quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Para um minuto de meditação - 131

 

Mulheres afegãs afastadas da Universidade de Cabul

 

O reitor talibã da Universidade de Cabul proibiu professoras e alunas de frequentarem a universidade, até ser criado "um ambiente islâmico". Aulas através de uma cortina são uma hipótese.

(Dos jornais)

 

  Ambiente islâmico? Eles chamam isso ao reacionarismo fanático discriminatório? É a novilíngua islamita a funcionar. Os ingénuos, maioritariamente líderes políticos ocidentais que esperavam que os talibãs estivessem sériozinhos, aqui têm a resposta esclarecedora. Ou serão tão estúpidos que ainda não perceberam?

Joaquim Barbosa

 

  No Iraque são estes mânfios. Em Itália são uns semelhantes politicões que se indignaram por uma estátua de homenagem a uma camponesa ser demasiado sexy. Irmãos em politicamente correto e em estupidez maldosa. “Porca miséria”!

Cid Monteiro

 

   Lembram-se daquele cavalheiro da UEFA que tempos atrás, por mando da sua entidade, veio dar indicação aos operadores televisivos que se abstivessem de focar as moças airosas da assistência? Lembram-se? Pois isto de talibãs, fratelli dirigentes transalpinos e líderes patuscos é tudo a mesma “tropa”. São irmãos colaços dos gandulos que nos tempos dele tentavam agredir e enxovalhar o pintor Cézanne por ter exposto numa montra o “retrato” duma rapariga em trajes menores… O que os move não é a consideração pelas mulheres mas sim o desprezo e a hostilidade p’la sua condição de seres sexuados e livres!

ns


Três poemas de Carlos Garcia de Castro

 


ns



“MENINA E MOÇA”

 

A Grande Guerra mundial nazi

deixara às escolas um destino hermético.

 

Distantemente, Portugal morria.

 

– Foi quase natural ter-me formado.

 

Como na história da “Menina e Moça”,

saí de casa com legais propinas.

 

Havia à noite os rádios e o cinema.

Chegava a ser bonito ir-se para a Tropa,

fardar-se de Aspirante, uma hierarquia,

para estar às ordens dum Quartel em paz.

Era saudável ser comerciante.

 

Solenemente, Portugal vivia.

 

Por compleição, o Livro das Saudades,

com professores – Bernardim Ribeiro,

que às raparigas inspirava os vícios

dum namorado, casamento, filhos.

 

Em grupo se lançavam vários ócios,

“Cahiers du Cinema”, a JUC, a Opus Dei,

modernos pajens, menestréis compostos.

 

Nenhum de nós, tomado, em liberdade,

– de alguma vez deixara o fingimento.

 

Um templo nos resolvia,

– o Banco de Portugal,

Bravos rapazes de gravata e fato.

As raparigas eram Enfermeiras

ou professoras de Letras.

 

Até as noivas, de inocência amarga,

que os padres e as famílias alisavam,

com habilidade nos surgiam virgens,

 

– nas ocorrências dum País alegre!

(Eu próprio me casei vestindo fraque).

 

Por toda a parte havia a sedução

de amáveis permissões corporativas

à Casa dos Estudantes do Império.

 

Anos Cinquenta, as dores em segurança.

 

“Por sobre um verde ramo acima d’água”,

meu pai se contentou com a minha Formatura.

– Também se fazem nojo as coisas entre si.

Trivialmente, Portugal ouvia

todos os dias as estações da Rádio,

com Vitorinos, Pessoas,

as proteínas nacionais de acesso.

 

Qualquer artista serviçal de sempre

cantava e acentuava o Cais/Sodré.

 

– Foi quase natural ter-me formado.

 

 

A ERNEST HEMINGWAY

 

Quando é no verão e o vinho está gelado,

à sombra luminosa do pós-guerra

que os toldos espalham de amarelo vivo,

as raparigas cheiram a morango,

cosmopolitas de higiene química.

 

Comemos frutos rígidos à mão

para simularmos o bravio do sol,

só pelo gosto ácido e vulgar

que os nossos dentes têm de morder

ainda as espoletas das granadas.

Tomamos banho a nadar no mar,

vamos de férias todas as semanas

para nos amarmos nos hotéis de luxo

ao pé das praias, lagos, das montanhas,

onde haja uma esplanada para vivermos.

Lemos jornais e conversamos manso,

fumamos, apostamos nas corridas,

Martini branco, seco, sugestivo,

pessoas vivas, débeis ou dramáticas

do coração anónimo da paz.

 

Então os homens de falar pausado

serenamente com a pele tisnada,

escanhoados, têm olhos verdes,

olhos de cor, suscitam as mulheres

 

e toda a esplanada para as trincheiras.

 

 

GENÉRICO

 

Nas lojas, antigamente,

havia o Mestre, que era o dono delas.

As suas Artes eram seu Ofício,

para que ensinava sempre um Aprendiz.

O Mestre tinha o seu Oficial,

homem já feito, casadouro às vezes,

que ele criava à mão das ferramentas.

O Mestre era o patrão, e em sua casa

todos viviam como pai e filhos.

Lá tinham percentagem e alimento,

que a carne é corpo para criar o espírito.

Da profissão faziam a família,

comunalmente a sua lealdade,

e cada obra, ideia produzida,

era o louvor unido deles todos

que em troca dos seus ganhos ao freguês

levavam pronto como novidade.

Esse freguês em pouco procurava

aquelas coisas para o seu enfeite,

delas se dava à sua precisão.

Ainda quase não havia máquinas,

das suas mãos directas, com aprestos,

provinham simples complicadas peças

de sentimento e cérebro trasladadas

da vida para o tempo, persistentes.

O quadro se fazia de esquadria,

a roda se fazia de redondo,

as regras eram quem dizia o ser,

ditavam liberdade e consciência.

– Deus era sempre a explicação distante

e perto de qualquer matéria-prima.

 

Também a História pode ser um sonho.

 

Da Antologia “Fora de Portas”

Editada pela “Escrituras” de São Paulo (Brasil)

Prefácio de ns


Antologia

 

ALGUNS TEXTOS DE JORGE DE LIMA ALVES




DA FOTOGRAFIA

   Para ver bem é preciso tempo. É preciso vagar. É preciso ver e rever. Voltar mais do que uma vez aos mesmos locais é, muitas vezes, essencial para um fotógrafo.

   Dito isto, a essência da fotografia, para mim, é ser misteriosa, na medida em que o que quer que seja que procure manifestar, o seu 'objecto' permanece invariavelmente por revelar. O segredo de qualquer fotografia depende sempre mais de quem a vê do que de quem a tirou.

   Enquanto fotógrafo, o que procuro está para além da fotografia. É algo que não pode ser registado e isso é, precisamente o que faz o seu valor aos meus olhos. Pois o que queremos e não conseguimos obter ou lograr - o poder que não temos - é, talvez, o que melhor nos define.


UM SONHO E MUITAS CANÇÕES (Para John Berger)

   Esta noite, sonhei em inglês. Sem dúvida influenciado por um livro de John Berger que estou a ler no original, sonhei que estava a ser entrevistado por uma jornalista britânica que, a certa altura, me perguntava o que é que eu achava da voz e da maneira de cantar do Ian Curtis. Num inglês impecável, entre muitas outras considerações que não consigo recordar, afirmei que ele não cantava para as pessoas, nem sequer para si próprio, mas para procurar libertar a sua alma atormentada, mesmo sabendo que isso é impossível. Libertá-la de quê? Libertá-la da morte, claro, ou da ideia da morte, penso eu. É por isso, acrescentei, que naquela forma tão intensa e complexa de se entregar ao canto havia uma grande parte de revolta e um desejo de formular algo que nunca fora formulado. Aos meus olhos, pelo menos, havia nele uma vontade de superação, de si próprio e da própria vida.

   No seu livro (Confabulations), John Berger escreve: “The essence of songs is neither vocal nor cerebral but organic”. No mesmo parágrafo, diz ainda: “We find ourselves inside a message”. É verdade para a maior parte dos casos, mas outros cantores, entre os quais Ian Curtis, vão muito para além da letra que cantam. Eles próprios são a mensagem, sabendo perfeitamente que a linguagem é demasiado pobre para comunicar o que sentem e o que são. De resto, muito provavelmente, não sabem bem o que sentem ou o que são, pelo que só a música e o canto podem exprimir a sua angústia. Como refere Berger: “…songs can express the inner experience of Being and Becoming”.

   Isso explica, pelo menos em parte, julgo eu, porque é que certas vozes (estou a pensar na Cesária Évora, por exemplo, que John Berger evoca no seu livro) nos tocam tanto, nos comovem tanto, mesmo quando não compreendemos a língua em que se exprimem. Alguns cantores, digo eu, conseguem, por momentos, apoderar-se das nossas almas! Já agora, deixem-me que vos diga que sou dos que ligam muito pouco às letras (em geral, muito fracas), preferindo focar-me na musicalidade das palavras e dos corpos. É no corpo dos cantores, no seu rosto, nos seus olhos, nos seus gestos e postura, que a música e letra se transforma em arte.


DA LEITURA

   Como autor, acho que o mais fascinante de um livro é, talvez, aquilo que ele me esconde. Por outro lado, o que procuro nos livros dos outros é, muitas vezes, aquilo que só eu poderia lá encontrar. Revelações sobre mim próprio, vislumbres do que eu poderia ter sido, restos do que fui e tinha esquecido. Os livros que mais gozo me dão são, naturalmente, aqueles que eu gostaria de ter escrito. Aqueles que “escrevo” à medida que os vou lendo.


ARIZONA


   O Arizona tem uma variedade impressionante de paisagens. Na verdade, as mais extremas que se possam imaginar, entre as quais esses locais absolutamente surreais que são a Petrified Forest e o Painted Desert (que se pode observar nesta foto). Dois universos geológicos espantosos, insólitos, onde não custa nada acreditar que estamos noutro planeta, numa galáxia bem longínqua. Vejam-se, por exemplo, as árvores fossilizadas, com as suas estrias loucas, com cores de pedras preciosas. Diz-se que têm 200 milhões de anos!

*

   Ainda lá estava e já sentia saudades. Saudades do calor e do silêncio, um dos silêncios mais musicais que jamais conheci. Saudades daqueles céus sem fim, onde há sempre nuvens para acentuar o azul profundo do céu (um céu tão luminoso que a estrada parece pavimentada de prata). Saudades de poder conduzir interminavelmente, com a paisagem a desenrolar-se à minha frente como um filme apaixonante.


O VENEZIANO COXO

   Encontrei-o numa feira de antiguidades que visitei por acaso, numa terriola da província. Ia a caminho de outra cidade e parei a meio do caminho para almoçar. Quando procurava um restaurante, reparei que estava a decorrer uma feira e decidi, depois do almoço, ir espreitar. Na verdade, era mais uma feira da ladra do que de antiguidades.    

   Havia de tudo: roupas e livros usados, quinquilharias, loiças, o costume. Quando me aproximei de uma banca com velharias, ouvi um senhor barbudo exclamar: “Macacos me mordam se não é um veneziano coxo!” Nas mãos segurava uma espécie de arlequim de lata, com uma chave para dar corda nas costas. Como viu que eu o olhava com curiosidade, lançou-me: “Nunca tinha visto um veneziano coxo ao vivo, conhecia apenas uma gravura que vi num livro que o meu avô me mostrou quando eu era adolescente.    

   Estes pequenos autómatos foram feitos em Veneza no século XVIII, por um relojoeiro chamado Lindopel, se não estou em erro. Era famoso pelos seus homúnculos mecânicos, muito em voga na altura. Este, a confirmar-se a minha intuição, ficou conhecido como Veneziano Coxo. É considerado a sua obra-prima, concebido e realizado já numa idade muito avançada, por encomenda de um sultão turco cujo nome não me ocorre. Creio que não haverá mais de meia-dúzia deles no mundo.” O dono da banca, um rapaz excepcionalmente novo e bem parecido, tinha-se aproximado entretanto e o potencial cliente perguntou-lhe timidamente: “Está a funcionar? Posso experimentar? Posso dar-lhe corda?” Perante o aceno afirmativo do feirante, deu corda ao boneco e soltou-o no chão. Para meu espanto, o boneco deu meia-dúzia de passos, coxeando, de uma forma engraçada. Tanto o feirante como o barbudo riram à gargalhada. “É ele, é!”, quase gritou este último radiante. Voltando-se para o vendedor perguntou com visível ansiedade: “Mas funcionará realmente?” Sem uma palavra, o outro pegou na marioneta mecânica, deu-lhe corda e soltou-o no passeio. Para meu grande espanto, desta vez, o arlequim andou normalmente, sem coxear minimamente. Os dois homens olharam um para o outro com aquele olhar cúmplice dos iniciados. O barbudo quis saber: “Quanto é que está a pedir por ele?” “Dois mil euros”, respondeu o outro. “Nem está caro”, suspirou o barbudo, “infelizmente não posso dispor desse dinheiro neste momento”. Foi nessa altura que intervim, empolgado pelo entusiasmo deles: “Posso experimentar também?” O rapaz passou-me o boneco para as mãos e foi a minha vez de, com mil cuidados, dar-lhe corda e colocá-lo no chão. O robô deu seis passos exactos a coxear (contei-os), e os outros dois riram a bom rir. O barbudo explicou: “O autómato foi concebido, a pedido do tal sultão, para só funcionar bem nas mãos de quem tem um coração puro. Quem não o tiver, só conseguirá fazê-lo coxear”. Ri-me: “Isso é absurdo”. “Pode não acreditar, mas é assim que reza a lenda”, garantiu o meu interlocutor. “Este senhor tem razão” acrescentou o vendedor muito sério. “Poucas pessoas conseguem pô-lo a andar sem que ele coxeie. Não sei explicar porquê, mas é assim, como pôde verificar”.

   Fosse como fosse, o brinquedo era lindo, estava em muito bom estado e eu nunca tinha possuído qualquer objecto do século XVIII. Por isso, perdi a cabeça e comprei-o. Ainda o tenho, está ali na estante, em posição de destaque para mostrar aos amigos. Uma coisa é certa: até hoje, nunca nenhum deles conseguiu pô-lo a caminhar direitinho, como fez o rapaz que mo vendeu.

 

 

“LE GANT ROUGE”



   Edmond Rostand (na foto) é sobretudo recordado por «Cyrano de Bergerac», uma genial peça de teatro que já foi adaptada ao cinema várias vezes. Agora, mais de um século depois de ter sido escrita, anuncia-se em França o lançamento de uma outra sua peça, escrita aos 20 anos, que permanecia inédita. Intitulada «Le Gant Rouge» («A Luva Vermelha») a obra só foi levada à cena (em 1888) porque o seu autor custeou as despesas. Curiosamente, em 1903, quando já era um autor de sucesso, Rostand voltou a pagar ao mesmo director teatral, mas desta vez para que a peça não fosse reposta, já que ficara traumatizado com a ferocidade de crítica na altura da estreia. «Le Gant Rouge» será publicado, no próximo dia 10, numa edição que inclui uma selecção de cartas que o escritor enviou à sua noiva nessa altura.


NA MORTE DE ALAN SILLITOE

   Morreu Alan Sillitoe. O nome não deve dizer grande coisa às gerações mais novas, mas quem gosta verdadeiramente de literatura, sabe que ele foi uma figura incontornável nos anos 50 e 60.

   A fama deveu-a essencialmente a dois romances escritos numa linguagem crua e dura em ruptura com a cultura dominante da época em que foram escritos: Sábado à Noite, Domingo de Manhã (1958) e A Solidão de um Corredor de Fundo (1959).

   Mesmo se detestava a etiqueta, Sillitoe fez parte dos chamados «angry young men», uma geração de intelectuais britânicos, como John Osborne e Kingsley Amis, cuja rebeldia e espírito crítico marcaram toda uma geração de europeus. A minha dívida para com todos eles é muito grande.


DA CULTURA

   Cada vez mais, a cultura de que falam os jornais não passa de uma feira de vaidades. A verdadeira cultura é clandestina. É uma resistência heroica à vaidade dos outros. É uma luta de todos os instantes, contra nós próprios e a ideia da morte. A verdadeira cultura é aquilo que nos transforma em nós próprios a cada instante. Não há nada menos fútil, nem mais distante da cultura institucional.

*

Jorge Lima Alves nasceu no ex-Congo Belga, filho de emigrantes portugueses. Entre 1969 e 1976 viveu em França, onde estudou, trabalhou e publicou o seu primeiro livro (Selles, 1975). Jornalista desde sempre, colaborou com inúmeros jornais e revistas, tanto em Portugal como no estrangeiro, sempre na área da Cultura. É igualmente tradutor e autor de livros de poesia, teatro, ficção e ensaio, tendo também publicado vários livros de viagem onde a fotografia ocupa um lugar destacado.


Camel, Stationary Traveller

 



segunda-feira, 27 de setembro de 2021

PÓRTICO

 



   Assentou a poeira, levantada em grande parte pelas andanças de Costa num rodopio pelo País a prometer dinheiro que não é dele mas dos portugueses a quem a União Europeia o deu.

  O hábil manhoso pela primeira vez deixou adivinhar que não é tão hábil assim, mas apenas produto de circunstâncias que o têm bafejado e se vão esbatendo. Percebe-se que este é o princípio do fim deste político profissional que visando o poder e só o poder tudo tem feito para se manter nele, desde aliar-se a inimigos da liberdade até torcer as realidades para melhor manipular os cidadãos que, no fundo, não respeita.

  Depois do seu antigo chefe a quem serviu devotadamente enquanto lhe conveio ter caído em desgraça, tem tido o povo que aguentar este sucedâneo habilidoso mas vazio. Esse povo está a acordar. E pela primeira vez, mas não deverá ser a última, disse-lhe que as suas manobras vão estando desmascaradas e a seu tempo terá a paga justa.

Jorge Gaillard Nogueira


Para um minuto de meditação - 130

 

A GLÓRIA DE HERGÉ


Os inimigos da imaginação que querem fechar o mundo na sua prisão para que os nossos olhos não se dirijam para o desconhecido são dignos merecedores de todos os insultos que o Capitão Haddock proferiu. (…)

(Dos jornais)

 

Excelente análise. 

É habitual, nos incultos e radicais, a inveja da capacidade dos outros. 

Tal como os talibans que destruíram a arte que diziam infiel, move-os a beleza e poder da arte do inimigo. 

Esta gente vê política em toda a arte, e são perigosos porque odeiam a liberdade, a criatividade, a capacidade que a arte tem de ser disruptiva, chocar, questionar, fazer pensar. 

São gente perigosa, sem capacidade crítica, que quer destruir estátuas, retirar pinturas, queimar livros, porque incomodam.

São perigosos porque têm poder, pois censuram quem não cria como eles vêem o mundo, não patrocinando, não promovendo, não expondo, despedindo, censurando, não comprando o seu produto. 

É a censura a retornar a este país numa câmara municipal, comissão ou departamento do estado perto de si...

Manuel Martins

 

 

Viva Tintin! Viva o capitão Hadock! Viva o professor Tournesol! Viva os inseparáveis Dupont e Dupond! Viva a Castafiore! Viva o senhor Oliveira da Figueira!  Viva Hergé e abaixo as fogueiras da nova Inquisição!

António Sennfelt


Dois poemas de Emílio Adolpho Westphalen

 


(1911-2001)



POEMA

 

Amarrado à sua sombra o bosque

Abria caminho às pegadas ardentes

Os faunos carreavam os regatos

E nos cornos da Lua uma flauta trilava

A ninfa na encosta sobre o braço descansava

Estios de florais prestígios

Entreteciam desenredavam as brisas

Nas têmporas da bela adormecida

Como se dois meninos com ele folgassem

Tantas voltas dava o mundo

De mão em mão se via percorrido

De vermes com chapéu de copa e dignidade

Os rios não se atreviam

A tocar a orla das cidades

De longe as cantavam e em surdina

Para não quebrar a quietação das muralhas

Ou turvar no recinto

A clara canção dos menestréis

Ali aparecia a bela adormecida coberta de sóis

Os seus ardentes passos tanto mediam o solo

Como o firmamento

Uma sombra de oliveiras sob os olhos

Murmúrios de água para as mãos

No mar esses olhos flutuavam sempre

E esta rama de loureiro de horizonte a horizonte

Adorno dos sonhos pendentes do céu

Não viste um sorriso fiar uma paisagem

A moçoila rindo com o céu gotejando de suas mãos

Mais sombra me davam as pestanas dela

Que uma alameda sob o triplo peso

De folhas ventos e céus

Não viste entreabrir-se a alvorada

Sobre as neves como uma fronte

Alumiando o sol e as estrelas

E a mão mais clara que a água com seu rumor

Assim me atravessaram desde a manhã à noite

As músicas geladas os dedos de aço

Com cercaduras novas seu rosto não descansava

Já sobre a dália ou sobre a nevada

Já na brisa ou no próprio coração do inverno

E na outra mão o ceptro do estio

E no outro pé o sol do outono

Os olhares carregados de resplendores de oceanos ensolarados

Cruzando o Mediterrâneo os golfinhos saltavam

Nos ares quedavam-se as tartarugas

A moçoila não despertara ainda

A flor era a plenitude dos espaços.

 

 

POEMA

 

Tristemente descansei a minha cabeça

Na sombra que cai do ruído dos teus passos

Voltando à outra margem

Imponente como a noite para te negar

Abandonei as manhãs e as árvores cravadas na minha garganta

Deixei até a estrela que galopava entre os meus ossos

Larguei mesmo o meu corpo

Como o náufrago as barcas

Ou as lembranças quando as marés se vão

E espalham estranhos olhos sobre as orlas do mar

Abandonei o corpo

Como um cobertor para com a mão liberta

Apertar o cerne de uma estrela molhada

Não me ouves sou mais leve que as folhas

Porque me livrei de toda a ramaria

E o ar não consegue aprisionar-me

Nem as águas tampouco me detêm

Não me ouves chegar mais poderoso que a noite

E as portas que ao meu sopro não resistem

E as cidades quietas para que não note as suas presenças

E o bosque entreaberto como a madrugada

Que busca apertar o mundo entre os seus braços

Ave belíssima que no paraíso irá cair

A tua fuga derribou todas as tendas

E eis que os meus braços fecharam as muralhas

E até os ramos se inclinam para te impedir a passagem

Frágil corça deves temer a terra

E o ruído dos teus passos em cima do meu peito

Já se cerraram os cercos

E o peso da minha ansiedade far-te-á cair

Os teus olhos irão fechar-se sobre os meus

E a tua doçura brotará como os chifres novos

E a tua meiguice crescerá como a sombra que me envolve

A cabeça deixei que rodasse

O coração deixei que caísse

Já nada tenho que me assegure que irei alcançar-te

Pois que tens pressa e tremes como a noite

Talvez eu não atinja a outra margem

Porque não tenho mãos que abarquem o espaço

Entre o que está desperto e o que vai morrendo

Nem pés que pesem sobre o esquecimento

De tantos ossos e tantas flores mortas

Talvez eu não alcance a outra margem

Se a última folha já foi por nós lida

E a música entreteceu a luz em que hás-de cair

E os rios te impedem o caminho

E as flores te chamam mas com a minha voz

Rosa imensa chegou a hora de deter-te

O estio ressoa como degelo para os corações

E as madrugadas tremem como árvores ao acordar

 

Todas as saídas estão guardadas

Rosa imensa não irás tombar?


Do livro




José do Carmo Francisco, As buganvílias de Marta na ADECO

 



Passaram já trinta e quatro anos mas tudo permanece igual no recreio da ADECO com as paredes caiadas e os pneus dos meninos em sossego mas por pouco tempo. As buganvílias de Marta são uma afirmação do calendário; o seu esplendor está no coração do mês de Maio prestes a despedir-se do Mundo entre o Dia da Mãe e as primeiras cerejas tão vermelhas como as flores. Aqui, no recanto do recreio dos meninos, só os pneus podem dialogar com a exuberante beleza das buganvílias. Com uma diferença: os pneus precisam de perícia, de velocidade e de destreza mas as flores não precisam de nada; elas já são só por si o maior valor acrescentado à luz da manhã no Jardim Infantil.

Na grande seara de lágrimas e de sangue pisado, de saudade e de distância, as buganvílias de Marta na ADECO são mais que uma imagem e uma memória, são o adubo da nova sementeira que todos os anos se repete no pátio onde os meninos velozes correm ao lado dos velhos pneus. Depois do frio e da chuva no Inverno vem o Sol e o calor da Primavera. Como se fosse também um relógio, o tempo dá a sua luz ao esplendor das buganvílias. É assim como a Música, uma melodia com princípio, meio e fim mas que, mesmo depois do último acorde, não se perde mesmo quando se deixa de ouvir. E continua a cantar, como se fosse um leve sussurro, no coração de cada um de nós. (escrito sobre uma foto de Ana Isabel).


Giovanni Marradi, Nostalgie

 



quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Para um minuto de meditação - 129

 

   Uma viva inteligência de nada serve se não estiver ao serviço de um caráter justo; um relógio não é perfeito quando trabalha rápido, mas sim quando trabalha certo.

 Vauvenargues


Quatro poemas de João Garção

 




SENTIMENTO

 

A água está parada, muito quieta no meio da noite.

E é preciso perguntar-lhe: és água de um rio?

És água dum mar? És água dentro dum copo

sobre uma mesa muito antiga e sonhada?

És água para um cavalo beber? Para um cão se banhar?

Para um homem e uma criança se lavarem ao relento?

Para uma mulher, para um gato, para um lobo?

 

E a água talvez não te responda. Nunca te responda.

Ou te responda tarde de mais. Ou nem sequer te ouça.

 

Mas tu pergunta. Pergunta e espera pela resposta.

Mesmo que os minutos passem entre ti e a água.

E devagar uma silhueta se desloque

e depois se detenha no meio das árvores imóveis.


 

AGUARELA

 

Na minha terra, quando eu era pequeno

havia montanhas altas com bosques e recantos

pelo menos um Oceano com piratas e segredos

e muitas outras coisas que se transfiguravam

 

Os heróis eram altos, atléticos, usavam duas cores

e parece que havia uns outros sobrados da Grande Guerra

 

A velhota gorda que vendia castanhas no largo do Rossio

pertencia a uma misteriosa quadrilha francesa

falava alto, tratava os fregueses pelo nome

aparecia e desaparecia consoante era Inverno ou Verão

 

No dia de Santos o gajo das barbas (que tinha um tesouro escondido)

dava-nos nozes, se lhe batíamos à porta

e havia alguns, corajosos, que batiam

 

Havia um espanhol que era barbeiro

mas as tesouras cantavam em português

 

Os polícias passavam, nas tardes de Primavera

muito suaves, devagarinho, rua do Comércio abaixo

quando não era pela Corredoura acima

 

Pareciam anjos vestidos de azul claro

 

Só muito mais tarde notei que usavam cassetete

 

Como eu gostava da Escola! E ainda por cima

os professores era tudo gente esperta

 

Não havia, que eu soubesse, pessoas infelizes

e os bandidos só faziam serviço no “Tintin”

ou nos filmes (poucos) da televisão

 

Mas as coisas, como nas fitas, parece que às vezes

andam demasiado depressa.

 

Os heróis – os mais velhos morreram –

tinham estado, coitados, com o Milhões na França

e os que eram às cores transformaram-se em futebolistas

com o remate trocado

 

A mulher das castanhas foi um ar que lhe deu:

finou-se com um colapso e era avó de três netos

como ela trabalhadores da fábrica da rolha

 

Os anjos que eram polícias já só andam de carro

e um deles até me ofendeu, um dia, junto a um Bar

 

Alguns dos professores ficaram com orelhas de burro

 

E nesta coisa de crescer, o que mais (juro-vos) me dana

é que agora corto o cabelo num cabeleireiro de homens

que competentemente me afeita (enquanto leio o jornal)

 

com um aparelho que rosna como um rafeiro sem classe.


 

ABECEDÁRIO

 

Vá, não entres aí

Isso é um advérbio de modo

E embora te pareça um particípio passado

é um adjectivo e às vezes um presente.

 

Fica parado à saída: está a chover

Dentro dessa frase quem anda ao sol molha-se muito

É um discurso idiomático e por isso

onde está o prenome é o substantivo.

 

Junta-te ao ponto e vírgula: custa menos

do que escrever com pontinhos nos is

quando as reticencias nos confundem

com exclamações ou verbos no futuro.

 

Os conjuntivos na oração nunca se entendem:

e por isso, dizem, é que os agás são mudos.

 

 

FOTO DE ABRIL

 

O pai chegava tarde…A mãe e os avós

(que o mano era pequeno) estavam sempre comigo.

Então o pai chegava, perguntava da escola

perguntava das coisas que a mãe lhe sussurrava.

 

A escola era a Escola onde eu agora andava.

E a mãe pela manhã falava devagar

arranjava-me o lanche, chamava-lhe merenda

e eu ia no autocarro (sem o mano que tinha)

 

Eu não sabia de anos    só sabia de meses

- o que a mãe me ensinara e que na escola aprendia –

(o mano era pequeno!) eu jogava sozinho.

O pai que vinha tarde não jogava comigo.

 

E o pai que vinha tarde    mesmo se era Domingo

chegou perto da porta na manhã daquele dia.

Havia gente na rua    e gente que gritava

E na televisão     muitos desconhecidos.

 

E o pai depois daquilo     disse-me: anda jogar

Anda jogar meu filho    pois já não há fascismo.

E o pai que vinha tarde jogou comigo à bola

na rua da Amoreira    a rua pequenina

 

E a mãe chorou ao ver-nos    e eu não a entendia

a mãe que era só minha (e do mano que havia)

Eu sabia de meses    mas não sabia de anos

E jogava com o pai    pois já não há fascismo

 

A avó não gritava    Levava-me p’la mão

até ao autocarro    E para a Escolas eu ia

Sozinho ia p’rá Escola (o mano era pequeno…)

- E eu e o pai jogávamos quando eu de lá vinha

 

Jogávamos jogávamos – eu e o pai jogávamos

E o mano (era pequeno!) olhava sentadinho

E a mãe também por vezes nos olhava a jogar

Pois já não há fascismo    Pois já não há fascismo!

 

JG

in “Os versos do Zé Povão”

 

    Portalegre (1968). Poeta, pintor, ensaísta, desportista e professor. Foi guarda-redes profissional na Académica de Coimbra. Licenciado em História da Arte e Mestre em História Contemporânea de Portugal pela Universidade de Coimbra.

   Representado em diversas antologias poéticas/plásticas, proferiu palestras e publicou artigos sobre Educação, Arte, Ética e Política em jornais e revistas da especialidade no país e no estrangeiro. Está traduzido em inglês e espanhol.

   Especialista em teoria artística e arte aplicada, a sua postura poética surrealista vivencia-se mediante um lirismo tracejado pelo humor negro e a visitação da memória dum quotidiano repleto de ironia e liberdade formal. Vive em Luanda, onde é professor na Escola Portuguesa.


Aos confrades, amigos, adeptos e simpatizantes

     Devido a um problema informático de última hora, não nos será possível fazer a postagem desta semana.    Esperando resolvê-lo em breve,...