A vida não é um problema a ser
resolvido, mas uma realidade a ser experimentada.
Soren Kierkegaard
Um espaço para todos os tempos, onde o leitor tem figura de corpo inteiro
A vida não é um problema a ser
resolvido, mas uma realidade a ser experimentada.
Soren Kierkegaard
A
JACQUES DUPIN
1. Sobre a vidraça coberta de névoa,
quantas vezes
é preciso
escrever a ausência?
Página sulcada
de mãos.
Andorinha – de
salto em salto – contigo
regresso até à nascente.
Debaixo do arco
convexo da ramaria
na planura, o
riso dum camponês
antecipa a
rudeza da subida.
Com eles me
cruzo, na volta dos caminhos.
Minúsculos
contactos que me dão
a sua silhueta.
O país mudou de
língua, por estas veredas
quando às
quintas se chega, um cão ladra
e disso me dou
conta.
Palpitam as
folhas duma planta – a ligeireza
de tudo o que a
enquadra.
Zumbidos. Toda a
noite. Insecto morto, afogado
no algodão da
manhã.
Caminho que nos
leva a esta trémula casa.
2. O vento sopra até junto desta
palavra que as minhas
mãos mais não
fazem que torcer para que delas saia
a inesperada
frescura.
Planta abundante
nos livros dos ervanários. E tudo
exulta sob o
manto das árvores, entre a folhagem
pleno de
inocência.
Doce piedade
transbordante. Piedade
da outra metade
do céu.
Purpúreo, nos
dosséis silenciosos, o diálogo
das flores entre
si.
Vibrantes, estes nadas – que tudo
tocam.
in Éclogas (Eclogues)
(Paris, 1950. A
obra completa deste autor tem a chancela da Mercure de France. Viveu em
Portugal e foi professor de língua e literatura francesas na universidade
coimbrã).
Fez há
um par de dias um ano sobre o falecimento deste nosso confrade - poeta,
cronista, viageiro, ensaísta e homem da rádio, além de cidadão interventivo.
Aqui o recordamos e à sua postura de pessoa
sempre cordial e participativa.
Nuno Rebocho
– Um convivente goliardo
moderno
“Muitos
são os benefícios de viajar: a frescura que nos traz ao espírito, ver e ouvir
coisas maravilhosas, a delícia de contemplar novos lugares, o encontro com
novos amigos e o aprender finas maneiras”
Muslih-din-Saadi, poeta persa
1.
Dizia Samuel Clemens (Mark Twain), também
ele viajante e cronista devido a decisão própria e, durante algum tempo, viageiro
por profissão, que viajar era passear um
sonho.
E acrescentou que a escrita que daí resulta
passa a ser o sonho transfigurado, com o seu território de realidades e de
quimeras, de minutos que se abriram para novas visões e novos pensamentos e
doravante perduram como relatos que nos ensinam e nos maravilham.
Andar pelo mundo e pela vida e escrever
sobre isso – pessoas, coisas, sucessos da mais diversa ordem – não é fácil
tarefa, é preciso manter simultaneamente a inocência (temperada por alguma
malícia), a perspicácia e um enorme sangue-frio, pois sem aviso as recordações
apoderam-se de nós e como que nos obrigam a passar para outra realidade, em
geral extremamente sedutora mas que nos enfeitiça com inexactidões
involuntárias, filhas do nosso mistério pessoal. Por isso Benjamin Disraeli
dizia avisadamente que “vi mais coisas do
que as que recordo e recordo mais coisas do que as que vi”. Todavia, a
grande solução consiste sempre em entrarmos generosamente na viagem, sem temermos a multiplicação de
experiências, até mesmo de acasos, pois sabe-se que no final a escrita e seus
interiores meandros – se dispomos da adequada dose de sensatez criadora –
acabam por depurar, resolver e transfigurar aquilo que se viu, se sentiu e se
viveu, como que por uma brusca mutação que vem não se sabe muito bem donde.
E depois há a memória que se convoca nos grandes momentos de fecunda solidão, de
fulgurante isolamento criativo em que somos simultaneamente objecto e sujeito
porque é por nós que passa a organização do que significam realmente as lembranças, do que foram efectivamente os perfis das
gentes que nos rodearam, os tempos
reencontrados em que revivemos uma conversa, um ritmo vital, um passeio, em
que de repente ressuscitam perplexidades e encantamentos, fragmentos de tempo
em que a nostalgia nos visitou sem que nos pudéssemos esquivar e que logo a
seguir assumimos peremptoriamente como um dos nossos maiores bens.
A isto, creio, chama-se compreender. Porque por detrás de toda a alegria difusa
transportada numa evocação, ou em todo o pequeno tremor que nos assalta ao
termos a sensação de que qualquer coisa
nos abandonou, há sempre um rosto ou a ideia de que por ali paira algo de
humanizado e aonde se chegou através de um olhar mais exacto, mais treinado
pelos mundos onde se esteve por destino e pelos universos que as deambulações
nos propiciaram.
2.
Já se sabe que a arte da crónica não é nem
nunca foi uma arte menor ou muito menos mero preâmbulo para qualquer coisa de
maior envergadura. Trata-se, com efeito, de um corpo inteiro que se joga ali mesmo, nesse continente de luzes e
sombras onde crescem deuses e demónios inteiramente nascidos da realidade que
se forja com os factos arrolados e sua representação palpável. Ou seja, uma
poesia muito própria e sem sujeições a outras escritas aparentemente de maior
porte no arsenal do autor.
Cronista e ser convivente, o viajeiro de
“Estravagários” – estas crónicas belamente poéticas sobre o Alentejo real que
os sonhos perduráveis do autor encenaram – tem parentes perfeitamente
reconhecíveis, ainda que seja seu e muito próprio o estilo que arrola entre o alinhavo jornalístico e o
desalinhavo livresco. São os amantes dos prazeres do espírito – e dos
outros que gostosamente passam pelo corpo e a que alguns, com certa dose de
leviandade, apelidam de transitórios ou baixamente materiais. Em todas as
evocações de NR se sente perpassar uma clara alegria de viver, ainda que
cifrada por alguma melancolia; donde o gosto pela boa mesa, por exemplo, não se
ausenta nunca – e repare-se que aquela expressão vai no sentido lato. O espírito do lugar, que é o das pessoas
que o habitam, é bem palpável com todo o seu manancial de coisas essenciais que
vivem intensamente se tivermos olhos para cheirar, ouvidos para ver e alma para
saborear. Nas crónicas de Nuno Rebocho, colega evidente de Goldoni, Hazlitt,
Cela ou Saroyan, sente-se que as pessoas que recorda e os acontecimentos a que
dá relevo não estão ali como pretextos fantasmais para umas tantas laudas
literatas, mas para habitarem o quotidiano deste seduzido sedutor. Caldeados
pelo pormenor argutamente observado, pelo trecho recortado com ironia, pela
frase incisiva e mediada quantas vezes por uma indisfarçável comoção, cobram
vida relatos donde pode extrair-se um perfume de passados finalmente
refigurados e limpos da escória que o tempo lhes fez adquirir, de coisas e de
momentos que se vão esquecendo e de outros que, embora existindo ainda na hora
que passa, irão ser pasto para esquecimentos futuros.
Com estas crónicas, onde freme um tom
pessoal e que possuem aquele sabor coloquial que a profissão do autor certifica
e esclarece, mediante a maneira
peculiar onde se desenha a sua aposta e o nosso privilégio Nuno Rebocho presta
inquestionável serviço à nossa convivencialidade humana e cultural, à nossa
memória específica de povo e ao nosso aprumo de pessoas que querem lembrar o melhor e o mais alto.
ns
O
Antigo Testamento é um compêndio de crimes contra a humanidade. É um resumo de
genocídio, extermínio, feminicídio, infanticídio, e tudo com agravante de
crueldade gratuita promulgados sob base étnica. A Bíblia não é um livro sagrado
e não fala de Deus. Quem afirma tudo isso é Mauro Biglino, estudioso da
história das religiões. Trabalhou como tradutor do Antigo Testamento para
Edizioni San Paolo (Itália). Seu contrato de trabalho se encerra assim que sua
carreira de escritor teve início pois revela descobertas surpreendentes, feitas
em 30 anos de análise dos assim ditos Textos Sagrados, que desde sempre são
mantidas às escondidas.
Jussara Matana
Debaixo de chuva és o sol, ele te aquece
Te alegra, e uma luz tu irradias;
Tu transfiguras o cinzento destes dias
E a sua razão, por tão natural, te esquece.
De todo imune às circunstâncias exteriores
Essa luz nasce em ti, alumia, está dentro
Não é reflectida. És tu própria o centro
Do júbilo suplantando todos os favores…
Debaixo de chuva, sim, sem te aperceberes
Tu transportas, inteiro o sol, brilha, só
Aparentemente encoberto. Qual a mó
Que ao moinho não pergunta seus funcionares
Nada, bem o sei, te espanta ou arrefece.
Por entre a chuva espelhas o sol. E aqueces.
*
SONETO CAMONIANO
Mudam-se os tempos mudam-se as vontades
Permanecem os problemas e as confusões
- Jamais um homem se perdeu nas multidões
O vão propósito jamais ergueu uma cidade!
Todos os meses há chatices coisas certas
Para um dinheiro visivelmente minguante;
Desculpem-me o facto comezinho e rastejante
Possa Camões perdoar estas musas e suas ofertas!
Mas é este um canto nobre e digno, e até ver
Também aqui a pressão do concreto queima a asa
De quem teve um grande sonho mas ficou em casa
- Não se perdeu, ainda não, o hábito de comer!
Mudam-se os tempos e às vezes as vontades mudam
Só o homem permanece – e as questões que o animam.
*
VER CHOVER
Como é bom, oh meus amigos, aqui, deste lado de dentro
Simplesmente ver chover! É uma paz na alma, riqueza
Assim regular e certinha, na vertical, beleza
Da água tudo abençoando, do Norte ao Sul e ao Centro!
Também nas Ilhas, diz-se. É pois bem geral este espectáculo
Com a natureza alguém por inteiro se deleitar!
No meu caso é o azado pretexto para me esquivar
A outras obrigações, louvado seja o líquido obstáculo!
E vejo chover, oh meus amigos, simplesmente chover
Pelas persianas abertas, a vidraça enfim lavada;
Vejo chover na mesma alegria com que a neve é recordada
__ Alma de camponês que no fundo jamais deixei de ter…
Chova pois, esta água é vida, não é de mais, vazias
Talvez as albufeiras, cheios e molhados estes dias.
ns
Há, na
verdade, muitos vírus que durante demasiado tempo têm prejudicado a
humanidade.
Um deles é o
vírus das burlas que, incrementadas por instituições “religiosas” e seus
áulicos, manipulam o ser humano no sentido de o controlarem e se servirem dele
como objecto do seu poder discricionário e totalitário, abusando sem ética da
sua boa-vontade e da sua inocência ante os conceitos mais profundos que
espiritualmente lhe são próprios.
Em 2010, o
especialista em hebraico e grego Doutor Mauro Biglino - depois de durante
algumas décadas ter traduzido para as Edições São Paulo diversos textos a partir
do original hebraico - deu-se conta de que algo não batia certo: as Bíblias que
temos em casa, mediante traduções orientadas
e organizadas de forma capciosa
pela teologia, muitas vezes através de interpolações falsas e posteriores,
estabeleciam um relato ora insensato ora tendencioso visando encenar sobre o
chamado Cânone uma historieta tendo como figura central uma personagem
alcandorada em deus do qual, a partir daí, surgiria como consequência uma religião – primeiro com o paulinismo e
depois com o constantinismo – que se constituiria como o sujeito e o âmago do
mundo ocidental e, seguidamente, tentou e ainda tenta dominar o universo,
espalhando-se (por vezes mediante violência) pelos outros continentes e
civilizações.
Mauro
Biglino, num acto vincadamente demopédico, correndo os riscos de ser caluniado,
difamado e até ameaçado na sua existência pelos próceres vaticanistas e
derivados, iniciou um trabalho de base que consiste apenas nisto: ler e dar a ler o conjunto de livros, denominados
Bíblia, na sua integridade e realidade conceptual, sem as fantasias que os
teólogos, a princípio com ingenuidade convenhamos, mas seguidamente com
impostura e autoritarismo astucioso, têm cinicamente proposto à Humanidade.
Claro que, a
partir daquela data, o Autor de diversos livros iluminantes (“A Bíblia não é um
livro sagrado”, “A Bíblia não fala de Deus”, “O falso Testamento”…), não mais
pôde publicar qualquer trabalho na Editora São Paolo. Mais: ainda que atacado
ferozmente pelos beatos e outros burlões fideístas - e dado que hoje já não é
viável a Inquisição oficial, pois vive-se em democracia e as suas constituições
não impõem o imperativo papal, antes defendem a liberdade de expressão e
opinião – Mauro Biglino tem efectuado conferências sucessivas em diferentes
partes do mundo, nas quais com respeito e tranquilidade – apanágio dos
espíritos éticos e superiores – tem dado nota das suas constatações e
descobertas. Não defendendo,
sublinhemo-lo, nenhuma tese – mas
“limitando-se” à leitura sem efabulações fantasistas e mentirosas do que
naquela originalmente está posto.
O que basta,
é o suficiente, para desvelar a
impostura secular.
O vídeo que aqui se deixa, com o
abraço a todas as sãs consciências dos confrades, conta com a tradução das
legendas da publicista brasileira Jussara Matana e tem estado patente no
Youtube, bem assim como diversas outras conferências e entrevistas do estudioso
italiano, que vos suscitamos a ver.
ns
A História de ontem elucida-nos sobre
factos de hoje: Jerónimo é um filho espiritual de Robespierre, Sócrates de Talleyrand
assim como Costa o é de Fouché. Com uma pequena diferença apenas: enquanto
Robespierre, Talleyrand e Fouché eram “filhos do século”, Jerónimo, Costa e
Sócrates são filhos do regime, deste regime luso.
Mais: nem Jerónimo, Sócrates ou Costa
poderiam surgir num outro país ocidental; são produto retintamente lusitano,
com a sua sede de totalitarismo, aumento de numerário e desejo infrene de
poder. São o sinal claro da ausência de democraticidade, de falência moral, são
o símbolo de uma nação onde a perfídia rasteira, o aventureirismo político e a
manha ocuparam o quotidiano do activismo e da governação.
José Bernardo da
Gama
Trovoada
Baixaram já as águas
das primeiras tempestades
de outono, refluíram para o vale e nos
deixaram
gravetos, terras desmoronadas, latas e
desperdícios
que não conseguimos identificar; o sol
dispersa
nuvens de chumbo e enxuga o que resta
das chuvas
repentinas; e, entre os destroços,
enquanto distraídas
crianças brincam sem que a paz lhe
perturbem,
jaz o cadáver de um verde translúcido
contra o cimento
de uma pequena rã, seis centímetros
longitudinais
há pouco ainda vivos, na perfeita
simetria da posição natatória,
pernas flectidas como as nossas se
flectem,
inteiro ainda e incorrupto o corpo
diminuto e espalmado,
na harmonia de quem pelo charco avança
naquele preciso
instante em que o impulso vai, de um
salto, levá-la mais à frente.
E o verde translúcido por entre dois ou
três matizes desiguais
ali permanece, naquele instante em que a
vida já não está
e a podridão não começou, e no entanto
se anuncia,
duas ou três formigas afadigadas
exploram já as cercanias
e os exércitos numerosos não tardarão a
surgir,
em hordas disciplinadas, na sua
misericordiosa tarefa de limpeza.
E nós, sobre o cimento, quando as
crianças, desatentas,
intensamente se concentram na sua
conversa a fingir,
tão verdadeira, nós inclinamo-nos, e uma
última
lembrança dedicamos àquele momento vivo
de tão verde,
tão igual ao nosso momento breve, e em
quem ninguém mais pensou.
ns
A Velhota das Estrelas –
Vendia-as, estrelas de farinha e
açúcar com ervas de cheiro a condimentar, em loja modesta de frutas e legumes
num recanto escuso duma rua improvável. É que se apanhava com o aroma das
laranjas, queijos, nabiças, de repente – pois a lojeca ficava numa curva onde
não se esperava que estivesse. Para mim, contudo, cheiros compensadores,
límpidos para gente que goste de bosques, quintas e hortejos. Hoje a loja
desapareceu, engolida pelos quotidianos desesperados. E, para minha maior mágoa
e ligeira fúria, nem sequer lhe deram sumiço mediante um bar finório ou uma
taberna manhosa - limitaram-se a fechar a grossa porta pintada de castanho. Já
entenderam o porquê da fúria: é que me ficou ali como um cadáver requentado, absolutamente
cegueta e mudo. E, clarete, nem valeria a pena rebentar a porta à patada para,
ao entrar-se, apanhar a adolescência evolada numa das prateleiras vazias.
Mulher de preto, a cara era como se diz um
pergaminho. Não faria êxito num moderno supermercado. Lenço na cabeça, as mãos
grosseiras de quem sabe dosear o doce nos caminhos da vida e nos bolos de
canela, de arroz e nas leves boleimas
ou, como em outros lugares se crismam, enxovalhadas.
Muito calada, um ar grave de pessoa que tivera ou passara mundo. Passara, não
passara – quem lho iria perguntar?
Desapareceu andava eu no fim das
secundárias, que nas primárias a filava manhã sim manhã sim, com os meus
tostões prontos para amendoins e as tais estrelitas,
bolo de canela que ainda hoje move a minha gula saudosa. Escrupulosa nos
trocos, duvido que alguma vez tivesse enganado algum petiz ou graúdo mesmo com
distracções pelo meio. Fiquei-lhe devendo muitos minutos de gozo mastigador. E
a não menor delícia daquele ar bondoso de aia exilada. E um resto impalpável,
um não-sei-quê de desventura ou íntima tristeza. Cá para mim aquilo não era
comércio, era puro destino fixado em dias ora melancólicos ora decididamente
alegres oferecidos de graça, nos dias ensolarados, aos passantes fixos e
descontínuos. E como deixar em escrita aquele silêncio interior, aquele perfume de realidade real que, agora, sei
que gozei nos meridianos da doçaria humilde mediante esses contactos matinais,
pensava eu que fortuitos e já perdidos no tempo?
Hoje já não há por aqui lojas daquelas. A
última que naquele estilo conheci foi uma taberna na rua do Mercado,
transformada ao presente em quitanda com luzes e balcão moderno. Curiosamente,
também gerida nesses outroras por uma velhota parecida no pormenor, de perna
arrastada e trajando de escuro.
Coincidências temporais, quero crer, numa
cidade com viúvas para dar e vender.
O Tio Pequenino - Homem do campo dos seus quarentas/cinquentas,
topava a sua figura pequena e escorreita em todas as Feiras (das cebolas, das
cerejas) e em tudo o que era festa ou romaria (do Bonfim, do Reguengo, da
Sant’Ana, da Ribeira de Nisa, do Senhor dos Aflitos) onde eu me deslocava
canonicamente acompanhando os pais e vizinhos com quem se fraternizava.
Correctamente vestido, muito direito e asseado, notava-se que tinha nos ombros
e nas mãos fortes e calejadas os sóis e os trabalhos da quinta ou da horta, do
romper do dia ao cair da noitinha. Era proverbial, a certa altura, na barraca
dos comes-e-bebes escorripichando com denodo e aprumo o seu tintol acompanhado de viandas delicadas como o costado, a
isca, o peixe frito…
Nunca com ele troquei palavra ou aceno que
fôssem. Nunca soube a sua graça ou a quem pertenceria e em que courelas
granjearia o seu pão. Até um dia, mas já lá vamos. Para mim era apenas, com
toda a velada simpatia interior, o “tio Pequenino” e bastava-me esta alcunha
p’ra meus internos usos. Muito cordial e respeitador, tratava com cortesia,
numa voz suave e campesina, os convivas avulsos. E a sua cara escanhoada e seca
abria-se às vezes num leve sorriso de singeleza. A partir de certa altura,
enquanto eu crescia e passava de infante a adolescente e de adolescente a
adulto, como que deixou de fazer anos. Imutável, sentia-o deslocar-se através
dos tempos como uma presença pacífica e serena. E que alegria eu senti, depois
de ter voltado da loucura da guerra com a inocência feita em fanicos, quando um
dia na Festa dos Aventais topei encostado ao balcão de tábua duma barraca
bendita o meu “tio Pequenino”, que com grisalha convicção atirava a terra uma
sandes de lombo de lindo recorte!
Se a festa era na cidade, digamos a do Senhor
dos Passos, “tio Pequenino” deslocava-se ao Largo da Sé a mercar o seu torrão de Alicante e a sua boa ervilhana
na barraquita posta rés-vés ao edifício dos Paços do Conselho. Sempre composto,
sempre urbano e solitário nas suas andanças todavia comparticipativas. Também o
via às vezes no mercado municipal (um dos meus locais sagrados) falando com
este-aquele hortelão seu companheiro de labutas – mirando este figo, relanceando
aquela meloa, apreciando esta couve…Eu era visto e achado, principalmente nos
sábados, a deambular circulando o edifício da Praça. Coisa que ainda hoje, que
já vivo por bandas vitais muito distantes, é um dos meus grandes gostos. E –
cabeçorra distraída - também era meu
colega na ida à massa-frita, ao santo brinhol
acompanhado pelas canecas de café de cafeteira, fracote mas com um sabor
que nunca mais, minha mágoa, terei na vida…
Ora um dia, passeando de carro (emprestado)
com a família, teria eu uns dezanove anos, o meu primo que guiava fez-nos ir
ter a um lugar que não conhecíamos bem, em busca de um outro parente de raspão,
desses em sétimo grau mas que são indispensáveis. O meu pai desceu do automóvel
e abeirou-se de um murozito de pedra em cujo lado de lá um hortelãozito, tapado
com um velho chapeirão, mourejava ali à beira e perguntou-lhe sobre a morada do
tal parente. O trabucador aprochegou-se, descobriu-se…e era o “tio Pequenino”,
que em frases curtas e apropriadas iluminou a informação. Soube então que era dali que ele partia para as suas
incursões festivas! E sem me dirigir palavra, num diálogo mudo, percebi nos
seus olhos plácidos que também me reconhecera. Foi, durante um segundo, uma
espécie de cumplicidade. Senti que ele pensara: “Olha…este é o tal…”. Que eu, para ele, devia ser o que ele era para
mim – presença sentida aqui e acolá de seres que passam quase ao mesmo tempo
pela Terra irmanados num destino comum de jamais trocarem palavra. Coisas da
sociedade e dos acasos, diria eu.
Mais tarde – já ele começava a
transformar-se numa presença esfumada – desapareceu-me do horizonte. Soube
depois, ao folhear um periódico com a data já requentada, que morrera. A foto
lá estava, era o “tio Pequenino” dos meus tempos de criança transfigurado em
eternidade pela necrologia noticiosa. Ficou-me um nó na garganta, que a morte
tem destes desembaraços: traz de súbito à nossa comoção uma figura de outrora,
como se o olhar se irmanasse com a saudade dos tempos idos. Como, afinal,
cumpre a quem vive, mesmo que virtualmente, como retrato perpétuo e
inesquecível.
ns
in “Retratos
de fantasmas nítidos”
ns
Portugal
país de Direito…
A magistratura portuguesa está desde há
décadas minada por estes indivíduos que se associam ao poder do PS para
ascender em carreiras hierárquicas ou de concursos "à medida",
prebendas avulsas ou carreiras de STJ e outros lugares apetecidos.
Basta pegar num qualquer nome que tenha sido
escolhido para determinadas funções de Estado (PGR, dirigentes de órgãos
Reguladores, SIS, SIRP, Secretarias de Estado, ministérios variados com
direcções-gerais, actuais e passadas) e o padrão ajusta-se: nepotismo e
corrupção políticas de mãos dadas nas escolhas dos nomes certos e convenientes,
mesmo sem tal efeito perverso porque o poder político escolhe quem mais lhe
agrada e por isso procura saber se a pessoa escolhida será agradável, além de
útil. A corrupção é essa: escolher em função de interesses políticos.
Estão habituados a escolher segundo tais critérios chefes de gabinete ou
secretários e aplicam a mesma receita em tais casos por pura perversão e
hábito. Apuram o olfacto político para descobrir se o indigitado é dos
"nossos" ou dos "deles" e escolhem com a naturalidade de
sempre, procurando esconder o gato que por vezes se põe a miar como
desalmado.
Como se faz isto? Simples: através do
sistema de contactos cada vez mais aprimorado. Quem nomeia escolhe por
indicação ou preferência própria, baseando-se numa legitimidade formal. Sendo o
país pequeno e sendo os nomes disponíveis em número restrito, apenas se torna
necessário salvar as aparências solicitando pareceres convenientes a quem de
direito escolhido para tal, ou procedimentos formais que apenas se destinam a
garantir o sucesso na escolha sem suspeitas de maior. (…)”- José P.
Loja
Jorge Gaillard Nogueira
Partimos sempre de
fotografias
Mesmo que não haja
películas
Ou os negativos para
revelar.
Às
vezes é uma memória feliz
Encontro
no balcão dum Banco
Almoço
no refeitório das Caixas.
Neste caso seria Jardim
da Estrela
Tudo nos quatro a preto e
banco
E uma das meninas está de
vestido.
Terá
sido em 1983 e está tudo igual
No
Jardim, nas ruas e nas sombras
Que
envolvem as legendas do filme.
Será isso afinal: somos
só memória
Porque o nosso passado
não passou
E está à porta do Jardim
da Estrela.
José do
Carmo Francisco
O
dia que se despede na linha do horizonte faz lembrar de imediato a memória de
um poema de Carlos de Oliveira: «A noite é a nossa dádiva de Sol aos que vivem
do outro lado da Terra». Podem chamar-lhe «crepúsculo» mas quem, como eu,
nasceu em Santa Catarina que fica a oito quilómetros do Oceano Atlântico, ouviu
as ondas em rebentação ao largo de São Martinho do Porto e, em certas tardes de
vento, o comboio ou a automotora da Linha do Oeste cujo apito anunciava quase
sempre chuva no outro dia, só pode chamar a esta como que oração sem palavras,
um «pôr do Sol». (Se levasse hífen era uma refeição mas isso é outra história)
Não
se vê mas está presente na foto um perfil de mulher como se fosse uma vírgula
feliz no discurso do Tempo, uma pausa na voz da Terra que canta o louvor da
abundância e da prosperidade onde antes havia apenas escassez e desolação. Na
alegria convocada pela mulher de perfil está uma abundante colheita de ternura
a distribuir por igual pelas crianças que ainda acreditam em unicórnios e
dinossauros. As crianças, essas crianças, sabem no seu tempo veloz de brincar
que tudo tem valor mas nada tem preço no seu mundo de todos os dias – nem os
beijos nem as lágrimas. Como se fosse no palco de um teatro, a cortina da noite
desce aos poucos por sobre a massa líquida da Lagoa em repouso. Lagoa ou Mar,
tanto faz para a organização do texto. O essencial é a sugestão da mulher cujo
nome tem o peso da Terra e o mistério da Harmonia. O seu rosto contém a mistura
feliz entre o ruído e o silêncio, a ruptura e a placidez, a luz e a sombra, a
força e a fragilidade do seu olhar e do meu discurso simples mas ambicioso à
procura de juntar de novo vários mundos separados pelo Tempo.
JCF
Agora que em maioria os “órgãos de
comunicação” (jornais, rádio, TV) não são mais que simples e despudorados veículos
da propaganda do regime, frequentemente descarada com activistas políticos
travestidos de jornalistas, há que manter e mesmo incrementar uma lucidez digna
e filha da capacidade de nos negarmos a ser indivíduos sem carácter, inteiramente
manipuláveis.
Manuel Carreira Viana
PARA UMA JOVEM NEGRA DE CALCANHAR RÓSEO
No céu primitivo erguem-se
imaculados os cantos dos pássaros
e o fresco cheiro da erva ágil com
eles se ergue, Abril.
Ouço o respirar prof
undo da madrugada movendo as nuvens
brancas dos cortinados
e escuto a canção do sol nos
taipais das janelas
melodiosas.
Sinto como que um hálito ou uma
recordação de Naett
na minha nuca apaixonada e nua
E o meu sangue cúmplice, a despeito
de mim, chocalha-me
nas veias.
És tu, minha amiga – ô! Escuta os
suspiros escuta
os quentes suspiros neste Abril dum
continente novo
Oh escuta, enquanto deslizam, no
gelado azul, as asas
das andorinhas migratórias
e não te esqueça ouvir o murmúrio
negro e branco das aves
de arribação
horizontais no extremo das suas
velas desdobradas.
Escuta a mensagem da Primavera duma
outra idade, dum outro
mundo
Escuta a mensagem da África
longínqua e velha e a canção
do teu sangue
Pois eu estou ouvindo a seiva de
Abril que nas tuas veias
cantando me desafia.
in “Cântico da Primavera”
João Garção, Sem título
Quando o
cortejo de jornalistas finalmente abandonou a Sala de Imprensa, saiu por sua
vez e dirigiu-se ao seu gabinete. Desejava beber um belo whisky, em jeito de
reconforto pelo esforço que fizera para aparecer diante das câmaras de
televisão com um ar interessado e confiante. Com o copo na mão e o nó da
gravata desfeito, acercou-se da janela. Lá fora, os cacilheiros faziam a
ligação com a outra margem e as águas estavam acinzentadas e lúgubres. Uma
chuva miudinha perseguia os transeuntes apressados. Assoou-se. Enquanto
dobrava o lenço branco, meticulosamente como era seu hábito, espreitou pelo
canto do olho para a aglomeração de gente que se tinha formado em redor do
velhote que acabara de ser atropelado. Um chiar de pneus e um barulho de
motor indicavam que o dono do veículo se tinha posto em fuga. Conseguiu ainda
ver o pequeno automóvel vermelho a saltitar pelo meio dos outros carros numa
fuga desesperada. Pigarreou, pousou o copo e arranjou-se para ir para casa. À saída, não
deu as boas-noites ao porteiro que, deferente (ou deveria dizer-se antes
subserviente?...) lhe abriu a enorme porta envidraçada com o habitual
salamaleque ridículo e com o tradicional sorriso forçado na face
impecavelmente barbeada. Cá fora, puxou
para cima a gola do sobretudo. Tinha a garganta frágil e sempre que se
resfriava a sua voz, na rádio, soava-lhe como a daqueles bêbedos que, das
mesas do fundo das tabernas, subitamente acordam e, com os olhos semicerrados
e a voz insegura e rouca, pedem outra garrafa. Mandou embora
o motorista e o guarda-costas que nos períodos de maior contestação social
habitualmente o acompanhava. Queria ser visto a caminhar sozinho pelas ruas
como qualquer outro cidadão pois de manhã, no Hemiciclo, fora acusado pela
oposição de fazer as compras de Natal rodeado de dois espadaúdos
guarda-costas. Ele, que os seus colegas europeus sempre elogiavam por
continuar a ir aos mesmos centros comerciais que já frequentava antes de
ocupar aquele importante cargo!... Sabia, obviamente, que acusações daquele
tipo eram indispensáveis no jogo político. No entanto, porque o tinham como
alvo, ao fim destes anos todos de vida política ainda as achava
desagradáveis. Caminhou sob
as arcadas para se resguardar da chuva tanto quanto possível. Entrou no
"Martinho" para se mostrar e pediu uma 'Água das Pedras' com uma
polidez por ventura excessiva, mas queria agradar. Um cauteleiro aproximou-se
e tentou vender-lhe jogo. Tinha uma pala no olho direito e uma prótese abaixo
do joelho esquerdo substituía o resto da perna. Parecia o produto duma
mistura de Camões com o pirata da "Ilha do Tesouro", pensou. Só lhe
faltava o papagaio... O homem começou subitamente a tossir com tal veemência
que parecia decidido a expelir os pulmões a qualquer preço. Afastou-se com um
salto, horrorizado e receoso de contrair alguma doença. Raio do Homem! Ir
tossir para um sítio daqueles! Não podia, muito simplesmente, ser educado e
ir libertar os seus micróbios para outro lado? Engoliu o
resto da água à pressa e saiu. Ali perto, numa banca de jornais, uma mulher
gorda com varizes do tamanho de minhocas bem alimentadas afastou um cão vadio
com um pontapé bem colocado. O animal acabara de defecar mesmo entre as
pilhas dos jornais OTradicional e o A Luta. "Eis um bicho
indeciso e com convicções políticas pouco profundas...", disse para si.
Sorriu da piada que acabara de inventar e lamentou que o seu secretário não
estivesse ali com ele para que pudesse coroar a graça com uma gargalhada
sonora e bajuladora. Enquanto andava, observou ainda o cão que, mais longe da
banca de jornais, começou a raspar no chão, satisfazendo o instinto. Foi
reflectindo sobre a atitude do animal: este bicho tinha sobreposto o seu
instinto à eficácia do seu gesto. Determinara a sua acção, portanto, mais por
influências hereditárias do que por uma questão de utilidade. O gesto inútil
de raspar no chão longe dos excrementos sobrepusera-se porque a voz da raça
falara mais alto do que a voz da razão! Sentiu uma forte afinidade
sentimental para com o cão. Na verdade, também ele, como político, era
determinado a tomar certas medidas inúteis e a encetar acções sem qualquer
eficácia para a melhoria do corpo social da Nação, as quais, no entanto, não
podiam deixar de ser tomadas já que, em política, o mais importante é o que
parece e não o que é! Estes
raciocínios foram interrompidos quando sentiu o chão fugir-lhe sob os pés.
Deu consigo estatelado no passeio, sem saber como. Virou-se e viu um cego
ajoelhado a tactear o empedrado, à procura de algo. Percebeu então que tinha
tropeçado na bengala do homem. Raio do cego! Por sua culpa, estava agora todo
sujo e molhado. E o seu belo guarda-chuva tinha um par de varetas partidas! Levantou-se e
estugou o passo em direcção às arcadas, esperançado que o cão ainda estivesse
no mesmo sítio. Entrou num café e comprou três sanduíches de presunto, para
com elas tentar atrair o animal. Um miúdo que vendia pensos olhou com
humildade para a comida que o empregado lhe embrulhava. Saiu
apressadamente, com o garoto atrás de si. Rejubilou quando viu o cão deitado
sobre pedaços de papelão. Muito lentamente, tentou chegar-se ao pé dele, mas
o bicho pressentiu-o e, abrindo os olhos, meteu o rabo entre as pernas e
afastou-se, assustado. Desembrulhou rapidamente as sanduíches e deitou uma
para perto do cão. Este, receoso, aproximou-se da comida mas não lhe tocou.
Deitou uma segunda, mas o resultado foi idêntico. E por fim a terceira, mas o
cão continuava assustado, com um olho nele e outro na comida. Aborrecido,
aproximou-se do animal, que novamente se afastou. Sem saber o que fazer,
olhou em redor e viu o miúdo dos pensos. "Compro-te meia dúzia se me
trouxeres aquele cão", disse-lhe, em desespero de causa. O rapaz
aproximou-se do cão e começou a falar com ele. Não conseguiu ouvir o que lhe
dizia mas o cão aproximou-se do miúdo e deixou-se acariciar ternamente. Por
fim, pegou no bicho ao colo e, a muito custo, levou-lho. Ficou radiante!
Fez-lhe festas e baptizou-o logo ali: Helmut, pois o cão era grande e gordo.
Tirou um euro da carteira para dar ao rapaz, que estava de cócoras a limpar
avidamente as sanduíches e a embrulhá-las com as páginas menos molhadas de
jornais deitados fora. Um problema se
lhe deparava agora: como faria para levar o cão para casa? Arrependeu-se de
ter mandado embora o motorista, pois agora já não lhe apetecia ser visto a
passear sozinho pelas ruas. Maldita ideia, esta! Resolveu
chamar um táxi, mas o condutor não o deixou entrar com o cão. Estúpido homem,
pensou! Ele saberia, por acaso, com quem estava a falar? Chamou um outro. E
depois outro e outro e por fim outro, mas nenhum acedeu a transportá-lo com o
cão. Desistiu de ir de táxi e esforçou-se por arranjar um pedaço de cordel
que depois atou ao pescoço do animal. Seguiu com este pelas ruas iluminadas
da Baixa. Como a noite já tinha caído há muito, tinhas esperanças de poder
passar despercebido. Apesar de
assustado, o cão trotava a seu lado. Um carro de polícia fez então soar a sua
estridente sirena. Para azar seu, travou mesmo ao pé de si, sobre um dos
inumeráveis buracos cheios de água, imobilizando-se mais à frente. Tentou
limpar-se rapidamente com o lenço mas era inútil: estava já completamente
encharcado. Do carro saíram quatro agentes que entraram num café e que pouco
depois saíram com um negro algemado a quem empurravam com violência. Este
debatia-se e gritava: "Eu só quis que me servissem! Tenho esse
direito!" mas ninguém lhe dava ouvidos. À porta do café, alguns
frequentadores invectivavam o negro e mandavam-no para a sua terra. A maioria
limitava-se a olhar, despreocupada. Aquela
situação era nova para si. Aproximou-se para ver melhor. "Para onde o
levam?", perguntou, cheio de curiosidade, ao homem que se achava ao seu
lado. Admirados com aquela pergunta, os polícias estacaram e fitaram-no.
"O que é que você disse?", perguntou um, aproximando-se. As pessoas
em seu redor afastaram-se lentamente, com as mãos nos bolsos. "Perguntei
para onde é que o levam", repetiu com voz firme. O polícia, perplexo,
observou-o demoradamente. Estava encharcado e com o cabelo em desalinho. O
sobretudo, de excelente qualidade, estava enlameado no peito. A camisa Triple
Marfel estava manchada de água suja e as calças de fazenda inglesa tinham um
enorme rasgão em ambos os joelhos. Na mão esquerda trazia o guarda-chuva com
algumas varetas partidas e na direita segurava a sua bela pasta preta e a
ponta do cordel desfiado em cuja outra extremidade estava o cão,
completamente imundo. O agente olhou-o nos olhos, hesitante, como se o
reconhecesse. Por fim virou-se para os colegas e soltou uma sonora
gargalhada: "Olhem-me para este 'pássaro'! O que nos havia agora de sair
em rifa!". E mirando-o novamente, após outra breve hesitação, ameaçou:
"Desapareça, homem, você não arranje problemas se não quer ter notícias
nossas!... Veja lá o que é que diz!...". Ficou atónito.
Nunca ninguém lhe tinha falado naquele tom de voz! Preparava-se para
responder quando em seu redor dois homens se aproximaram e lhe pegaram por um
braço, dizendo-lhe um deles com um sorriso apaziguador e de forma a que o
polícia ouvisse: "Tenha calma, amigo, tenha calma. Os homens estão a
fazer o serviço deles, não é? Ouça, venha ali dentro beber um copo e fica
tudo em bem, certo?... Está tudo bem, sr. guarda, este amigo vai ali connosco
beber um copo...ele está só cansado...". Os polícias meteram-se no
carro, olhando-o de soslaio. Quando partiram, o outro homem deu-lhe uma
palmada nas costas: "Vá-se lá embora, homem, não me
agradeça: isto temos que ser uns para os outros, não é verdade?
Haja é saúde, amigo, haja é saúde!...". Baixou os
olhos e afastou-se sem dizer uma palavra. Ia possuído por uma fúria mal
contida. Decidiu, primeiro, que no dia seguinte faria os telefonemas
necessários para tramar o polícia. Depois, mais calmo, pensou melhor e chegou
à conclusão que a culpa tinha sido apenas sua. Na verdade, porque demónios
resolvera fazer aquela pergunta? Estava verdadeiramente preocupado pela sorte
do negro? Claro que não, pois ele que não fosse parvo e não se metesse em
sarilhos! Se fosse um cidadão respeitador e atinado a polícia não o teria
levado preso, não é verdade? Não, a culpa fora sua, só sua, tinha que o
reconhecer! Além do mais, o seu aspecto estava muito longe de reproduzir a
dignidade inerente ao cargo que ocupava. Devia era dar-se por feliz por
ninguém o ter reconhecido naquela figura! Reconfortado
com estas reflexões e satisfeito consigo próprio por este humilde acto de
contrição, pensou numa forma de chegar rapidamente a casa. Mais do que nunca,
estava agora furioso consigo próprio pela ideia absurda de andar sozinho
pelas ruas, a pé e sem qualquer protecção. Que estupidez! Só desejava
ardentemente não ser visto nem achado. Passar despercebido e chegar depressa
a casa, era agora a palavra de ordem. Decidiu
apanhar um autocarro pois com aquelas filas e com a massa de gente a
precipitar-se para a porta talvez ninguém reparasse no cão. Como não sabia o
número do autocarro que passava ao pé de sua casa, resolveu pôr o seu ar mais
generoso e confiante, aquele que sempre punha quando algum jornalista lhe
colocava alguma pergunta incómoda, e dirigiu-se a duas velhotas. Colocou-se
então no fim da fila e ao fim de três quartos de hora conseguiu finalmente
entrar num autocarro. O cão tinha ajudado e não ladrara, pelo que o condutor
não dera pela sua presença. Não tinha
passe, nem senhas, mas uma estudante picara um módulo por ele, cheia de pena
do seu ar quase andrajoso. Este gesto, em vez de o sensibilizar, teve o
condão de o incomodar profundamente. Não gostava de se sentir em dívida com
ninguém e o facto de ser uma estudante ainda o aborreceu mais. Não gostava
deles, sempre prontos a andarem em algazarras, desafiando as instituições e o
normal evoluir da sociedade. Mas viu o acontecimento pelo prisma da
utilidade: a alternativa era ir a pé, pelo que teve que considerar que se
tratara de um incómodo bem pequeno em relação ao benefício. Sentou-se
junto de um reformado, que lhe ofereceu batatas fritas do pacote que acabara
de abrir. Recusou delicadamente mas com firmeza. Não queria familiaridades
nem confianças, só queria poder ir descansado para casa e nada mais. À sua
frente, no meio da confusão de entradas e saídas de passageiros, um sujeito
bem vestido abriu a mala de mão que uma senhora carregada de sacos tinha a
tiracolo e surripiou-lhe a carteira com uma destreza que o deixou
boquiaberto. Ao colocar a carteira entre um jornal dobrado ao meio, o
indivíduo olhou-o, certo de ter sido observado. Mas ele voltou rapidamente a
cara para a janela, fingindo-se muito interessado no andamento das obras que
tinham lugar por todo o lado. Quando lá fora
reconheceu ruas familiares, resolveu descer. Estava ainda um pouco longe de
casa mas não sabia as voltas que o autocarro ainda ia dar e ir a pé era agora
mais seguro. O
contentamento do filho ao ver o cão contrabalançou o espanto e a má-cara da
mulher, receosa que a vizinhança soubesse que tinham em sua casa um cão sem
"pedigree". E depois do
banho e do jantar sentiu uma enorme sonolência. As orações da noite, que
desde criança nunca se esquecia de proferir ajoelhado junto da bela cama de
cerejeira, souberam-lhe bem melhor pois sentiu que nesse estranho dia tinha
cumprido de forma irrepreensível os seus deveres ao subtrair à violência da
rua um animal da Criação. Feliz e satisfeito consigo próprio, meteu-se então
entre os lençóis com um suspiro prolongado que traduzia o quão aconchegado se
sentia no conforto do lar. Antes de adormecer, esticou o braço na direcção do
telefone da banca de cabeceira e retirou o auscultador do descanso. Devido ao
cargo que ocupava, lidava com pessoas que muitas vezes o incomodavam,
telefonando-lhe às horas mais impróprias numa atitude de indiferença para com
o merecido descanso dos outros, algo que ele, sempre que podia, não deixava
de condenar com a veemência que se impunha.
JG
in “Contos do centro do meio” |
A vida não é um problema a ser resolvido, mas uma realidade a ser experimentada. ...