segunda-feira, 17 de abril de 2023

Nicolau Saião, Mais uma lembrança… - De “Retratos de fantasmas nítidos”

 


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A Rosa de Todo o Ano


Não se chamava Rosa, ‘tá de ver, mas eu chamava-lhe assim. Criada de todo o serviço duma família de teres, ia à praça, varria as escadas do prédio de seus patrões, lavava janelas e batia tapetes, lá para dentro certamente se dava a misteriosas tarefas de cosimentos e cozinhados, habituada a alombar, percebia-se, com tudo o que requisitasse suor. Quando eu morava na parte velha da cidade, nos meus tempos de gaiato, encontrava-a frequentemente numa loja de tecidos a mercar carrinhos de linha e a buscar a caixa das amostras de botões, aparelho misterioso e encantado com encaixes sobrepostos como jardins suspensos que também eu transportava para minha tia, que cosia para fora como franco-atiradora de linhas e agulhas.

   Sempre jovial, dava-se bem com vizinhos e lojistas. Quarentona, ainda denotava que fora linda cachopa. Mas, retirada das lides do coração, ficava-se perceptivelmente pela existência de mourejadoura a todo o pano. Constava que tinha um filho lá para os longes de uma mirífica Lisboa, marçano ou manga-de-alpaca de pequeno porte em lugares mais ou menos lendários. Portalegre naquela altura ficava longíssimo da capital, daí o desapego aparente. Um dia, ia eu nos meus catorzes/quinzes, perguntou-me onde comprara uma capelinha de macela que por esses dias de S.João eu levava nas mãos (todos os anos as compro, rendido às flores secas da tradição).”Foi ali na do senhor Xis, senhora Rosa…”, disse-lhe eu deixando escapar a boca para a crisma que lhe dera. “Eu não me chamo Rosa, menino! Sou …” e lá me disse o nome que agora omito a vosselências. E daí em diante, sempre que nos cruzávamos, cumprimentávamo-nos como velhos conhecidos. Sabia lá ela quanto eu apreciava a sua lhaneza natural, a sua inocente bondade de burrinha de trabalho e que eu somente deixava transparecer na minha saudação respeitosa!

   Como outros de outros mesteres, perdi-lhe depois o rasto, ao mudar de casa para lugares mais centrais. Ainda estará viva? Se assim for deve decerto trabalhar para os netos, nessas paragens lisboetas onde talvez se tenha juntado ao filho por reforma bem suada. Deverá, concerteza, continuar anciã de boa catadura: os pequenos lojistas e os vizinhos devem apreciá-la, num relacionamento fácil e contente com este saintéxupery feminino e anónimo cruzando a terra dos homens do quotidiano esvoaçante.


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