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A Rosa de Todo o Ano
Não se chamava Rosa, ‘tá de ver, mas
eu chamava-lhe assim. Criada de todo o serviço duma família de teres, ia à
praça, varria as escadas do prédio de seus patrões, lavava janelas e batia
tapetes, lá para dentro certamente se dava a misteriosas tarefas de cosimentos
e cozinhados, habituada a alombar, percebia-se, com tudo o que requisitasse
suor. Quando eu morava na parte velha da cidade, nos meus tempos de gaiato,
encontrava-a frequentemente numa loja de tecidos a mercar carrinhos de linha e
a buscar a caixa das amostras de botões, aparelho misterioso e encantado com
encaixes sobrepostos como jardins suspensos que também eu transportava para
minha tia, que cosia para fora como franco-atiradora de linhas e agulhas.
Sempre jovial, dava-se bem com vizinhos e lojistas. Quarentona, ainda
denotava que fora linda cachopa. Mas, retirada das lides do coração, ficava-se
perceptivelmente pela existência de mourejadoura a todo o pano. Constava que
tinha um filho lá para os longes de uma mirífica Lisboa, marçano ou manga-de-alpaca
de pequeno porte em lugares mais ou menos lendários. Portalegre naquela altura
ficava longíssimo da capital, daí o desapego aparente. Um dia, ia eu nos meus
catorzes/quinzes, perguntou-me onde comprara uma capelinha de macela que por
esses dias de S.João eu levava nas mãos (todos os anos as compro, rendido às
flores secas da tradição).”Foi ali na do
senhor Xis, senhora Rosa…”, disse-lhe eu deixando escapar a boca para a
crisma que lhe dera. “Eu não me chamo
Rosa, menino! Sou …” e lá me disse o nome que agora omito a vosselências. E
daí em diante, sempre que nos cruzávamos, cumprimentávamo-nos como velhos
conhecidos. Sabia lá ela quanto eu apreciava a sua lhaneza natural, a sua
inocente bondade de burrinha de trabalho e que eu somente deixava transparecer
na minha saudação respeitosa!
Como outros de outros mesteres, perdi-lhe depois o rasto, ao mudar de
casa para lugares mais centrais. Ainda estará viva? Se assim for deve decerto
trabalhar para os netos, nessas paragens lisboetas onde talvez se tenha juntado
ao filho por reforma bem suada. Deverá, concerteza, continuar anciã de boa
catadura: os pequenos lojistas e os vizinhos devem apreciá-la, num
relacionamento fácil e contente com este saintéxupery feminino e anónimo
cruzando a terra dos homens do quotidiano esvoaçante.
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