segunda-feira, 28 de junho de 2021

Para um minuto de meditação - 105

 


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Encontradas centenas de novas sepulturas

em internato indígena no Canadá


A comunidade autóctone Cowessess anunciou que tinha feito "a descoberta horrível e chocante de centenas de sepulturas não identificadas", no local da antiga escola residencial de Marieval, Canadá.

   Centenas de novas sepulturas foram descobertas com a ajuda de um radar de penetração no solo perto de um antigo internato para crianças autóctones no Canadá, gerido pela Igreja Católica, anunciaram na quarta-feira órgãos de comunicação locais.

   Em comunicado, citado pelos media canadianos, a comunidade autóctone Cowessess anunciou que tinha feito “a descoberta horrível e chocante de centenas de sepulturas não identificadas”, no local da antiga escola residencial de Marieval, afirmando que se trata do “maior número até à data no Canadá”.

   As buscas em torno da antiga escola de Marieval, na província de Saskatchewan, começaram depois de terem sido encontrados os restos mortais de 215 crianças junto a uma escola residencial indígena no oeste do Canadá, no final de maio, o que provocou uma onda de choque no país.

   Os corpos das crianças, vítimas de abusos, algumas com apenas 3 anos, foram encontrados enterrados na escola residencial católica para indígenas de Kamloops, outrora a maior do país, na província canadiana da Colúmbia Britânica.

(Sem comentários)


Dois poemas de Alfredo Pérez Alencart

 




GUERREIRO

 

Tu pareces

um leão ferido para a vida

numa região

de pássaros zangados:

 

sangue na infância

e agora punhais

de inveja.

 

Entendo.

Tu e eu

não é que sejamos parecidos;

é que somos iguais,

 

crentes esperançosos

em que não ressuscite

a traição.

 

Por aquela luta

esperamos pelo sonho.

 

IMIGRAÇÃO

 

Não importa

que tu venhas ou vás:

 

sempre te seguirá

um pedaço de chão

 

ou um olhar arisco

declarando-te

estranho.

 

Serão dias cinzentos

que não serás capaz de tirar

de cima de ti.

 

E irás declarar-te

devedor,

embora diariamente

 

ganhes

a partida.


Paco Ibañez, Consejos para un galán

 



quinta-feira, 24 de junho de 2021

Para um minuto de meditação - 104

 

   “O país viveu e vive a deliquescência da Presidência da República. O abandalhamento frívolo das instituições é um dos legados de Marcelo senão o seu principal legado. Marcelo, como todos os narcisos mais a mais gostarem de se divertir como é o seu caso, sobrevalorizou a sua capacidade táctica. Agora acabou isolado e a discutir poderes com o primeiro-ministro. Pelo meio sopra a quem o quer ouvir que não há alternativa ao PS. Claro que não existe alternativa, mas não existe em boa parte porque foi isso mesmo que ele Marcelo desejou e para o qual usou toda a sua influência mal chegou a Belém.

Helena Matos


  Na nossa Nação houve presidentes que ficaram na História ou como homens de acção, ou indecisos, ou literatos, ou palavrosos, ou partidaristas. Marcelo, por sua atitude continuada, ficará como um caso extremo de procura incessante de notoriedade e de aplauso popular a todo o custo. Dito por outras palavras mais realistas, um caso notório de caricatura populista.

  Em paralelo, Costa ficará como o maior manobrador descarado de sempre da governança nacional.

Jorge Gaillard Nogueira


  Comparado com Costa o Sócrates é um menino de coro. Veja-se a forma maldosa como Costa  tem tratado até os próprios dirigentes do PC, que afinal o têm ajudado a manter-se no poleiro.

Luís Bermudes


Um poema de Wislawa Szymborska

 



A CASA DE UM GRANDE HOMEM

 

Foi escrito no mármore em letras douradas:

aqui um grande homem viveu, trabalhou e morreu.

Ele colocou pessoalmente o cascalho para esses caminhos.

Este banco - não lhe toquem – esculpiu-o ele sozinho

e de pedra o fez.

E - cuidado, três etapas - vamos entrar.

Na hora certa chegou ele ao mundo.

Tudo o que tinha que passar, passou nesta casa.

Não num prédio alto,

não em metros quadrados, mobilado, mas vazio,

entre vizinhos desconhecidos,

nalgum décimo quinto andar,

onde é difícil arrastar excursões escolares.

Nesta sala ponderou,

Neste quarto dormia,

e aqui recebia convidados.

Retratos, uma poltrona, uma escrivaninha, um cachimbo, um globo, uma flauta,

um tapete surrado, um solário.

A partir daqui, trocou acenos com o seu alfaiate

e o seu sapateiro

que para ele trabalharam sob medida.

Isso não é o mesmo que fotografias em caixas,

canetas secas num copo de plástico

um guarda-roupa e um armário comprados numa loja,

uma janela, de onde se podem ver melhor as nuvens

do que as pessoas.

Feliz? Infeliz?

Isso aqui não é relevante.

Ele confiava ainda nas suas cartas,

sem pensar que seriam abertas nos seus

trajectos.

Ele mantinha ainda um diário detalhado e honesto,

sem receio de o perder durante uma

busca.

A passagem de um cometa preocupava-o mais.

A destruição do mundo estava apenas nas mãos

de Deus.

Ele conseguiu ainda não morrer no hospital,

atrás de uma tela branca, sabe-se lá qual.

Ainda havia alguém com ele que se lembrava

das suas palavras murmuradas.

Ele participou da vida

como se fosse reutilizável:

enviou os seus livros para que fossem encadernados;

pois não iria riscar os sobrenomes dos mortos

do seu livro de endereços.

E as árvores que plantou no jardim por detrás

da casa

cresceram para ele como a Juglans Regia

e a Quercus Rubra e a Ulmus e a Larix

e a Fraxinus Excelsior.


(Tradução de nicolau saião)


Wislawa Szymborska (Kórnik, 1923 - Cracóvia, 2012) - Escritora polaca galardoada com o Prémio Nobel em 1996. Poetisa, crítica literária e tradutora, viveu em Cracóvia, onde se formou em Filologia Polaca e Sociologia pela Universidade Jaguellonica.


Um texto de Jacques Tombelle

 

Sobre um quadro de Nicolau Saião, “A noite iluminada”


Nicolau Saião, A noite iluminada


    Um cartão para azulejo, depois concretizado num painel de consideráveis dimensões (180cm x 120cm) que hoje faz parte da colecção pessoal do A. patente na sua residência de Arronches (parede do lado direito do corredor da Casa da Muralha), dá-nos algumas pistas que nos permitem debruçar-nos proveitosamente sobre uma característica pouco estudada do universo conceptual subjacente à pintura deste autor.

    As conversas que com ele mantive ao longo dos tempos têm-me permitido confirmar esta análise, que aliás vai ao encontro de outras reflexões semelhantes já efectuadas a outro propósito. “A noite iluminada” é pois uma pintura onde existe um conceito, mesmo uma proposta existencial por detrás de uma evidência de ordem plástica.

    A começar pelo título, há nos elementos do quadro (concepção, cor e desenho) sinais que não enganam se os encararmos devidamente, utilizando um ponto de vista que leve em conta a simbologia filosófica tradicional.

    A execução da obra baseia-se na técnica-mista do lápis de cor, do guache e da caneta de feltro, sobressaindo três cores: o amarelo, o negro e o rosa forte, com um enquadramento em castanho de terra-siena e verde esmeralda. Fazendo pendent estão algumas variações de verde, azul plúmbeo e o branco em marcações breves.

    A estrutura do quadro é simples, quase linear. Verificam-se na vertical três planos sucessivos: o de baixo, com um solo juncado de flores; o do meio, preenchido por figuras que aludem ao caminho filosofal dos adeptos e o do alto, onde o clarão do dia sobressai do escuro da noite. Desta forma se sublinham as alegorias da primavera renascente e da luz irrompendo das trevas segundo a lição de hermetistas antigos como George Starkey e Joana de Vivonne ou modernos como Fulcannelli, que é simbolizado pelas seis pontas da coroa de safiras (em cima, à direita). Esta imagem remete para a dupla trindade, ou seja a completa realeza filosofal que é o apanágio próprio do Adeptado daquele iniciado e Mestre.

    Tanto a estrutura do quadro como os seus elementos nos sugerem a unidade trina dos filósofos per ignem e a simbologia mística dos cooptados de Heliópolis, com as suas alusões ao sagrado transcendental. As cores também são significativas: há o verde, com raízes na sabedoria tradicional e no cristianismo; o negro, o rosa e o amarelo, que são as cores centrais da alquimia operativa de acordo com os textos canónicos de filósofos herméticos como Eyrinée Philalète ou Louis d’Estissac (o negro masculino, o rosa feminino e o amarelo que é a sua síntese fulgurante.

    No plano do meio destaca-se, mas apenas sugerido (velado) um rosto em amarelo (a cor da Sabedoria hermética). Um pouco acima, à sua direita, vê-se a rosa mística sobre os nove degraus do conhecimento (em amarelo e doirado) que uma figura rosada em repleção (a gravidez do lege e relege, que antecedem o ora e o labora) irá subir. No lado esquerdo está um torso amputado e decapitado (o símbolo da matéria afastada da Obra), tendo perto dele os círculos em que o trabalhador ao forno se perde ou se encontra e os três elementos recompostos de que se serve para as suas manipulações: o enxofre, o mercúrio e o sal filosóficos.

    Na parte superior vêem-se alguns insectos (abelhas, besouros e falenas – símbolos da seiva secreta, volátil, das águias alquímicas) algumas plantas vivas (aludindo à natureza contida no duplo Homem ígneo) pirilampos (representação da via-láctea dos Sábios) e uma lua vermelha em quarto minguante (símbolo do aparecimento posterior da lua de Deus e sinal da Obra ao branco que na tradição espagírica cristã nos é dado pela figura de Notre Dame).

   Na parte média podemos ver um elemento branco, redondo (em cima, representando a cal filosófica) e outro triangular (em baixo) aos quais se seguem, com a mesma dimensão e forma, um elemento terroso com laivos doirados e outro onde a cor do ouro dos sapientes já brilha sem quaisquer entraves.

    Assinale-se ainda que na direita-baixa o quadro se inicia com o símbolo da música das esferas, ou música universal, que é como se sabe um quadrado verde claro e rosa forte (o alvorecer e o anoitecer) cindido em oito partes em diagonal, as partes em que simbolicamente se divide, ou pelas quais se forma, o infinito sempre espelhado no 8 que é simultaneamente algarismo,  círculo musical e figura alegórica da derradeira casa da Obra.

    Denota-se por último que a grinalda azul  (do rigor mortis) a meio do embaixo, é pelo seu recorte um sinal do 9 alquímico, figura adquirida antes da dupla fase final transmutatória em que cobram existência perfeita os onze degraus da Obra acabada e ultradimensionada.

    Esta abordagem feita do ponto de vista da arte hermética permite-nos divisar um tipo específico de sugestões presentes com frequência em alguma pintura contemporânea e analisada já por estudiosos e conhecedores do que significa no nosso tempo este tipo de mensagem proposta por autores de formações bem diversas - a indicação cognitiva das condições metafísicas em que o mundo se vai reconvertendo e ao mesmo tempo afeiçoando, numa sucessiva transfiguração da Criação Inicial.


                                    Tradução de Guiomar Fernandéz                                                                    

Mozart, A flauta mágica (Abertura)

 



segunda-feira, 21 de junho de 2021

Para um minuto de meditação - 103

 

Talibãs querem regime islâmico "autêntico"no Afeganistão

através de negociações


Os talibãs pediram "garantias" para a instauração de um "autêntico regime islâmico" através da negociação. Ofensivas ganham força antes da anunciada saída das tropas americanas.

    Vice-Chefe para os Assuntos Políticos do movimento, o mullah Baradar exortou os jovens afegãos a permanecerem no país em vez de procurarem exílio. “Fiquem e sirvam o país e o povo: o Emirado Islâmico dar-lhe-á a oportunidade. Fiquem em vez de irem para o estrangeiro com as vossas famílias e os vossos filhos por um pedaço de pão”, insistiu. (…)

   Em 2020, uma série de “assassínios cirúrgicos” atribuídos aos Talibãs matou dezenas de jovens afegãos com instrução, entre jornalistas, magistrados, académicos e ativistas de direitos humanos, gerando a procura de exílio fora do país. 

(Dos jornais)

 

   Antes de ganhar o poder promete-se até o céu, mesmo que estejam a pensar em dar o inferno.

   E como diz o povo...o inferno está cheio de boas intenções...é hora de sair rapidamente antes que seja tarde.

Emílio Zola

 

   Aquilo está-se a compor para as bandas do oriente…O presidente ultraconservador do Irão, agora estes a negociarem um regime islâmico autêntico, o que quer dizer que tudo o que têm feito até agora tem sido apenas o aperitivo para o prato principal que pretendem servir.

Victoria Arrenega


Três poemas de Cristino Cortes

 

PRÉ-ELEGIA, OU ANTECIPADO EPITÁFIO, EM TRÊS ANDAMENTOS

 

                                                           Para o “Sócrates”

 

1.

 

O mágico do animal não pensa decerto na morte.

Como poderia pensar no que para ele não existe?

Olha-me, e ao mundo todo, do fundo dos seus olhos

Já o hábito aboliu o nevoeiro instável do tempo...

 

No seu sono sem sonho, no seu leve dormir

Não há árvores nem frutos simbólicos, nem o canto

De uma ave invisível, e até o perpassar

De uma cadela o não levaria a seus olhos entreabrir...

 

Às vezes estremece, puro instinto, se um sopro de vento

Penetra sem aviso nesse eterno e frágil presente.

Ele respira, sem qualquer protecção, sobre a terra

Em natural comunhão com a vida que o atravessa

Em paz, sempre, com os eflúvios que emana e encerra.

 

Para ele, animal mágico, a morte não existe.

Não sabe se lhe falta muito ou já pouco, nem sequer

O conceito, ou a questão, faz qualquer sentido.

De alguma forma a morte dele sou eu que a sofro

- E sofro por antecipação.

 

2.

 

Olho para o cão... Da sua anormal passividade

Me nasce a interrogação sobre o cedo e o tarde:

Será que chegou ao fim, estará para morrer

Este animal que connosco, há tantos anos, veio viver?

O que será melhor, o que será possível fazer?

 

Soltá-lo, já o pensei, que ele vá, fixe e cheire

As flores e as plantas, e onde tiver de ser

Se deite quando quiser, e, se for o fim, que o aguarde

Na sua inconsciência de bicho doméstico e caseiro,

Aceitáveis limitações de bom e pacífico rafeiro

Toda uma década aqui nos pontuando a existência

A dele, e também a nossa, fluindo em vária sapiência

Para ele agora inútil, de tudo desinteressado

Como alguém com os negócios todos já bem encaminhados,

E apenas lhe restará um último e sofrido suspiro

Não de lamento ou cansaço, mas apenas surpresa

De quem não é mais o que antes era e só então pudera.

 

Será, não será? Dessas matérias todas sou eu ignorante

À cautela preparo as ferramentas, e o local no jardim

- Dessa forma antecipando seu inevitável fim...

Oxalá seja falso alarme, prurido de jasmim

Gravidez de vento em meus neurónios, passageiro quebranto.

 

3.

 

Sobre a cova que será sua uma roseira florirá.

Em seu aroma progressivamente ele se transformará

E na vaga memória dos meus filhos

- E na minha também, por prudência e cálculo o admito -

Insensível mas fatalmente, qual novo rito

A pouco e pouco o rigor do seu contorno se esvairá...

 

Mas não lhe deitarei fora a casota, nem a corrente

Ou a gamela onde ultimamente já pouco comia...

Foi único, não terá sucessor. A linhagem não continua

O espaço não será ocupado, o que fica é pura mobília.

E é com melancolia, e alguma vaga gratidão

Que o próximo epitáfio, com desculpável antecipação

Aqui o formulo, de alguma forma o sabendo inevitável.

 

Ah grande Sócrates! Raios te partam, dizia às vezes

Mas era sem intenção, claro, tu bem o sabias

E a mal me não levavas, aliás nem te calavas

Se com essa intenção eu assim te insultava...

Era uma boa relação esta, por mim puxavas

E só depois de teres ido, a falta te sentirei, como é normal.

Mas o teu tempo passou, bem vejo que estás quase

E vai, vai já que tem de ser, e o que tem de ser

Tem muita força, assim é nos homens como nos bichos

Tu não tens de o saber, oh Sócrates, nem tal seria próprio

Mas nem por isso tu deixarás de morrer

Quando o tempo for cumprido e a tua hora chegar.

 

Consola-te, se puderes, pensando que ainda cá fica

Quem assim te falou. E mais não queiras. Nem o terás.


Nicolau Saião, Relance sobre o Fantástico

 


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1. Do Fantástico como território vital

     É o nosso um mundo onde as dúvidas mas, pior que isso, determinadas certezas encarnaram em inúmeros corpos, rostos, encenações de acontecimentos, vivências contaminadas por uma realidade que excluiu a possibilidade da alegria de existir ser não-dependente da razão social e, mais grave que isso, de acordo com a propaganda incessante dos mass-medias, tendencialmente ou inculcadamente supranumerária.

As civilizações, neste preciso momento, como se sabe sem ser pelos oráculos já não têm possibilidade de escapar quer pelo fingimento quer pela simulação propiciada pelos fideísmos a um facto evidente e palpável: são mortais e, comprovadamente, desfazem-se a cada minuto. É uma desconstrução/modificação acelerada a que só os ritmos individuais, curiosamente, colocam uma certa barreira como se fossem ilhas. E o chamado real social, cada vez mais constrangedor, é muito mais estranho e inquietante que o tradicionalmente sinistro continente dos monstros inventados pela imaginação dos escritores, dos pintores, dos cineastas que cultivaram o género.

Tzevetan Todorov, num livro escrito com o proverbial hábil articulado dos intelectuais franceses de qualidade e, mais que isso, parisienses a despeito da sua origem transnacional, concluiu – foi o que o tempo do século lhe permitiu – que o fantástico residia acima de tudo nessa hesitação sentida pelo leitor. Mas isso era e tinha de ser decorrente da escrita do autor, fundamentalmente o fantástico reside nessa escrita e nos meios existentes para que ela excursione por esse plano. Daí que hoje, a não ser por equívoco, por falta de motivo ou, mesmo, por falta de capacidade inventiva, os escritores já não cultivem o género fantástico, a não ser que lhe acrescentem, de forma bastante natural mas perturbante, um fortíssimo elemento de terror. O que, claro, é um sinal dos tempos, dos nossos tempos devastados, uma vez que o fantástico tem a ver com o medo e seus volteios e não com o terror e suas circunstancias. Os contos e as novelas fantásticas – e o mesmo se verifica no cinema e na pintura – foram contaminadas e mesmo substituídas pelos relatos sobre serial-killers e mass-murders psicopatas ou no pleno uso da sua crueldade.

Deu-se pois uma inversão na realidade societária, que é o reservatório no qual se baseia o campo de manejo dos autores antes de, após a difusão da escrita, estas ficarem mescladas, interligadas, interpenetradas. Como referiu apropriadamente Louix Vax, “A arte fantástica deve introduzir terrores imaginários no seio do mundo real”. (Eu colocaria aqui um pormenor: introduz sempre e é devido a esse facto, pois o fantástico é sempre proveniente do território da escrita, da arte em geral e é só aí que se exerce pese à simulação/convenção da existência do fantasma). Ora, pelo contrário, hoje por hoje é o real que introduz terrores bem reais no mundo do imaginário. Dado que nos faculta perceber, ao constatar esta evidencia, que é bem certa a frase que nos diz que a verdade, ou se quiserem a realidade, tal como a luz do dia é fatal aos monstros imaginados, sendo ad contrari o ventre do qual brotam os monstros reais da nossa existência perversamente socializada.

No fundo, por mor da agudização dos conflitos internos-externos, o fantástico aparece-nos agora como um país recordado onde a imaginação se refugiou, ela que é caçada pelas esquinas p’la protérvia dos donos da Terra que, curiosamente, já nem dissimulam os caninos mas antes os justificam com, até, certa galhardia…

Sendo encarnações simbólicas do Mal, os monstros fantásticos são hoje brincadeiras algo evasivas em comparação com os monstros sociais que determinados poderes forjam e erguem para que a sua estratégia resulte e acrescente o seu estatuto de gente sentada numa cadeira curul.

Drácula ou Frankenstein – a não ser que os vejamos como representação dos que ocupam a realidade circundante de topo – fazem bem triste figura, pobres diabos em que os tornaram, ao pé de gente bem real como um Ceausescu, um Kim il Jong, um Stalin, a corte nazi ou um ditador sul-americano ou, nos últimos tempos, um qualquer chefe fundamentalista das diversas gamas em equação. Ou um desses protagonistas centro-europeus ou médio-africanos que liminarmente despacham milhares a sangue-frio sem grande esforço de consciência.

O jogo, o jogo de imaginar personagens de pesadelo, tornou-se um jogo mortal. Mais grave – deixou de ser jogo e é agora uma espécie de lembrança nos mecanismos do quotidiano. A questão fulcral não está na leitura, como Todorov postulou, mas na escrita. O dono do fantástico é o narrador, tal como na vida social o são os que governam a massa de quem fingem depender pela representatividade democrática. Tal como num filme, encenado com aprumo, tudo é em última análise o corpo sensível do realizador, desde as personagens às peripécias, desde o décor ao elenco.

Os monstros do fantástico que se transmutou enquanto os anos passavam – e constatá-lo é quase um lugar-comum que o cinema por exemplo capturou com oportunidade e argúcia - andam agora pelas ruas sob a fatiota de comerciantes, de professores ou de modelos fotográficos, de farmacêuticos ou de cabeleireiros, de simples agentes da autoridade, médicos e bancários. (Todas estas profissões, aqui fica o detalhe, têm a ver com fitas ou livros conhecidos, como o leitor proverbialmente atento recordará).

E é assim que de forma um pouco requentada ou arteira, num mundo feito palco inquietante para personagens carnais assustadoras, um ersatz do fantástico é, imagine-se, utilizado para distrair da realidade hostil: ultimamente, a moda (que não é moda, mas golpe financeiro-societário bem artilhado e consciente) dos filmes de vampiros para adolescentes, transfigurando os monstros em pequenas vedetas que, pois é esse o seu enfoque, encantam os pobres ingénuos de maneira singular.

Assim, por um lado, se exorcizam fantasmas perigosos do quotidiano e se amenizam os focos traumáticos e, mesmo, as neuroses que inçam o dia a dia e que aqui e ali ameaçam explodir.

O fantástico na Arte é como que um sinal que assegura que a imaginação livre ainda não se esclerosou. Criando lugares negros e assombrados como em o “Manuscrito encontrado em Saragoça”, os contos “científicos modernos” de Pere Calders, as equações de Jorge Luís Borges ou as metáforas de Juan Rulfo ou Cortazar – isto no universo ficcional hispânico – as incursões poético-trágicas, permeadas de uma profunda nostalgia, de Bruno Schulz e Claude Seignolle ou, num outro plano de inquietação e rigor, de Maurice Sandoz, Jean Lorrain ou Jean Ray, o fantástico lança um repto à perversidade e ao cinismo do mundo da necessidade e faz-nos saber sem lugar para dúvidas que o único sítio onde devia ser lícito existir medo e monstros – o imaginário artístico – está sendo submergido pelo sangue bem real e triste dos desvigamentos sociais provocados pela inépcia dum mundo que vive entre os destroços do direito romano aprés la lettre, as seduções ora apaziguadoras ora perturbadoras da interactividade e as simulações dos fideísmos ocidentais com, bem dentro do horizonte, os fanatismos de tipo oriental de boa cepa medievalista.

Assim, o mundo do fantástico apela para a nossa compreensão, tanto dos fenómenos interiores como exteriores, para a nossa capacidade de insurreição ante as injustiças, as caquexias e as corrupções éticas oficiais ou privadas, para o humor negro ou colorido e para a liberdade de optar, que não é negociável. Não esqueçamos, antes o lembremos sem ceder a chantagens: as tentativas contemporâneas, levadas a efeito por associações profissionais de orientação geralmente “fideísta” ou de obediência, que capciosamente tentam eximir criminosos e assassinos à punição com o pretexto de que a culpa é da sociedade, devem encontrar pela frente a nossa determinação demostrarmos que a culpa é, sim, dos seus constituintes mais da sociedade que os forjou e que aqueles geralmente controlam para efeitos do seu interesse ilegítimo e opressor.

E saibamos seguir esse apelo do fantástico, saibamos excursionar imaginativamente por essas noites negras onde as feras compósitas, sendo um dado essencial, desaparecem no entanto varridas pelo cantar do galo e pelo ar purificado das manhãs incorruptas.

  2. Do Fantástico na Literatura – viagem concisa

Um universo que aceite firmemente o sobrenatural encontra-se perto do maravilhoso mas longe do fantástico. Pelo contrário, um universo profundamente realista é aquele onde a ambiguidade fantástica se pode manifestar. Um vulgar cidadão supersticioso, ante uma “aparição” diabólica, sente-se aterrorizado mas não surpreso. A surpresa pode senti-la um honesto cavalheiro racionalista armado de tremendas certezas, frente a um acontecimento insólito.

O fantástico, mais que a derrota do cartesianismo é a volatilização daquilo que o sustenta: uma sociedade que perdeu o senso – e mais que o senso o gosto ou o apego – das realidades (veja-se o mundo dos talk-shows, onde a realidade apresentada visa criar um tipo de realidade cobrindo/substituindo todo o real social exterior, complexo e contraditório).

O fantástico alerta-nos para o facto de que a qualquer momento podemos desaparecer da face da terra. Com efeito, quem conhece o momento da sua morte? Quais, adicionalmente, os mecanismos do Tempo? O tempo é nosso aliado pois vivemos dentro dele ou, pelo contrário, é uma espada sempre suspensa sobre o nosso pescoço? Passado, presente e futuro entrelaçam-se no relato fantástico e, pois, no fantástico que se convencionou existir na realidade. Mas o fantástico fundamentalmente tem a ver com o presente, esse instante infinito e evanescente que tão depressa surge logo se vai e nós com ele. O fantástico tal como o presente – que reside perpetuamente entre o passado e o futuro – equilibra-se entre o mundo real e o sobrenatural hesitando sempre. Pode dizer-se, com inteira adequação, que no sótão da Casa cresce uma excrescência carnosa que assim que tenta tocar-se imediatamente se desfaz, para voltar a reaparecer assim que nos afastamos. O fantástico contemporâneo é de ordem conceptual, como nos contos de Père Calders “A   estrela e o desejo”, “Coisas da providência”, ou no de Borges “Tlon, Uqbar, Orbis Tertius”, onde para citarmos Vax os manejos do estranho se entrelaçam com os da inteligência.

O herói-vítima moderno verificou com inquietação que o seu saber, o seu conhecimento e a sua cultura já não lhe fornecem as necessárias armas miraculosas para enfrentar a maldição mas que são, pelo contrário, um motivo mais para tremer, um território mais de pavor e desesperança. (Assim como os estabelecimentos de ensino de alto coturno, na prática desta contemporaneidade, já não garantem um acréscimo de saber e de meios de vida, antes são lugares onde os utentes com terrível frequência são votados ao deus-dará uma vez que nas suas expectativas campeiam a desigualdade, a visão do desemprego e, até, o cínico apadrinhamento partidário).

Em suma, o fantástico corrente contemporâneo é filho do desespero, ao passo que o fantástico tradicional provinha do desconhecimento, da fissura entre o que é real e o que pode não o ser. Perpassa na sociedade a ideia difusa, muitas vezes inquieta e confusa, de que a dúvida entre real e inusitado possível (selo canónico do fantástico) só existe no plano em que os próceres do mando nos mentem, não nos fornecendo as verdadeiras razões que guiam o mundo e permitem, no plano da escrita, ver claro e fazer claro.

É isto que explica que nos últimos anos se tenham multiplicado como cogumelos as novelas, romances e até ensaios propiciando relatos que de forma impetuosa abordam as congeminações fraudulentas a que se teriam entregue agremiações como o Vaticano e grupos iniciáticos, autores célebres, estados e associações, antigos monarcas e argentários, etc.

Há pois um fantástico em acção, o relacionamento societário está coberto por uma pátina que provoca no vulgar cidadão a sensação de não saber às quantas anda como sói dizer-se.

Atentemos em que, como mais uma vez Vax assinalou, o fantástico é também a presença do homem na fera ou da fera no homem. A ferocidade do tigre é natural e não nos apavora. Mas pense-se num tigre com cabeça de homem ou num homem com cabeça de tigre. Como é que pode haver coisas assim? É dessa dúvida horrorizada que o fantástico brota. Mas neste momento, devido aos avanços da tecnologia e da ciência de ponta, antolha-se a possibilidade de isso poder de facto existir. Mais: há a possibilidade de pessoas com a nossa aparência serem nasciturnos modificados tendo dentro deles, monstruosamente desenvolvidos, todos os instintos de depravação e de perversidade que os seus presuntivos utilizadores programaram. (Não falando na utilização manipulatória e cínica dos mídias). E é desta ultrapassagem do cidadão pelo Estado suposto que nasce a angústia e o desespero que o  fantástico moderno aponta mediante a escrita em que a dúvida passou para o campo que se interroga sobre a legalidade e o abuso em que parece terem-nos mergulhado.

E não se resolve este impasse metafísico metendo a cabeça ou a caneta – ou o aparelho interactivo – na areia…

A poesia é a transfiguração da realidade. O fantástico é o transtorno da realidade. E dessa catarse possibilitada pela escrita nasce uma poesia específica, diria antes: um halo de poesia que roça os campos da nostalgia e da tragédia e que, dess’arte, permite que se ultrapasse a amargura que emerge da fugacidade inerente à vida, ao tempus fugit fundacional.

A poesia, bem vistas as coisas, violenta as leis da escrita para nos levar mediante a desconstrução a que procede à beleza e ao saber. No fantástico é a violação das leis da lógica comummente aceites que nos transporta titubeando, repletos de confusão, pelos recantos dessa terra inquieta. A poesia projecta-nos num universo encantado, o fantástico mergulha-nos num mundo onde todas as nossas certezas se estilhaçaram. Do fantástico solta-se um hálito poético de feição assustadora e lúgubre, fascinante e entontecedora – e só consegue isso se os textos que o perseguem não procurarem dar à vida a poesia e sim o conflito entre o real normal e o sobrenatural mefítico que jaz dentro da mais estarrecedora realidade, subitamente posta em causa e aparentemente transformada em algo que não se sabe bem o que seja mas que não nos gratifica.

Deixemos durante alguns segundos o nosso olhar vaguear por pequenos exemplos, para iluminarmos em tom de recreio uma certa função de leitores encartados: pense-se, como na novela de Prosper Merimée “A Vénus de Ile”, numa estátua plasmada num parque ajardinado. As estátuas, tal como os manequins e os bonecos, são sempre vagamente assustadoras pois parecem-se em demasia com as figuras de carne e osso. Na figura petrificada da estátua há sempre uma sugestão de vida possível, de animação, ainda que a nossa razão e a nossa experiencia nos garantam que tal não pode verificar-se.

Na novela referida há a suspeita de que uma estátua saiu do seu estado petrífero para estrangular um noivo demasiado atrevido que com ela, para fazer espírito, contraíra um matrimónio burlesco. Há indícios que podem tomar-se por positivos, mas o caso pode ser o resultado da superstição ambiente ou levado à conta de imaginação excessiva, bem aproveitada por um assassino hábil e empreendedor.

O que não há dúvida é que Alphonse de Peirehorade morreu mesmo com o peito marcado por vergões arroxeados e o pescoço torcido. Obra da estátua escarnecida ou artimanha vivaz do rival espanhol a quem ele humilhara no decurso dum jogo da pela?

Num relato policial este plot seria apenas um motivo parcial de encenação e estaria ali apenas para carregar o enredo de um perfume de mistério, pois a breve trecho se inflectiria noutra direcção fazendo desabar as premissas de cunho metafísico, dado que naquele género tudo se desenrola verdadeiramente no chão sólido do quotidiano real. Na novela fantástica, pelo contrário, a sequência de acontecimentos horríficos ou angustiantes não terminam num apaziguamento da descoberta nem sequer a têm como alvo. Em geral, o final de um relato fantástico ou faz permanecer os motivos de angústia, num articulado engenhoso ou abre novas interrogações tenebrosas. A explicação, se assim se lhe pode chamar, levanta novas perplexidades de mau cariz.

Digamos que esta característica, esta feição de inacabamento, esgar de humor negro amoravelmente acintoso, tipifica o fantástico como um género aberto e, por isso mesmo, maior e laborado por autores de qualidade superior.

Daí que o relato fantástico recue ou desapareça nos períodos de conturbação ou exista debilmente nos países onde, por mor ou da miséria social ou do fanatismo fideísta, laico ou não-laico, a existência civil esteja sujeita às penas da desqualificação ética, moral ou de timbre baixamente social, como sucede entre nós, que nunca et pour cause tivemos literatura e arte fantástica – com ligeiras excepções de desenquadrados eventuais - que não fosse vestibularmente débil ou epigonal e imitativa.

          in “As Vozes Ausentes” (Ed.Escrituras – São Paulo, Brasil 2011)


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