Breve discussão sobre o impróprio
Um homem reflete sobre aquilo que lhe
inquieta a alma. Não um tema em isolado, mas antes a forma como o mundo se
apresenta diante dele como um teorema a ser resolvido. Na medida em que tocamos
a natureza do que nos apraz e nos deixamos por ela tocar, a vida ganha um
sentido cuja medida é a do instante em que percebemos sua grandeza irrepetível.
Compreender o quanto um homem é possesso ou inspirado, desentranhar os inúmeros
ninhos abissais de caminhos que nos levam de uma parte a outra de nós mesmos, este
é assunto que nos revigora a alma na medida em que reconhecemos nossa
habilidade para tocá-lo.
Há no entanto uma teia demasiado comum e sagaz que envolve o conhecimento
e degenera sua habilidade em mero truque de repetição. O passado assim deixa de
fazer parte de nossa vida como amalgamado ao que somos, em um processo
contínuo, desloca-se de nossa essência, como um ardil tangencial, e se torna… História. No sentido linear de uma
fabulação cronológica. Essa forma degenerativa do conhecimento nos privou de uma
relação com a essência do ser, posto que aquilo que somos tem por raiz
insofismável a profusão de tempos compartilhados simultaneamente.
Um homem que reflita sobre a inquietude de seu espírito reconhece que é
tanto a memória de seus planos quanto o sonho de suas realizações. Sabe o
quanto é preciso corrigir o passado graças ao argumento do que ainda não viveu.
Sobretudo compreende que não há outro modo de sentir-se no presente senão pondo
em dúvida a estabilidade de seus conceitos. Se o presente deveria atuar como
uma espécie rara de dignificação da realidade, então o esquartejamos ao modo de
uma disciplina de prioridade de estímulos que não mais atendam à unidade, mas
antes à fragmentação estratégica do ser, já aqui tornado uma farsa.
Jorge Luís Borges em certa ocasião recordou que "a imprecisão é
tolerável ou verossímil na literatura porque sempre tendemos a ela na
realidade". Aí está a raiz do efeito fabular que nos levou a um mundo
seletivo, de crença no poder discricionário. A esfera humana reduzida a seu
encargo de interesses. Uma sociedade assim deliberada equivale à
impossibilidade do pensar. A própria consciência atua como uma permanente fonte
de advertências acerca do que é correto ou temerário no ato menos elaborado da
reflexão.
João Garção reúne aqui uma espécie de inconveniente alegoria acerca não
propriamente de um ou outro tema, mas antes do modo de rejeição corriqueira ao
ato de pensar. Seus ensaios averiguam as mais diversas situações da criação
humana, porém sua síntese possível nos leva a uma ênfase radicada mais naquele
princípio inicialmente aqui referido de ir além do tempo e do espaço em que se
dá a nossa inquietação pelo conhecimento. Ele próprio, em uma de suas sagazes
reflexões, menciona a instabilidade de nosso modo de reflexão, ao distinguirmos
visão, compreensão e sentido, como se fossem métodos estanques de apropriação
da realidade.
Ao escrever sobre Hieronymus Bosch ele o situa como um "visionário
integral", e o que me leva a citá-lo diz respeito ao fato que este é um
princípio que não se aplica somente à leitura da obra do pintor holandês do
século XV. O próprio João Garção entende que deve ser um visionário integral ao
meter-se com a criação de Bosch. Isto significa que não somos apenas parte
daquilo que desejamos, imaginamos ou mesmo lamentamos. Um homem deve ser a
totalidade de si mesmo e de tudo quanto isto implica.
Esta me parece a pedra de toque da compreensão de mundo do ensaísta João
Garção, quer se refira ao mergulho no inconsciente, às inúmeras táticas de
destruição da liberdade, às farsas tecnocratas de uma política educacional, não
importa. Seus argumentos, sempre precisos, contribuem à elaboração de um
sistema de entendimento de como a realidade pode ser truncada ou evasiva, de
como suas derivações podem nos levar a um mundo que seja o oposto daquele que
desejamos ou ao qual nos sentimos aptos a formar parte.
Não é o tema em si, ou sua temporalidade, o que aqui se reúne na forma de
instigantes ensaios, mas antes a capacidade reflexiva que, esta sim, a
principal evocação deste livro, nos permitirá dar um salto para fora deste
mundo de iniquidades e distrações perversas que nos toca viver. Ler João Garção
é a configuração de uma fortuna do ser, ao menos a expectativa de que o homem
reflita sobre a saturação de sua própria existência, nos moldes em que a
acatou. A integridade é também uma forma expressiva da beleza.
“Pequenos ensaios” foi publicado
na editora “Apenas Livros”
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