ALGUNS TEXTOS DE JORGE DE
LIMA ALVES
DA
FOTOGRAFIA
Para ver bem é preciso tempo. É preciso
vagar. É preciso ver e rever. Voltar mais do que uma vez aos mesmos locais é,
muitas vezes, essencial para um fotógrafo.
Dito isto, a essência da fotografia, para
mim, é ser misteriosa, na medida em que o que quer que seja que procure
manifestar, o seu 'objecto' permanece invariavelmente por revelar. O segredo de
qualquer fotografia depende sempre mais de quem a vê do que de quem a tirou.
Enquanto fotógrafo, o que procuro está para
além da fotografia. É algo que não pode ser registado e isso é, precisamente o
que faz o seu valor aos meus olhos. Pois o que queremos e não conseguimos obter
ou lograr - o poder que não temos - é, talvez, o que melhor nos define.
UM
SONHO E MUITAS CANÇÕES (Para John Berger)
Esta noite, sonhei em inglês. Sem dúvida
influenciado por um livro de John Berger que estou a ler no original, sonhei
que estava a ser entrevistado por uma jornalista britânica que, a certa altura,
me perguntava o que é que eu achava da voz e da maneira de cantar do Ian
Curtis. Num inglês impecável, entre muitas outras considerações que não consigo
recordar, afirmei que ele não cantava para as pessoas, nem sequer para si
próprio, mas para procurar libertar a sua alma atormentada, mesmo sabendo que
isso é impossível. Libertá-la de quê? Libertá-la da morte, claro, ou da ideia
da morte, penso eu. É por isso, acrescentei, que naquela forma tão intensa e
complexa de se entregar ao canto havia uma grande parte de revolta e um desejo
de formular algo que nunca fora formulado. Aos meus olhos, pelo menos, havia
nele uma vontade de superação, de si próprio e da própria vida.
No seu livro (Confabulations), John Berger escreve: “The essence of
songs is neither vocal nor cerebral but organic”. No
mesmo parágrafo, diz ainda: “We find ourselves inside a message”. É verdade
para a maior parte dos casos, mas outros cantores, entre os quais Ian Curtis,
vão muito para além da letra que cantam. Eles próprios são a mensagem,
sabendo perfeitamente que a linguagem é demasiado pobre para comunicar o que
sentem e o que são. De resto, muito provavelmente, não sabem bem o que sentem
ou o que são, pelo que só a música e o canto podem exprimir a sua angústia. Como refere Berger: “…songs can express the inner
experience of Being and Becoming”.
Isso
explica, pelo menos em parte, julgo eu, porque é que certas vozes (estou a
pensar na Cesária Évora, por exemplo, que John Berger evoca no seu livro) nos
tocam tanto, nos comovem tanto, mesmo quando não compreendemos a língua em que
se exprimem. Alguns cantores, digo eu, conseguem, por momentos, apoderar-se das
nossas almas! Já agora, deixem-me que vos diga que sou dos que ligam muito
pouco às letras (em geral, muito fracas), preferindo focar-me na musicalidade
das palavras e dos corpos. É no corpo dos cantores, no seu rosto, nos seus
olhos, nos seus gestos e postura, que a música e letra se transforma em arte.
DA LEITURA
Como autor, acho que o mais fascinante de um
livro é, talvez, aquilo que ele me esconde. Por outro lado, o que procuro nos
livros dos outros é, muitas vezes, aquilo que só eu poderia lá encontrar.
Revelações sobre mim próprio, vislumbres do que eu poderia ter sido, restos do
que fui e tinha esquecido. Os livros que mais gozo me dão são, naturalmente,
aqueles que eu gostaria de ter escrito. Aqueles que “escrevo” à medida que os
vou lendo.
ARIZONA
O Arizona tem uma variedade impressionante
de paisagens. Na verdade, as mais extremas que se possam imaginar, entre as
quais esses locais absolutamente surreais que são a Petrified Forest e o
Painted Desert (que se pode observar nesta foto). Dois universos geológicos
espantosos, insólitos, onde não custa nada acreditar que estamos noutro
planeta, numa galáxia bem longínqua. Vejam-se, por exemplo, as árvores
fossilizadas, com as suas estrias loucas, com cores de pedras preciosas. Diz-se
que têm 200 milhões de anos!
*
Ainda lá estava e já sentia saudades.
Saudades do calor e do silêncio, um dos silêncios mais musicais que jamais
conheci. Saudades daqueles céus sem fim, onde há sempre nuvens para acentuar o
azul profundo do céu (um céu tão luminoso que a estrada parece pavimentada de
prata). Saudades de poder conduzir interminavelmente, com a paisagem a
desenrolar-se à minha frente como um filme apaixonante.
O
VENEZIANO COXO
Encontrei-o numa feira de antiguidades que
visitei por acaso, numa terriola da província. Ia a caminho de outra cidade e
parei a meio do caminho para almoçar. Quando procurava um restaurante, reparei
que estava a decorrer uma feira e decidi, depois do almoço, ir espreitar. Na
verdade, era mais uma feira da ladra do que de antiguidades.
Havia de tudo: roupas e livros usados,
quinquilharias, loiças, o costume. Quando me aproximei de uma banca com
velharias, ouvi um senhor barbudo exclamar: “Macacos me mordam se não é um
veneziano coxo!” Nas mãos segurava uma espécie de arlequim de lata, com uma
chave para dar corda nas costas. Como viu que eu o olhava com curiosidade,
lançou-me: “Nunca tinha visto um veneziano coxo ao vivo, conhecia apenas uma
gravura que vi num livro que o meu avô me mostrou quando eu era adolescente.
Estes pequenos autómatos foram feitos em
Veneza no século XVIII, por um relojoeiro chamado Lindopel, se não estou em erro.
Era famoso pelos seus homúnculos mecânicos, muito em voga na altura. Este, a
confirmar-se a minha intuição, ficou conhecido como Veneziano Coxo. É
considerado a sua obra-prima, concebido e realizado já numa idade muito
avançada, por encomenda de um sultão turco cujo nome não me ocorre. Creio que
não haverá mais de meia-dúzia deles no mundo.” O dono da banca, um rapaz
excepcionalmente novo e bem parecido, tinha-se aproximado entretanto e o
potencial cliente perguntou-lhe timidamente: “Está a funcionar? Posso
experimentar? Posso dar-lhe corda?” Perante o aceno afirmativo do feirante, deu
corda ao boneco e soltou-o no chão. Para meu espanto, o boneco deu meia-dúzia
de passos, coxeando, de uma forma engraçada. Tanto o feirante como o barbudo
riram à gargalhada. “É ele, é!”, quase gritou este último radiante. Voltando-se
para o vendedor perguntou com visível ansiedade: “Mas funcionará realmente?”
Sem uma palavra, o outro pegou na marioneta mecânica, deu-lhe corda e soltou-o
no passeio. Para meu grande espanto, desta vez, o arlequim andou normalmente,
sem coxear minimamente. Os dois homens olharam um para o outro com aquele olhar
cúmplice dos iniciados. O barbudo quis saber: “Quanto é que está a pedir por
ele?” “Dois mil euros”, respondeu o outro. “Nem está caro”, suspirou o barbudo,
“infelizmente não posso dispor desse dinheiro neste momento”. Foi nessa altura
que intervim, empolgado pelo entusiasmo deles: “Posso experimentar também?” O
rapaz passou-me o boneco para as mãos e foi a minha vez de, com mil cuidados,
dar-lhe corda e colocá-lo no chão. O robô deu seis passos exactos a coxear
(contei-os), e os outros dois riram a bom rir. O barbudo explicou: “O autómato
foi concebido, a pedido do tal sultão, para só funcionar bem nas mãos de quem
tem um coração puro. Quem não o tiver, só conseguirá fazê-lo coxear”. Ri-me:
“Isso é absurdo”. “Pode não acreditar, mas é assim que reza a lenda”, garantiu
o meu interlocutor. “Este senhor tem razão” acrescentou o vendedor muito sério.
“Poucas pessoas conseguem pô-lo a andar sem que ele coxeie. Não sei explicar
porquê, mas é assim, como pôde verificar”.
Fosse como fosse, o brinquedo era lindo,
estava em muito bom estado e eu nunca tinha possuído qualquer objecto do século
XVIII. Por isso, perdi a cabeça e comprei-o. Ainda o tenho, está ali na
estante, em posição de destaque para mostrar aos amigos. Uma coisa é certa: até
hoje, nunca nenhum deles conseguiu pô-lo a caminhar direitinho, como fez o
rapaz que mo vendeu.
“LE GANT ROUGE”
Edmond Rostand (na foto) é sobretudo
recordado por «Cyrano de Bergerac», uma genial peça de teatro que já foi
adaptada ao cinema várias vezes. Agora, mais de um século depois de ter sido
escrita, anuncia-se em França o lançamento de uma outra sua peça, escrita aos
20 anos, que permanecia inédita. Intitulada «Le Gant Rouge» («A Luva Vermelha»)
a obra só foi levada à cena (em 1888) porque o seu autor custeou as despesas.
Curiosamente, em 1903, quando já era um autor de sucesso, Rostand voltou a
pagar ao mesmo director teatral, mas desta vez para que a peça não fosse
reposta, já que ficara traumatizado com a ferocidade de crítica na altura da
estreia. «Le Gant Rouge» será publicado, no próximo dia 10, numa edição que
inclui uma selecção de cartas que o escritor enviou à sua noiva nessa altura.
NA
MORTE DE ALAN SILLITOE
Morreu Alan Sillitoe. O nome não deve dizer
grande coisa às gerações mais novas, mas quem
gosta verdadeiramente de literatura, sabe que ele foi uma
figura incontornável nos anos 50 e 60.
A fama deveu-a essencialmente a dois
romances escritos numa linguagem crua e dura em ruptura com a cultura dominante
da época em que foram escritos: Sábado à Noite, Domingo de
Manhã (1958) e A Solidão de um Corredor de Fundo (1959).
Mesmo se detestava a etiqueta, Sillitoe fez
parte dos chamados «angry young men», uma geração de intelectuais britânicos,
como John Osborne e Kingsley Amis, cuja rebeldia e espírito crítico marcaram
toda uma geração de europeus. A minha dívida para com todos eles é muito
grande.
DA
CULTURA
Cada
vez mais, a cultura de que falam os jornais não passa de uma feira de vaidades.
A verdadeira cultura é clandestina. É uma resistência heroica à vaidade dos
outros. É uma luta de todos os instantes, contra nós próprios e a ideia da
morte. A verdadeira cultura é aquilo que nos transforma em nós próprios a cada
instante. Não há nada menos fútil, nem mais distante da cultura institucional.
*
Jorge Lima Alves
nasceu no ex-Congo Belga, filho de emigrantes portugueses. Entre 1969 e 1976
viveu em França, onde estudou, trabalhou e publicou o seu primeiro livro
(Selles, 1975). Jornalista desde sempre, colaborou com inúmeros jornais e
revistas, tanto em Portugal como no estrangeiro, sempre na área da Cultura.
É igualmente tradutor e autor de livros de poesia, teatro, ficção e
ensaio, tendo também publicado vários livros de viagem onde a fotografia ocupa
um lugar destacado.
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