quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Antologia

 

ALGUNS TEXTOS DE JORGE DE LIMA ALVES




DA FOTOGRAFIA

   Para ver bem é preciso tempo. É preciso vagar. É preciso ver e rever. Voltar mais do que uma vez aos mesmos locais é, muitas vezes, essencial para um fotógrafo.

   Dito isto, a essência da fotografia, para mim, é ser misteriosa, na medida em que o que quer que seja que procure manifestar, o seu 'objecto' permanece invariavelmente por revelar. O segredo de qualquer fotografia depende sempre mais de quem a vê do que de quem a tirou.

   Enquanto fotógrafo, o que procuro está para além da fotografia. É algo que não pode ser registado e isso é, precisamente o que faz o seu valor aos meus olhos. Pois o que queremos e não conseguimos obter ou lograr - o poder que não temos - é, talvez, o que melhor nos define.


UM SONHO E MUITAS CANÇÕES (Para John Berger)

   Esta noite, sonhei em inglês. Sem dúvida influenciado por um livro de John Berger que estou a ler no original, sonhei que estava a ser entrevistado por uma jornalista britânica que, a certa altura, me perguntava o que é que eu achava da voz e da maneira de cantar do Ian Curtis. Num inglês impecável, entre muitas outras considerações que não consigo recordar, afirmei que ele não cantava para as pessoas, nem sequer para si próprio, mas para procurar libertar a sua alma atormentada, mesmo sabendo que isso é impossível. Libertá-la de quê? Libertá-la da morte, claro, ou da ideia da morte, penso eu. É por isso, acrescentei, que naquela forma tão intensa e complexa de se entregar ao canto havia uma grande parte de revolta e um desejo de formular algo que nunca fora formulado. Aos meus olhos, pelo menos, havia nele uma vontade de superação, de si próprio e da própria vida.

   No seu livro (Confabulations), John Berger escreve: “The essence of songs is neither vocal nor cerebral but organic”. No mesmo parágrafo, diz ainda: “We find ourselves inside a message”. É verdade para a maior parte dos casos, mas outros cantores, entre os quais Ian Curtis, vão muito para além da letra que cantam. Eles próprios são a mensagem, sabendo perfeitamente que a linguagem é demasiado pobre para comunicar o que sentem e o que são. De resto, muito provavelmente, não sabem bem o que sentem ou o que são, pelo que só a música e o canto podem exprimir a sua angústia. Como refere Berger: “…songs can express the inner experience of Being and Becoming”.

   Isso explica, pelo menos em parte, julgo eu, porque é que certas vozes (estou a pensar na Cesária Évora, por exemplo, que John Berger evoca no seu livro) nos tocam tanto, nos comovem tanto, mesmo quando não compreendemos a língua em que se exprimem. Alguns cantores, digo eu, conseguem, por momentos, apoderar-se das nossas almas! Já agora, deixem-me que vos diga que sou dos que ligam muito pouco às letras (em geral, muito fracas), preferindo focar-me na musicalidade das palavras e dos corpos. É no corpo dos cantores, no seu rosto, nos seus olhos, nos seus gestos e postura, que a música e letra se transforma em arte.


DA LEITURA

   Como autor, acho que o mais fascinante de um livro é, talvez, aquilo que ele me esconde. Por outro lado, o que procuro nos livros dos outros é, muitas vezes, aquilo que só eu poderia lá encontrar. Revelações sobre mim próprio, vislumbres do que eu poderia ter sido, restos do que fui e tinha esquecido. Os livros que mais gozo me dão são, naturalmente, aqueles que eu gostaria de ter escrito. Aqueles que “escrevo” à medida que os vou lendo.


ARIZONA


   O Arizona tem uma variedade impressionante de paisagens. Na verdade, as mais extremas que se possam imaginar, entre as quais esses locais absolutamente surreais que são a Petrified Forest e o Painted Desert (que se pode observar nesta foto). Dois universos geológicos espantosos, insólitos, onde não custa nada acreditar que estamos noutro planeta, numa galáxia bem longínqua. Vejam-se, por exemplo, as árvores fossilizadas, com as suas estrias loucas, com cores de pedras preciosas. Diz-se que têm 200 milhões de anos!

*

   Ainda lá estava e já sentia saudades. Saudades do calor e do silêncio, um dos silêncios mais musicais que jamais conheci. Saudades daqueles céus sem fim, onde há sempre nuvens para acentuar o azul profundo do céu (um céu tão luminoso que a estrada parece pavimentada de prata). Saudades de poder conduzir interminavelmente, com a paisagem a desenrolar-se à minha frente como um filme apaixonante.


O VENEZIANO COXO

   Encontrei-o numa feira de antiguidades que visitei por acaso, numa terriola da província. Ia a caminho de outra cidade e parei a meio do caminho para almoçar. Quando procurava um restaurante, reparei que estava a decorrer uma feira e decidi, depois do almoço, ir espreitar. Na verdade, era mais uma feira da ladra do que de antiguidades.    

   Havia de tudo: roupas e livros usados, quinquilharias, loiças, o costume. Quando me aproximei de uma banca com velharias, ouvi um senhor barbudo exclamar: “Macacos me mordam se não é um veneziano coxo!” Nas mãos segurava uma espécie de arlequim de lata, com uma chave para dar corda nas costas. Como viu que eu o olhava com curiosidade, lançou-me: “Nunca tinha visto um veneziano coxo ao vivo, conhecia apenas uma gravura que vi num livro que o meu avô me mostrou quando eu era adolescente.    

   Estes pequenos autómatos foram feitos em Veneza no século XVIII, por um relojoeiro chamado Lindopel, se não estou em erro. Era famoso pelos seus homúnculos mecânicos, muito em voga na altura. Este, a confirmar-se a minha intuição, ficou conhecido como Veneziano Coxo. É considerado a sua obra-prima, concebido e realizado já numa idade muito avançada, por encomenda de um sultão turco cujo nome não me ocorre. Creio que não haverá mais de meia-dúzia deles no mundo.” O dono da banca, um rapaz excepcionalmente novo e bem parecido, tinha-se aproximado entretanto e o potencial cliente perguntou-lhe timidamente: “Está a funcionar? Posso experimentar? Posso dar-lhe corda?” Perante o aceno afirmativo do feirante, deu corda ao boneco e soltou-o no chão. Para meu espanto, o boneco deu meia-dúzia de passos, coxeando, de uma forma engraçada. Tanto o feirante como o barbudo riram à gargalhada. “É ele, é!”, quase gritou este último radiante. Voltando-se para o vendedor perguntou com visível ansiedade: “Mas funcionará realmente?” Sem uma palavra, o outro pegou na marioneta mecânica, deu-lhe corda e soltou-o no passeio. Para meu grande espanto, desta vez, o arlequim andou normalmente, sem coxear minimamente. Os dois homens olharam um para o outro com aquele olhar cúmplice dos iniciados. O barbudo quis saber: “Quanto é que está a pedir por ele?” “Dois mil euros”, respondeu o outro. “Nem está caro”, suspirou o barbudo, “infelizmente não posso dispor desse dinheiro neste momento”. Foi nessa altura que intervim, empolgado pelo entusiasmo deles: “Posso experimentar também?” O rapaz passou-me o boneco para as mãos e foi a minha vez de, com mil cuidados, dar-lhe corda e colocá-lo no chão. O robô deu seis passos exactos a coxear (contei-os), e os outros dois riram a bom rir. O barbudo explicou: “O autómato foi concebido, a pedido do tal sultão, para só funcionar bem nas mãos de quem tem um coração puro. Quem não o tiver, só conseguirá fazê-lo coxear”. Ri-me: “Isso é absurdo”. “Pode não acreditar, mas é assim que reza a lenda”, garantiu o meu interlocutor. “Este senhor tem razão” acrescentou o vendedor muito sério. “Poucas pessoas conseguem pô-lo a andar sem que ele coxeie. Não sei explicar porquê, mas é assim, como pôde verificar”.

   Fosse como fosse, o brinquedo era lindo, estava em muito bom estado e eu nunca tinha possuído qualquer objecto do século XVIII. Por isso, perdi a cabeça e comprei-o. Ainda o tenho, está ali na estante, em posição de destaque para mostrar aos amigos. Uma coisa é certa: até hoje, nunca nenhum deles conseguiu pô-lo a caminhar direitinho, como fez o rapaz que mo vendeu.

 

 

“LE GANT ROUGE”



   Edmond Rostand (na foto) é sobretudo recordado por «Cyrano de Bergerac», uma genial peça de teatro que já foi adaptada ao cinema várias vezes. Agora, mais de um século depois de ter sido escrita, anuncia-se em França o lançamento de uma outra sua peça, escrita aos 20 anos, que permanecia inédita. Intitulada «Le Gant Rouge» («A Luva Vermelha») a obra só foi levada à cena (em 1888) porque o seu autor custeou as despesas. Curiosamente, em 1903, quando já era um autor de sucesso, Rostand voltou a pagar ao mesmo director teatral, mas desta vez para que a peça não fosse reposta, já que ficara traumatizado com a ferocidade de crítica na altura da estreia. «Le Gant Rouge» será publicado, no próximo dia 10, numa edição que inclui uma selecção de cartas que o escritor enviou à sua noiva nessa altura.


NA MORTE DE ALAN SILLITOE

   Morreu Alan Sillitoe. O nome não deve dizer grande coisa às gerações mais novas, mas quem gosta verdadeiramente de literatura, sabe que ele foi uma figura incontornável nos anos 50 e 60.

   A fama deveu-a essencialmente a dois romances escritos numa linguagem crua e dura em ruptura com a cultura dominante da época em que foram escritos: Sábado à Noite, Domingo de Manhã (1958) e A Solidão de um Corredor de Fundo (1959).

   Mesmo se detestava a etiqueta, Sillitoe fez parte dos chamados «angry young men», uma geração de intelectuais britânicos, como John Osborne e Kingsley Amis, cuja rebeldia e espírito crítico marcaram toda uma geração de europeus. A minha dívida para com todos eles é muito grande.


DA CULTURA

   Cada vez mais, a cultura de que falam os jornais não passa de uma feira de vaidades. A verdadeira cultura é clandestina. É uma resistência heroica à vaidade dos outros. É uma luta de todos os instantes, contra nós próprios e a ideia da morte. A verdadeira cultura é aquilo que nos transforma em nós próprios a cada instante. Não há nada menos fútil, nem mais distante da cultura institucional.

*

Jorge Lima Alves nasceu no ex-Congo Belga, filho de emigrantes portugueses. Entre 1969 e 1976 viveu em França, onde estudou, trabalhou e publicou o seu primeiro livro (Selles, 1975). Jornalista desde sempre, colaborou com inúmeros jornais e revistas, tanto em Portugal como no estrangeiro, sempre na área da Cultura. É igualmente tradutor e autor de livros de poesia, teatro, ficção e ensaio, tendo também publicado vários livros de viagem onde a fotografia ocupa um lugar destacado.


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