a Anabela Mota Ribeiro, meses antes de
“a flor maligna” que lhe tragava a carne tê-lo arrancado ao convívio com os
seus.
Ao contrário dos enfezados citadinos que julgam deter uma
visão cosmopolita da existência, ele tinha orgulho na sua ruralidade, e conhecia,
por assim dizer, o princípio do mundo, como as coisas começavam, os inícios, as
origens fabulosas, tendo assumido com prazer a tarefa de encantar os amigos
pelo que resta de profundo no país, servindo de cicerone, e levando-os a
descobri-lo. Reivindicava os antigos saberes, até a tradição oral. Sabia de
pássaros (“O meu pai adorava ensinar-me como cantavam os pássaros, a imitá-los
a todos”), não sofria da cegueira das plantas, conhecia as árvores, desde as
trepar na infância até se acoitar na sua longa paciência e sombra consoladora.
“Continua a ser para mim um autêntico milagre ver a cada ano como a seiva sobe
pelo interior de uma árvore e vai desenhar cada folha e não se engana”, disse
numa entrevista televisiva a Inês de Medeiros. E a Mota Ribeiro explicava como
era a cultura que tinham lá onde cresceu, “desde cantares, guitarras, uma forte
tradição do teatro, festas feitas conjuntamente – havia laivos de comunitarismo
permanentes. Ao mesmo tempo a aldeia fechava-se, como se um medo a rodeasse, ‘Fulano
de tal ainda não chegou à terra?’. Imaginavam-se coisas completamente loucas,
derivadas também das casas onde o vento soprava pelas frestas, o soalho muito
antigo rangia, a luz da lareira era móvel; parecia que estávamos em empurrões
de barcos. Isto a juntar àquela imaginação alucinada, como ainda é lá em cima,
do maravilhoso celta; ou, para não sermos tão caros, a imaginação do próprio
meio que fermenta coisas – uma vez que não havia esta dispersão que há hoje.”
Teve algo muito parecido com a fogueira à volta da qual
se assume que em tempos imemoriais terão despontado as primeiras narrações, os
primitivos mitos e as histórias aprimoradas ao longo de gerações, e isto porque
a avó tinha um forno onde as pessoas iam fazer o pão e o avô tinha um grande alambique
“onde se juntava o pessoal todo, com a concertina, e mais não sei quê”. Eram
camponeses, e os pais de Hermínio tinham casado miúdos (ele com 18, ela com 16
anos), tendo ele nascido um ano depois. Viriam a sobreviver-lhe, e a certa
altura terá parecido que este homem que se fez sepultar no “interminável voo da
infância”, foi filho de si mesmo, e deu vida aos próprios pais. “Lembro-me
muito da minha infância”, dizia naquela última entrevista. “É uma espécie de
película impressionável: o que fica ali registado, marca muito, muito mesmo.
Tive a felicidade de ter uma infância completamente rural. O meu avô ia podar,
levava-me com ele, deitava-me no casaco dele. Nesta altura, que é das primeiras
ervinhas e flores, enquanto ele cantava aquelas canções, o Pinhão vinha com
fragor por ali abaixo, e sentia os lampejos do sol nos açudes. Para um miúdo de
sete anos isto era uma coisa fabulosa. Acordar num casaco a cheirar a tabaco –
o meu avó fumava onça – e ficar a olhar. Ficar com as florzinhas em primeiro
plano, ver o mundo mais rasteirinho. Nunca mais esqueci. De tal maneira que
ainda hoje a maior parte dos meus sonhos são: águas límpidas, rosas, pereiras
floridas, o meu pai a mostrar-me sítios por onde passávamos quando íamos à
feira.”
Depois, aos dez anos, foi para um colégio de Salesianos,
em Arouca, num antigo convento, “sinistro”. E assim começou a ver o mundo,
aquele miúdo que nunca saíra “lá de cima”, nunca tinha sequer posto os olhos no
mar, e dizia, numa das crónicas, compreender a razão de tantos navegadores
célebres terem nascido no interior. “Refiro de memória: Cabrilho nasceu em
Montalegre. Magalhães em Sabrosa. Diogo Cão de Vila Real. Álvares Cabral de
Belmonte. Talvez o mar fosse para eles ‘igual ao vasto apetite’. Um ‘mar sem
apoio em nenhum ponto do espaço, mas preso apesar de tudo numa enorme teia
diabolicamente construída para conseguir ser livre’”, anotava, recorrendo às
palavras de António Maria Lisboa, que seria, anos mais tarde, o primeiro autor
por ele publicado, em 1978, o primeiro poeta a integrar o catálogo da Assírio
& Alvim, esse que franqueou a coisa para os muitos que se seguiram.
Depois dos dois anos em Arouca, passou mais três noutro
colégio em Mogofores, perto de Coimbra, onde concluiu o quinto ano. Nesses
tempos lembra-se dos comboios, do tempo que demoravam a ir de umas terras para
as outras. “Era preciso meter água, era preciso meter lenha, depois manobras à
espera do outro. Mas também eram uma animação, aqueles comboios. Concertinas,
gaitas-de-beiços, comezainas, garrafões, tipos a contarem anedotas, tipos a
venderem romances de cordel (...) Entrava uma mulher com cerejas, ia de Godim à
Régua: dava logo cerejas ao pessoal.” Lembra-se também do muito que chorava com
saudades de casa, mas como, por orgulho, ele que era bom aluno, se recusava a
andar para trás. Depois chegou ao Porto, onde teve o primeiro contacto com a
cidade... “devo ao Porto ter-me desmamado em relação a uma série de coisa. Fiz
também um esforço para sair de um certo maniqueísmo religioso em que tinha sido
formado. Comecei a frequentar igrejas protestantes para ver como é que os
outros pensavam”, contou a Anabela Mota Ribeiro. As raparigas em flor também
ajudaram, e Hermínio nota que, nesse capítulo, estavam sempre a acontecer-lhe
coisas extraordinárias: “entrava num comboio e apaixonava-me, entrava numa
camionete e apaixonava-me.” E a sorte que tinha com o outro sexo, explica-a com
um certo embalo íntimo que trazia lá de trás: “Eu tinha uma felicidade
interior, uma tal transparência, que isso contagiava a outra pessoa.”
Naquela mesma entrevista, reconhece que a sua mola foi
sempre o afecto. “Nunca pensei ser rico, ter poder... Outra coisa era o amor,
isso sim, movia-me para o cu do mundo.” Mas ainda antes das cartas que escrevia
para as raparigas, muito antes começara a escrever para si, e foi porque queria
ser poeta e porque os poetas que mais lia e admirava eram todos licenciados em
Direito (“o Pascoaes, o António Patrício, alguns simbolistas...”), que perdeu o
primeiro ano na capital com esse curso. Reconhece naquela entrevista de vida,
que nunca teve um grande sentido político, e que mesmo na oposição à guerra
colonial se ficou por mandar umas bocas. Mas é conhecido o episódio em que foi
parar a Caxias, e, se outros fariam disso um emblema, ele desvaloriza-o, dizendo
que lhe aconteceu “basicamente porque estava a ouvir o Zeca Afonso no Centro
Nacional de Cultura”. E adianta ainda que a experiência só serviu para que
desse provas da sua enorme ingenuidade, pois enquanto lhe davam “um enxerto de
porrada inacreditável”, estava perplexo e só perguntava “Porque é que me está a
bater?”
Tinha o cabelo grande e cortaram-lho. Era de um negro,
asa de corvo, uma espécie de orgulho, como aquele bigode que punha um ar de
malícia no rosto largo, aberto. Ainda implicaram com as “coisinhas” que trazia
num saco. “Meteram-me numa cela sem um papel, sem um livro, nada, nada. Um dia
parecia uma eternidade.” E aí está essa distância que identifica um homem dos
livros. Para defender-se da eternidade, por que suplica ele: ao menos um papel,
um livro. E depois o reconhecer como as palavras são esse último reduto da
liberdade que resiste num homem. “Lá dentro apercebi-me de que havia luta: nos
pratos, no alumínio, escreviam coisas como “Coragem, estamos contigo,
“Resiste”; na enfermaria havia coisas escritas a sangue; e havia gajos que
cantavam, cantigas alentejanas.”
Depois dessa semana em que foi dar com os ossos na cela,
tinha então 22 anos, chegou à Assírio & Alvim, que havia sido fundada dois
anos antes, em 1972, e que pouco depois estava de pantanas, num regime de mera
sobrevivência. “Quando fui para lá, os livros editados não chegavam a dez”,
recordava. “A Assírio vivia mais da distribuição do que da edição. É nesse
contexto que entro, um pouco desinteressadamente.” Foi para a parte das vendas,
para tentar sustentar-se enquanto concluía o curso de História na Faculdade de
Letras de Lisboa. Depois de completar o curso, ainda teve a passagem pela
tropa, e devia ter ido para os fuzileiros antes de se dar o 25 de Abril, mas
furtou-se a isso e diz que andou a monte por uns tempos. Ainda foi fazer
vindimas a França, viajou sozinho antes de, por fim, em 1978, assumir um papel
mais activo na editora, levando a uma viragem decisiva na sua linha editorial,
para cinco anos mais tarde, em 1983, se tornar o seu director editorial. Depois
de publicar a obra literária de Maria Lisboa, seguiram-se as de Herberto Helder
e de Mário Cesariny, mas também as de Mário de Sá-Carneiro, Teixeira de
Pascoaes, Ruben A. ou Ângelo de Lima. Mas se disse sempre que seria o amor a
levá-lo ao cu do mundo, se em 1978 assentou arraiais, isso deveu-se a ter sido
também nesse ano que conheceu Manuela Correia. É ela quem recorda no
documentário de André Godinho como se cruzaram numa estação de metro, e como
ele vinha todo contente com um exemplar acabado de imprimir dos Poemas de
António Maria Lisboa, livro que ainda cheirava à tipografia. Depois de
começarem a falar, ela quis dizer-lhe o quanto gostava de livros, e confessou
como dias antes tinha roubado um na Assírio & Alvim.
Apesar de, confessadamente, ter cadernos que nunca mais
acabavam cheios de versos, quando deu por si em condições de “publicar tanta
poesia tão boa”, desinteressou-se da sua ambição de ser poeta. “Ah, a
vaidadezinha, não tenho muito essa vaidadezinha. A vaidezinha que tenho é
colectiva, por amigos.” Revelou-se, no entanto, um notável cronista, um poeta
secreto, alongando os versos, partilhando o seu imenso encanto por tanta coisa.
“Escrevo coisas incríveis, só que não as escrevo. É como se as escrevesse, andam
assim por dentro. Poemas feitos.”
Foi entre nós um grande mobilizador, um homem capaz de
fazer tempo, ou melhor, fazer esses juízos que os ignorantes costumam dizer que
caberão ao tempo. De resto, procure-se os dedos dessa mão desfeita para contar
ainda quantos editores hoje dedicados a essa forma de actuação seriam capazes
de exprimir com esta clareza e esplendor a razão que os move: “Nascemos para o
que nos rodeia vezes sem conta. Em cada renascimento há um estendal de coisas
novas à nossa disposição que produzem a nossa vida. E outras coisas tomam
inédita postura ou fingem escondimento e sorvem a nossa vida. São os nomes que
nos ligam às coisas. E toda a vida aprofundamos, ampliamos, compreendemos,
explicamos esta estranha e familiar ligação, nunca concluída com o nome que
envolve cada coisa, ‘o espantoso nome que damos às coisas’. E com o tempo
percebemos que a literatura é um habilidoso e multifacetado artefacto que toma
os nomes e, a partir deles, conduz ao mais íntimo coração das respectivas
coisas.”
Hoje, quando todos se engalfinham na edição,
desprezando-se mutuamente, não resiste qualquer espaço comum, a não ser no
campo comercial, nas livrarias descaracterizadas das grandes cadeias, mas
perdeu-se aquele território onde as sombras se cruzavam e feriam, onde os ecos
se incitavam entre si. Hermínio concebeu e dirigiu a singela folha cultural “A
Phala”, traçando uma ciência de navegação que orientou criticamente a
divulgação dos autores que publicava e não só, deixando claro que o desejo de
vender acaba por estreitar as linhas de fundo, e o seu contributo foi, por
isso, decisivo para mostrar que a crítica é essencial para dar a conhecer e
admirar em vez de impingir e desgastar como faz o marketing. Entre os cem
números publicados, destaca-se o fabuloso volume “A Phala: Um Século de Poesia
(1888-1988)”. Hermínio criou ainda no espaço da Assírio, na rua Passos Manuel,
em Lisboa, uma galeria de arte. Dinamizou as livrarias nos cinemas King, de
Lisboa, e no Porto. Foi autor de programas radiofónicos e televisivos.
Prefaciou livros e escreveu textos para catálogos de exposições e esteve com
Miguel Esteves Cardoso na criação da Revista K, tendo colaborado ainda na
revista “Ler”, integrado o conselho editorial da revista “Espacio/Espaço
Escrito”, de Badajoz. Entrou ainda na criação da revista hispano-americana de
poesia “Hablar/Falar de Poesia”, e colaborou numa série de outras publicações
como “O Independente”, “Jornal de Letras”, “Douro-net”, Revista “Barata”, e o
jornal “ La Vanguardia”, etc.
E se em 1993, foi agraciado como Comendador da Ordem do
Infante D. Henrique, pelo Presidente da República Mário Soares, hoje, se
quisermos ouvir esses que falam à boca pequena sobre o seu legado, apenas nos
chegam relatos de calhandrices, esquemas para abichar umas massas. Mas isso
também caracteriza o meio literário português, e particularmente os editores:
um bando desavindo, canibalizando-se uns aos outros, julgando que se secarem
tudo à volta mais sobrará para eles; isolando-se uns, enquanto outros se
associam numa “camorra de medíocres” (Eduardo Prado Coelho), num cerco
constante às instituições, aos dinheiros públicos, sempre numa histeria
enchendo a boca com as necessidades da cultura.
Depois ainda há aqueles que se dizem marginais, e não
passam de tiranetes que assim tentam impor a sua lei de intrometidos morais
omnipotentes. Para quem tudo à volta é um nojo, uma grande montanha de merda,
na qual gostam de sentar-se como num trono prosseguindo a pregação na sua
rezinguice de moscas. Ele, pelo contrário, soube ter gente muito diferente à
sua volta, admirar e sofrer os seus autores, foi um editor-estratega, atento,
cheirando a tempestade a dias de distância ainda quando era formulada nos
territórios da imaginação. Sabia cozinhar trovões, fazê-los ressoar ao longe e
ao perto. E isto num país onde o que está perto é o mais difícil de se
conquistar. Tinha também a ciência de sacar os cobres necessários, fazer as
alianças certas, criar um colégio de espíritos esfaimados que em vez de
manifestos lamurientos, sabiam que se não há, cabe-nos inventar isso, a própria
vida, o mundo, outra versão das coisas.
Mas, entretanto, se o melhor desse exemplo há muito se
perdeu, restou apenas o pior. Editoras como navios encalhados, cuja tripulação
anda por terra fingindo mal os trejeitos e o desvario dos embarcadiços. Longe
vão os tempos em que os editores não esboçavam meramente uma mesa de amigos em
seu redor, mas tinham uma palavra, não necessariamente a última, mas essa que
acompanha, que percepciona criticamente, guiando autores, abrindo caminhos.
Tudo isso está muito longínquo quando damos com figuras apagadas, alguns
semi-analfabetos que, seguindo o regime geral do nepotismo, se mantêm ao leme
de editoras em tempos prestigiadas. Para muitos destes, a edição é um emprego,
para outros um negócio, para muito poucos é uma visão estruturante. “Ele
acreditava”, diz Graça Morais no documentário de André Godinho dedicado a
Manuel Hermínio Monteiro. “E acreditava porque era intuitivo, muito sensível,
porque era uma pessoa com muitos conhecimentos. Só uma pessoa culta é que pode
acreditar. As pessoas ignorantes nunca acreditam, desconfiam sempre.”
Manuela Correia lembra-se de o ver gastar o que tinha e o
que não tinha para segurar a editora, e como o fim do mês chegava e houve vezes
em não tinha dinheiro sequer para comer, tendo sido o salário dela como médica
psiquiatra que os aguentou. Lembra-se também de como certa vez chegou a casa a
chorar depois de um desentendimento com um dos autores, um desaguisado que
sentiu como uma traição, e de como isso levou a que fosse ela quem muitas vezes
sentiu necessidade de interceder. E vinca como houve autores que Hermínio foi
buscar ao esquecimento, e como era o próprio Cesariny quem reconhecia que ele o
fora buscar à sarjeta.
Havia nele essa capacidade de espanto e surpresa
renovados diante dessa invenção tão antiga e que nunca mais acabou de se
renovar, a escrita. E vincava que “nada há de mais sublime do que constatar
como pequenos desenhos repetidos, impressos numa forma que rapidamente se
esquece ao ler, seguram as pontas ínfimas da alma”. Foi, por isso, o último
editor português que verdadeiramente apoiou e instigou a crítica literária
entendida como uma conversação entre pessoas inteligentes, capazes de exercer
esse gesto de criação sobre a criação, com fervor e entusiasmo. Entendia o
feitiço persistente dos livros, esses objectos que tocam ao de leve a
perfeição, sem deixarem de ser frágeis, capazes de registarem esses
estremecimentos de água que ocorrem no espírito, e que são, por isso, dignos de
repousarem na orla das nossas vidas secretas. Há uma intensidade que escapa as
ambições mais nervosas que hoje dominam a cidade. Os livros formam assim uma
rede de túneis subterrâneos, por meio dessa sombra movediça que regista provérbios,
canções, adivinhas, contos, lendas, versos, fabulas, todo esse mundo de
palavras malabares que começaram por nos cercar na infância, como diz Luis
Landero. “Nos livros lidos está a sombra, o rasto do que fomos, os diversos
esboços da nossa aprendizagem, os vestígios de certos afãs que um dia nos
comoveram”
“Rosa do Mundo: 2001 poemas para o futuro”, foi o livro
testamentário de Manuel Hermínio Monteiro, de acordo com Manuela Correia, que
foi responsável pela sua organização. E é, não só entre nós, mas em todo o
mundo uma das mais ambiciosas antologias da poesia de todos os lados, de todos
os tempos. Um livro imenso em que foram reunidos os esforços dos melhores
tradutores de poesia no nosso país, e que serve como um testemunho perpétuo do
poder da “Canção”: “Abre o fruto de odor inquietante/ e nunca, nunca mais te
poderás saciar. Os caroços escorregam como ovos debaixo dos teus dedos./ O sumo
é forte e doce como o alho e o leite”, lê-se num breve poema indonésio, vertido
por Herberto Helder.