segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Para um minuto de meditação - 30

 

“(…) O senhor que está de secretário de Estado refere no âmbito da notícia que “Não estamos na esfera da opinião. O currículo é uma fonte de resposta a problemas que existem e obedece a questões de ordem científica”. Sim, é que nem o Estado Novo a isto chegou. Proibir opiniões com base numa ideologia e impô-la como ciência, é um traço distintivo de um Estado totalitário. Foi precisamente através deste método, baseados numa pseudo-cientificidade, que o nazismo, o comunismo ou o fascismo construíram os seus regimes, obtendo através de uma “cientificidade” a explicação da raça, da economia e da história, suprimindo de caminho a integridade moral dos seus cidadãos.”

                                                                     Tomás Cabral Anunciação

“Num país sufocado pela corrupção e pela arrogância dos mais altos escalões do Estado, que visam claramente a ditadura tal como em Cuba ou na Venezuela, é urgente que as vozes não se calem e as pessoas não se verguem a este sistema indigno e a este regime adversário da liberdade, da lisura e da democracia que temos o direito de usufruir.”

                                                                            Rodrigo de Matos 


Poemas de Jean-Paul Mestas (tradução de Cristino Cortes)

 

Virgílio                                                                                

 

Cruzamo-nos

de dia e de noite.

O nevoeiro invade as ruas

os oráculos caem do alto.

 

Retoma um corpo

diverte-se

a anotar as terras semeadas

onde os trogloditas preguiçam

e as melancolias cabeceiam.

 


Miguel Barbosa                                                                         

                                    Para a Fernanda

 

O mais belo dos percursos

Lisboa

              heroína adulada

cujo fado

              abre sobre um planetário

por mim ornamentado de cores

provindas dos frutos do amor.

 

Eu sei que jamais é demasiado tarde

para a flauta encantada

nos subúrbios nocturnos

onde as ilusões

surpreendem ou libertam.

 

Aqui levanta-se o dia

               no apelo dos clarins.

 

 

Florbela Espanca

 

                                            

Que caminho seguias tu?

 

Uma lágrima talvez o dissesse

ou o reforço das clematites;

 

ora tu preferias viver

em florescentes lassidões;

 

num último pestanejar

a Primavera tomou-te pelo braço

 

 

E a ausência ficou ciumenta.

 

 

Friedrich Holderlin

 

                                            

Sê estóico no presente

encontra a poesia

uma fenda entre os taludes

que a geometria embotou.

 

A paz descende das marchas

espertezas dum ciclo ensimesmado

perseguido por suas manias.

 

A indulgência não mais contende

com pífaros nem realejos,

 

ela já semeou as suas parábolas.


João Garção, Um conto inquietante

 

ns

 

A CIDADE-JARDIM

 

            Encostou-se à porta de entrada e fechou-a, recuando lentamente. Para melhor se concentrar, olhou em frente para as escadas envoltas em penumbra e escutou o ruído dos motores e das vozes que, poucos metros atrás de si, ora se aproximavam ora se afastavam. Não se ouviam gritos ou correrias. Manteve-se imóvel e em silêncio por mais alguns momentos, após o que recriou mentalmente o som do breve grito que antecedera a queda. Achou muito mais desagradável o som do corpo a embater repetidamente contra a madeira das escadas e por isso afastou daí o pensamento. Aproximou-se então do cimo das escadas e perscrutou o corredor situado ao fundo destas. Pareceu-lhe que estava enroscada sobre si própria, em posição fetal. Mas, para ver melhor, teria que abrir a porta da rua ou acender a luz do hall. Respirou fundo e retrocedeu para o seu quarto. Limpou o suor da fronte, com toalhetes húmidos e sentou-se à secretária. Pegou no livro que estava sobre ela, abriu-o mas levantou-se quase imediatamente e olhou-se de cima abaixo ao espelho do guarda-fatos. Sorriu-se, como para se encorajar. Pôs desodorizante, perfumou-se e mudou de camisa, escolhendo uma Triple Marfel branca, de excelente linho. Olhou mais uma vez para o fundo das escadas antes de sair de casa, fechando rápida mas suavemente a porta.

            Eram onze e meia. Talvez fosse já almoçar. Logo veria, não estava com grande vontade de andar de um lado para o outro para saber qual era a cantina que estava de serviço. Passou num quiosque e observou as primeiras páginas dos jornais expostos. Comprou um semanário cuja revista trazia uma reportagem sobre Frank Lloyd Wright. Folheou-a enquanto caminhava. As mesmas imagens de sempre, a Casa da Cascata, o Museu Guggenheim, as Fábricas Johnson. E a já habitual referência, curta, a Boadacre City como a inevitável utopia do génio. Entretanto, gritaram-lhe o seu nome, pelo que se voltou.

            Um colega cumprimentou-o, perguntando-lhe se ia almoçar. Caminharam juntos em direcção à cantina de serviço, debatendo os problemas com que ambos se confrontavam nesse final de curso.

      Ebenezer Howard - Garden-Cities of Tomorrow - London-1946”. “- Mas é reedição. Já estou a relê-lo...aproveito as noites, que está mais fresco...

            Passou todo o almoço incomodado por esse colega lhe ter recordado que o professor da disciplina de ‘Seminário III’ certamente não iria gostar do tema que escolhera para o trabalho final. De certeza que iria ter problemas!... Esta indisposição, tanto maior quanto mais reflectia no assunto, transferiu-se para a questão da sua Senhoria, ao pensar no que sucedera nessa manhã. E se ela, afinal, ainda estivesse viva e tivesse conseguido pedir ajuda?... Não, era pouco provável. A queda fora grande e ela já tinha uma idade considerável. Só com muito azar é que ainda estaria a respirar...

            Olhou o relógio: um quarto para a uma. Boa hora para ir para casa e telefonar para o 112. Mas só depois de tomar café, pois sem a bica depois do almoço sentia que quase não conseguia raciocinar correctamente. Entregaram os tabuleiros e saíram em direcção à esplanada. Apesar de desejar estar mais tempo sentado sob o guarda-sol, sobretudo por antever a subida penosa que o aguardava devido ao calor sufocante desse dia, despediu-se do colega.

            Quando abriu a porta da sua casa, sentiu logo quão fresca ela estava, em contraste com o calor do exterior. No entanto, aquela frescura não lhe agradou tanto quanto habitualmente. Era como se aquele corpo estendido no andar de baixo a maculasse e ele respirasse, igualmente, o odor da morte. Não, decididamente, não lhe agradou mesmo nada.

            Respirou lentamente, o mínimo possível e procurou escutar qualquer ruído que proviesse da cave. Nada. Assim sendo, acendeu o isqueiro e iniciou a descida.

            Fruta, peixe e pão estavam espalhados pelas escadas. Poisou os pés com o máximo cuidado, não fosse escorregar nalguma laranja e desequilibrar-se, caindo sobre o vulto que se encontrava lá ao fundo. Afastou com o pé um saco de rede onde ainda se encontravam algumas verduras e aproximou-se do corpo inerte. Estava morta, evidentemente. E, afinal, não estava em posição fetal, mas deitada de bruços, com os braços sob o corpo e uma das pernas encolhida… Ao subir novamente as escadas, voltou-se ainda. “ - ‘Poisson d’Avril’ em pleno Agosto” - pensou com um sorriso nos lábios pois, caprichosamente, um carapau tinha-lhe aterrado nas costas. Depois de fazer o telefonema, voltou às escadas e apanhou uma maçã, que comeu com deleite enquanto esperava.

            “- E agora, o que é que está a pensar fazer? Arranja outra casa?” - perguntou-lhe o polícia, à despedida, após cumpridas as inevitáveis formalidades.

            “- Não sei bem, fui apanhado de surpresa por este infeliz acidente, como compreende. Quero ver se acabo o curso no próximo mês... Se me ponho agora com mudanças de casa, perco um tempo precioso. Está a ver a minha situação...” - respondeu, procurando fazer-se compreender e mostrando-se injustamente tratado pelo destino, tendo recebido a anuência do agente com um sentido “pois é, é uma chatice...”.

            Nessa noite, enquanto lia uma obra sobre a ‘Cidade Oceano’ de Kiyonori Kikutake, não conseguiu deixar de constatar que as torres da maqueta apresentadas numa fotografia eram muito, mesmo muito parecidas com os rolos que a sua Senhoria utilizava no cabelo, nos domingos de manhã, quando o despertava para lhe perguntar se desejava tomar o pequeno-almoço…

 

                                                JG

                                              in “Contos do centro do meio”, Coimbra 86

Barclay James Harvest, The Poet & After the Day

 



quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Para um minuto de meditação - 29


ns

 

  “Quando Costa subiu ao Poder mercê de uma jogada política rasteira, referiu-se que ele era muito mais perigoso que Sócrates, porque enquanto este de acordo com os analistas seria apenas um alegado corrupto, um alegado ladrão visando o luxo e o bem-estar através de um apego sôfrego ao dinheiro, Costa move-se pelo desejo infrene de mando, um desejo absoluto e imperioso. O que é mais nefasto, pois se as alegadas acções do primeiro se limitam a levar-nos bens materiais, as do segundo levam-nos bens políticos, o que coloca sérios riscos à Democracia, que tende a exaurir-se pouco a pouco”

                                                                               Manuel Carreira Viana

 

  O Costa entrou nisto aos vinte anos, a sua vida tem sido a política mesquinha, a intriga, e a ganância do poder. Não respeita regras, nem tem princípios. O seu carácter viscoso permitiu-lhe dar uma facada nas costas de Seguro, mas apenas quando teve a certeza de que os outros quarenta que tinham ficado na gruta quando Sócrates foi caçado, o acompanhavam.

    Não fez uma única reforma até hoje, mas mais que um mau político, é um ser humano miserável.”

                                                                               Miguel Faria de Sampaio

                                                                         

   “Não há uma ideia, uma orientação estratégica, sequer uma tendência ideológica na acção do Dr. Costa. Desenganem-se aqueles que acham que o Dr. Costa é um perigoso radical de esquerda que se vendeu aos comunistas do PCP e do Bloco; o Dr. Costa é um homem sem ideologia, entregue à sua sede de poder. É perigoso, mas não é por ser de esquerda, é por ser o Dr. Costa.”

                                                                                     Pedro Gomes Sanches 

In memoriam de Manuel Hermínio Monteiro - Um poema seu

 




António Maria Lisboa

 

Senhora mãe é uma escadaria de costas para o poente

as mãos no peito, “as mamas na varanda”.

No passe-vite, nos brinquedos do menino

na fome do menino

Senhora mãe vai esmigalhando deus e o diabo

pela tarde fora

pelo silêncio adentro.

 

Um pardal poisa em frente ao sol do poema

vem do Norte

vem de trás do tempo

na Senhora mãe o pardal goteja

a loucura inominada

do nome das casas

um pardal de erva submete a primavera

em Novembro, Senhora mãe,

um pardal sem choro semeia o vendaval

                 parte vidros

                 sorri atrás da porta

                 chupa-te os dedos Senhora mãe

aniquila no teu vestido vermelho

o teu palácio apocalíptico

o teu silêncio de mina

as serpentinas de arame

nos teus olhos de escadaria

batendo maternalmente no poema

que um poema

é maior que um filho penteado.


Enviado a NS em Dezembro de 80, foi por este dado a lume posteriormente na Página Literária do semanário alentejano “A Rabeca”, que orientava.

José do Carmo Francisco, Crónicas do Tejo

 


As pedras e os sinais – dissertação para Ana, Ian, Thomas e Lucas

    Sobral Fernando é uma localidade que fica na margem direita do Rio Ocreza, afluente do Tejo. As pedras estão ali há muitos milhões de anos, desde o tempo em que as placas tectónicas não se deslocavam com fragor para criar uma espécie de «albarda» silenciosa que testemunha mas nada diz nem pode dizer. A memória mais recente aponta para os garimpeiros do Império Romano que por aqui procuraram no seu tempo as palhetas do precioso metal, lavando de modo paciente e determinado as pedras do rio nas quais se desenhavam hipótese de haver ouro. Hoje apenas alguns pescadores procuram não o ouro mas o peixe do rio capaz de entrar na mais saborosa caldeirada de Sobral Fernando e arredores. Deste lado é o limite do concelho de Proença a Nova; do outro lado temos já o concelho de Vila Velha de Ródão. Hoje como na Idade Média são as linhas de água que separam os municípios. Usamos computador, temos telemóvel, temos «E mail», a tecnologia mais moderna está connosco no dia-a-dia mas as divisões do território ainda são as mesmas do passado. O passeio pelo Geoparque do Tejo leva-nos a uma viagem no Tempo, não o dos segundos da pressa da cidade mas o dos milhões de anos da memória no campo, entre pedras e árvores. Sem esquecer os grifos que vão planando sobre o grupo de caminheiros atento às palavras de Marta e às fotografias de Sónia. Temos aqui os três mundos – animal, vegetal e mineral. É nesta harmonia que assenta a plenitude dos momentos felizes da caminhada. No intervalo da pressa da cidade temos a paz do campo e o som da água nas Portas de Almourão. E mesmo no cansaço os sinais são de serenidade; não é todos os dias que se ouve a voz da Terra.   

                                                                                    José do Carmo Francisco

Amália, Tão longe daqui (Arlindo Carvalho)

 



segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Para um minuto de meditação - 28

 

ns


 “Porque esta história de que existe ensino público, livre e gratuito em Portugal, não é verdadeira. Ele é público e gratuito porque é pago com os impostos do trabalho dos pais.

  Agora o problema é que os pais têm de trabalhar todo o dia e deixar os filhos ao cuidado dos professores, mas têm pouco direito de voto. Os pais continuam a ter pouca intervenção no percurso educativo dos seus próprios filhos.

  É triste que tenhamos de trabalhar o dia todo e deixar os nossos filhos com outros pais e não possamos ter direito de opinião. Afinal somos nós que pagamos as escolas, nós temos de ter também direitos.

  Aos pais é dado o direito de pagar faturas, mas não é dado o direito de escolher o melhor percurso educativo para os seus filhos.”

                                                                                                     Edgar Clara


Dois poemas de António Cândido Franco

 




GONÇALO DUARTE (1935-1986)

PROCURA-SE


Gonçalo Duarte

papagaio cinzento

com cauda bem vermelha

calção branco

pescoço sujo

mas acetinado

fugiu no sábado dia quatro

de maio

 

é sociável

tem olhar descansado

mas não dá a mão a ninguém

usa a destra para pintar

e a esquerda para agarrar

 

deve andar entre a Mouraria

o alto da igreja de São Mamede

e a frontaria

de Belas Artes

 

nos dias de Sol

gosta de se alcandorar nas partes altas

e nas noites de névoa e cinza

nas ravinas que dão para o rio

 

canta de madrugada

mas passa os dias no mesmo sítio

com a mãozinha levantada

pincel firme

a pintar o naufrágio de  Alcácer Quibir

 

agradece-se a quem souber do seu paradeiro

que contacte o restaurante Beira Gare

na esquina da estação do Rossio

 

 

António Cândido Franco

11 Abril de 2015

 

 

CAIXA DE VESTIR PARA DRAGÃO

DE CRUZEIRO SEIXAS

 

 

 

E tardou de mais ao nardo

na exigente nave fora e fartou-se

 

Tudo deu até margaça do Norte

foi sina possante nas Astúrias

 

Domara ao longo da sala um único verso

baliu raposa num revólver por púlpito na praça

 

Faro, faroleiro, o que está lá onde o mapa salga

 

De laço na aorta ia adiante

poço de ar com que fui ao Bei

 

Adonai dei e desandei

ardem-me tarte e boi-touro em meia hora

 

Tâmara de Ninive ó lãs ardentes

 

Ele dá-se ao desquite do idílio que se abana

na erva que passa

 

Cal será e não destapará para já o cabeção


António Cândido Franco

 

10/4/2016


Entrevista a Oleg Almeida

 

    Entrevista com o tradutor Oleg Andréev Almeida

     Dada ao “Digestivo Cultural”


    Tradutor, poeta e ensaísta, Oleg Andréev Almeida nasceu em 1971 na Bielorrússia (uma das repúblicas ocidentais da então União Soviética), estudou as letras francesas na Escola Central das Línguas Estrangeiras em Moscou (1989-1992). Mudou-se para o Brasil em julho de 2005, vindo a naturalizar-se Brasileiro em 2011.
 
    Lançou seu primeiro poema em português, “Pouco importa”, pela Câmara Brasileira de Jovens Escritores / CBJE em 2007, e seu primeiro livro, romance poético “Memórias dum hiperbóreo”, pela Editora 7 Letras em 2008. Publicou os livros de poesia “Quarta-feira de Cinzas e outros poemas” (2011) e “Antologia cosmopolita” (2013) pela Editora 7 Letras (Rio de Janeiro); “Desenhos a lápis” (2018) pela Editora Scortecci (São Paulo).

   Traduziu do francês “O esplim de Paris: pequenos poemas em prosa, e outros escritos” de Charles Baudelaire (Martin Claret: São Paulo, 2010), “Os cantos de Bilítis” de Pierre Louÿs (Ibis Libris: Rio de Janeiro, 2011), “O eterno Adão” de Jules Verne e “Um outro mundo” de Joseph Henry Rosny Aîné (ambos na coletânea “Das estrelas ao oceano: Contos de ficção científica”. Martin Claret: São Paulo, 2019).

   Traduziu do russo, entre outros, “Canções alexandrinas” de Mikhail Kuzmin (Arte Brasil: São Paulo, 2011); Para a Martin Claret traduziu as seguintes obras de Dostoiéviski, “Diário do subsolo”; “O jogador”; “Crime e castigo”; “Memórias da Casa dos mortos”; “Humilhados e ofendidos”; “Noites brancas” e “O eterno marido”. De Tolstói traduziu: “A morte de Ivan Ilitch e outras histórias [Sonata a Kreutzer e O padre Sêrgui]” e “Anna Karênina”. Também traduziu “Pequenas tragédias” de Alexandr Púchkin. Elaborou, por encomenda da Editora Martin Claret, a coletânea de contos clássicos russos, publicados em 3 volumes.

   Tem como livros prediletos: Marília de Dirceu de Tomás Antônio Gonzaga, O Romanceiro Cigano de Federico García Lorca, As Flores do Mal de Charles Baudelaire, Sonetos de William Shakespeare, Mamãe e a Bomba de Nêutron de Evguêni Yevtuchenko, Pequenas tragédias de Alexandr Púchkin entre muitos outros.    

   Seu lema de vida é: Vivere militare est (Sêneca).

*

JARDEL: Qual sua trajetória para tornar-se tradutor profissional?

OLEG ALMEIDA: Formado em Letras, aos 21 anos de idade, já vislumbrava uma possível carreira tradutória, ainda mais que a escola russa de tradução era considerada, inclusive pelos seus desafetos, uma das melhores do mundo. Na década de 90, quando fiquei empregado no setor comercial, deixei o antigo sonho em segundo plano; aliás, traduzi alguns textos técnicos para as empresas com que estava colaborando. Feitas as contas, só me dediquei profissionalmente à tradução literária aqui no Brasil. A editora Martin Claret, que me tem contratado desde 2009, facilitou muito essa escolha.

JARDEL: Você tem feito traduções do russo para o português, enfrentando autores como Dostoiévski, Tolstói, Púchkin, dentre outros. Também uma coleção de contos russos, com variados autores. Fale um pouco sobre essa tarefa homérica, que inclui a tradução de volumes densos como Anna Karênina, de Tolstói.

OLEG ALMEIDA: “Tarefa homérica”? Essa é ótima! Realmente, a tradução de Anna Karênina, a mais recente e, talvez, a melhor que fiz até hoje, acabou exigindo 14 meses de trabalho árduo; Crime e castigo foi traduzido em cerca de um ano. Cheguei também a participar, vez por outra, de vários projetos ao mesmo tempo, lamentando então que o dia tivesse apenas 24 horas. Imagine alguém que traduz Anna Karênina pela manhã e revisa uma nova versão de Notre-Dame de Paris à tarde... E isso sem contar meus escritos autorais, como poemas, ensaios, artigos de feitio acadêmico, etc.


JARDEL: Já existem traduções dos autores russos citados acima e que você também traduziu. Você vê alguma diferença particular entre a tradução que você faz e as já existentes?

OLEG ALMEIDA: De fato, as mais diversas obras russas foram transpostas para o português, em particular pelos “magnificent three” (Boris Schnaiderman, Paulo Bezerra e Rubens Figueiredo), mas, infelizmente, não estou em condição de comentar a respeito delas. Jamais leio as traduções dos concorrentes diretos para não me submeter, nem que seja por mero acaso, a nenhuma influência sua. Quanto aos critérios gerais que norteiam meu próprio trabalho, são simples: fidelidade e autenticidade. Há quem interprete, se não reescreva, o autor traduzido e quem dialogue, se não polemize, com ele, mas esse não é meu costume. Sempre me atenho aos princípios da “vertente tecnologicamente precisa”, a qual se instaurou na União Soviética, nos anos 1920-30, e depois foi suplantada, tanto naquele país como no mundo inteiro, pela “vertente criativa”, mais livre em tratar o conteúdo e, máxime, a forma dos textos literários.

JARDEL: Segundo Henti Meschonnic, “a tradução é o melhor posto de observação sobre as estratégias de linguagem”. Sendo assim, traduzindo Tolstói e Dostoiévski você adentra profundamente o universo da linguagem desses autores. Você poderia comentar sobre a diferença estética entre eles?

OLEG ALMEIDA: A escrita de Dostoiévski é prolixa, caótica, não raro desprovida de qualquer harmonia: dá para ver que seus famosos romances foram compostos às pressas, literalmente “ao correr da pena”, com pouca lapidação estilística. Não se deve esquecer, nem por um minuto, que Dostoiévski se viu, durante a vida toda, perseguido pelos credores e pressionado pelos editores inescrupulosos, tendo de entregar manuscritos “para ontem” e de resgatar os pertences de sua família que penhorava sistematicamente a fim de suprir as necessidades básicas dela; caso contrário, surge a tentação de “polir” suas obras, de remodelá-las naquele português correto e bonito de Machado de Assis. No que concerne a Tolstói, digamos que sua prosa se encontra sob um forte influxo da língua francesa, o que não é de admirar, pois ele a usava desde criança com plena desenvoltura, a par da maioria dos fidalgos russos de sua época. Ao analisar o original de Anna Karênina, percebi que traduzir esse livro significaria estabelecer algum tipo de equilíbrio razoável entre os três idiomas patentes ou subentendidos nele: o russo convencional do século XIX, o francês culto, falado pela elite do Império Russo, e o português castiço, por um lado relativamente próximo do contexto histórico em que o romance de Tolstói foi concebido, mas, por outro lado, nem tão próximo assim, para não espantar o futuro leitor brasileiro. Como está vendo, o tradutor não se limita a repetir o que o autor disse, mas também procura compreender o que ele teria pensado antes de dizê-lo.

JARDEL: Além de autores russos, você também traduziu franceses como Baudelaire e Pierre Louÿs. Como é, sendo russo, enfrentar também como tradutor essa outra língua e, ainda, traduzindo a poesia de Baudelaire?

OLEG ALMEIDA: Diria que é mais fácil lançar uma ponte linguística entre o português e o francês, graças a inúmeras afinidades óbvias e implícitas desses idiomas, do que entre o português e o russo, bem diferentes em todos os sentidos. Além do mais, tenho uma profunda ligação pessoal com o francês: algo que remonta à minha infância, que envolve minhas emoções íntimas, sabe? Aliás, a primeira tradução minha, aceita e publicada, em 2010, pela Martin Claret, foi a dos “petits poèmes en prose” de Baudelaire. Parece que não se acreditava muito, àquela altura, que eu fosse apto a lidar com o russo, dado a caráter “hermético” dele. Até agora me perguntam, às vezes, se porventura não traduzo os clássicos russos por interposição do francês.

JARDEL: Qual a diferença para você entre traduzir poesia e romance?

OLEG ALMEIDA: Uma tradução “tecnologicamente precisa” é viável em prosa, mas pode levar a resultados catastróficos em poesia, sendo o valor intrínseco de um conto ou um romance proporcional, sobretudo, ao alcance de sua letra, isto é, da história narrada, e o de um poema, ao de seu espírito, à mágica daqueles recursos verbais de que se vale quem o escreve.

JARDEL: A ideia do “tradutor como traidor” para você se refere mais à poesia ou ao romance? Já que na poesia as particularidades linguísticas saltam aos olhos (rima, métrica, aliteração), seria ela a traída?

OLEG ALMEIDA: É claro que à poesia, porquanto aquela mágica que acabei de mencionar, com seus aspectos imateriais, oníricos, transcendentais, prevalece nela sobre toda e qualquer narrativa. A poesia não entretém nem ensina, mas comove, perturba, inspira de modo inconsciente, e seu tradutor precisa ter isso em vista.

JARDEL: Além de tradutor você é poeta. Qual o grau de importância para sua poesia o fato de você ser tradutor?

OLEG ALMEIDA: Para mim, a tradução literária tem sido uma verdadeira “musculação mental”, um exercício sofisticado que me ajuda a aperfeiçoar meu próprio estilo. Tolstói e Balzac, Flaubert e Turguênev, Búnin e Mérimée, Verlaine e Pasternak são meus colegas e professores virtuais: todos os dias aprendo um bocado de coisas úteis com eles.

JARDEL: Você tem conhecimento sobre as traduções de Maiakóvski e outros poetas russos pelos irmãos Augusto de Campos e Haroldo de Campos? Como as avalia?

OLEG ALMEIDA: Conheço algumas dessas traduções, sim, e o Maiakóvski dos irmãos Campos me parece firmemente encaixado nos moldes da prosódia e da mentalidade nacionais, ou seja, bastante abrasileirado. Acho plausível afirmar que não são traduções em estrita acepção do termo, mas antes releituras artísticas, ou melhor, recriações dos poemas em questão. Não obstante, tiro meu chapéu para a coragem e o virtuosismo indiscutível dos irmãos Campos. Eu mesmo não ousaria traduzir Maiakóvksi, e não por falta de habilidade nem por excesso de humildade, mas pura e simplesmente porque, nesta cabeça minha, ele grita demais em russo e, quando arranha o português, para de gritar e se queda falando em voz baixa. Sou como aquele rei persa que disse, instado a ouvir um homem capaz de imitar o canto de rouxinol: “Já ouvi o rouxinol mesmo cantar”.

JARDEL: O tradutor de poesia é visto como traidor, dadas as especificidades da poesia, que são praticamente impossíveis de serem reproduzidas em outra língua. Como você vê as ideias de Augusto de Campos e Haroldo de Campos, que na tradução de poesia propõem - como resposta a essa impossibilidade - uma espécie de “transcriação” do poema (e até “transluciferação”), exigindo do tradutor de poesia a “recriação” do poema original e não apenas uma tradução do “conteúdo”? Exigência essa que pede atenção sobre todos os planos da linguagem: o fonético, o sintático, o semântico, o prosódico.

OLEG ALMEIDA: Seria difícil não concordar com essa opinião corrente ainda na primeira metade do século XIX, quando Vassíli Jukóvski recompunha, com formidável mestria, as baladas de Walter Scott e Friedrich Schiller no intuito de familiarizar o leitor russo com elas. Reler um poema escrito em russo ou em francês, repensá-lo de acordo com as normas léxico-gramaticais da língua portuguesa, recriá-lo, por fim, de maneira que corresponda ao espírito do original, sim... mas com uma ressalva crítica: evitar grandes adaptações, exceto se forem imprescindíveis, deixando intactas, na medida do possível, as peculiaridades espaço-temporais dele, por mais estranhas que sejam. Os lápti do camponês russo não são exatamente alpercatas nem sabots, e Mademoiselle não é apenas uma “senhorita” solteira, mas ainda, em se tratando, por exemplo, de um texto antigo, uma mulher casada que não pertence à nobreza, ou então pertence a ela sem ter título, a primeira princesa de sangue, quer dizer, a filha do irmão ou tio do rei, e até mesmo a guilhotina. Cumpre ao tradutor, posto que “traia” por necessidade, buscar aquela aurea mediocritas de Horácio que possa justificar as consequências da “traição” poética com um bem maior. Nisso consiste o principal desafio que ele enfrenta no caso.

JARDEL: Para terminar, o tradutor de literatura é bem pago no Brasil? Como é feito esse pagamento, por lauda, por obra?

OLEG ALMEIDA: Estou a mil léguas de ser rico ou, no mínimo, abastado: minha tarefa diária se resume em manter as contas rotineiras em ordem. Não saberia caracterizar o mercado livreiro do Brasil como um todo, pois a Martin Claret é a única editora interessada em recorrer aos meus serviços profissionais, mas já fui pago por lauda e por obra. São coisas definidas pela negociação e, queiramos ou não, vinculadas à conjuntura econômica. Os píncaros da poesia, segundo Púchkin, não distam das bancadas do escritório...


Alain Barrière, Ma vie

 


quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Para um minuto de meditação - 27

 

“Em Arte, é vivo tudo o que é original. É original tudo o que provém da parte mais virgem, mais verdadeira e mais íntima duma personalidade artística. A primeira condição duma obra viva é pois ter uma personalidade e obedecer-lhe. (…) É falsa toda a originalidade calculada e astuciosa. Eis como também pertence à literatura morta aquela em que um autor pretende ser original sem personalidade própria. A excentricidade, a extravagância e a bizarria podem ser poderosas - mas só quando naturais a um dado temperamento artístico. Sobre outras qualidades, o produto desses temperamentos terá o encanto do raro e do imprevisto. Afectadas, semelhantes qualidades não passarão dum truque literário”.

José Régio

Antologia - Hoje José Régio

 



Para o melhor conhecimento de Régio


O autor de “Davam grandes passeios aos domingos” (que tem Portalegre não só como pano de fundo mas mesmo, diria eu, como “protagonista”) um dos carácteres mais singulares das letras portuguesas, nasceu como é sabido em Vila do Conde (1901) e aí faleceu de ataque cardíaco em 1969. Poeta, dramaturgo, romancista, contista, ensaísta e pensador mas também pintor nas suas horas e coleccionador antiquário de destaque, foi de igual modo uma significativa figura cívica, tendo participado activamente na oposição à ditadura salazarista. Viveu muitos anos na cidade alto-alentejana a exercer a sua tarefa de professor liceal, sendo por isso que nela existe uma Casa-Museu com o seu nome - sediada precisamente na “Velha Casa”.

Fui durante 14 anos - até me aposentar - o funcionário responsável pelo Centro de Estudos que lhe está anexo.

Devido a este facto, acrescentado à minha condição de publicista, debrucei-me ao longo dos tempos sobre a sua vida, nomeadamente sobre as relações epistolares e literárias que manteve com escritores brasileiros como Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Ribeiro Couto (que o visitou numa noite que refiro noutro texto), Moreira da Fonseca, Murillo Mendes, Herberto Sales, Álvaro Lins, Mauro Mota, Dante Milano, Henriqueta Lisboa, Melo Neto, etc. Na sua biblioteca pessoal e no pequeno acervo conservado no Centro de Estudos há, para além de livros destes autores, vestígios do seu mútuo relacionamento, nomeadamente uma curiosa fotografia que lhe enviou o grande poeta de “Louvação dos Poetas” com o propósito expresso de Régio conferir se era ou não verdade ser ele “muito feio”(sic).

Nesse contacto que estabeleci com a figura de Régio um caso avultou a partir de dada altura a meus olhos: a sistemática ocultação que se tem efectuado sobre a relevância de ter tido uma filha de uma senhora com quem se relacionou quando ainda era estudante em Coimbra, em cuja Universidade se licenciou em Filologia Românica. Apesar de citado por destacados estudiosos da vida e da obra regiana, nunca este facto - que Régio jamais esqueceria e considerou como o mais importante da sua vida - recebeu uma atenção específica de vulto. E isso considero-o eventualmente caracterizador de sectores da cena intelectual lusitana onde, a par dum ambíguo amiguismo, existe ainda uma mentalidade conservadora mesmo da parte de indivíduos que se enroupam com vestes progressistas. Para ilustrar, aqui deixo aos leitores que o não conheçam o comovente poema “Obsessão”, para que se veja o quanto ele revela da verdade interior que subjazia ao autor de “Poemas de Deus e do Diabo” - e que de igual modo dá também sinal claro do seu estro de excepção:


Sobre umas pobres rosas desfolhadas,

Vestidinha de branco, imóvel, fria,

Ela estava ali pronta para o fim.

Eu pensava: “De tudo, eis o que resta!”

E entre as palpebrazinhas mal fechadas,

(Como um raio de sol por uma fresta)

O seu olhar inda me via,

E despedia-se de mim.

 

Despedir-se, porquê?, se nunca mais,

Sobre essas pobres rosas desfolhadas,

A deixei eu de ver…, imóvel, fria.

Pois eu, acaso vivo onde apareço?

Lutas, ódios, amores, sonhos de glória, ideais,

Tudo me esqueceu já! Só não esqueço,

Entre as palpebrazinhas mal fechadas,

Aquele olhar que inda me via.

 

                                                                               (ns in “As vozes ausentes”)



Tapeçaria a partir de um cartão de José Régio



Mais 2 poemas de Régio

 


   Estação Término

 

Como um navio no mar

A meio da noite a casa,

E o vento e a chuva em redor.

Lá dentro, a um canto do lar

Onde um bom tronco se abrasa,

O homem sentado espera.

Se alguém chegar,

Terá luz, terá calor.

Batem à porta. Quem dera

Que fosse realidade!

Já teve tais decepções

O homem que há tanto espera!

Mas agora, alguém batera

Que chega da tempestade,

Que percorreu solidões…

“Entre quem é!” Pode ser

Alguém que venha roubar,

Assassinar, ofender…

“Entre quem é!” Não importa.

Se alguém vem que bate à porta,

O homem só quer abrir.

Chegou, por fim, a saber

Que, venha lá quem vier,

Seja quem for,

Só um dos dois pode ser

Desde que não a fingir:

A Morte, o Amor.

                                              in “Cântico suspenso”

  


   Canção dos dias contados


   Viver à beira da morte

  No gosto de mais um dia

         Nem eu diria

  Que tão pouco me conforte.

 

          Mas para quem

   Não tem senão esse pouco,

              Seria louco

      Perder o pouco que tem.

 

      Gozar o que, sem futuro,

    Perdura uns breves instantes,

              Não era dantes,

   Mas hoje, é o bem que procuro.

 

      Mais uma vez brilha o Sol!

     E é de prever que à tardinha

        Desponte a Lua, vizinha

        Do resplendor do arrebol.

 

       Talvez que a noite comprida

         Traga outra manhã depois.

           Um dia e outro, são dois.

           Não são dois dias a vida?

 

                   Nem eu diria

         Que tão pouco me conforte:

              Viver à beira da morte

            No gosto de mais um dia.

 

                                                   (in Música ligeira, volume póstumo)

 

*

 

 (À memória de Régio)

 

FALA DE SUA FILHA A SEU PAI JOSÉ RÉGIO

 

Sou eu, pai! Estive com umas amigas. Fui com elas

Ao cinema. Vim pela rua do Bairro Alto.

Como a cidade

Estava bela   com a noitinha a entrar. Ao pé do Castelo

Um anjo rebrilhava coberto de lantejoulas

Como as dos desenhos do tio Júlio.

Comeste, pai? O que é que a dona Rosalina nos mandou?

Eia, pai – jardineira! E leite-creme como tu gostas. E figos

- num prato ratinho  dos teus preferidos!

Deixa. Eu coloco na mesa.  Tu continua a sonhar

Aí junto à varanda,  na cadeira velha de verga.

Já reparaste?

Que de luzes que aqui se juntam! Ficam tão bem

À minha blusa amarela. Sim, tu bem o sabes, a noite vai ser longa

Mas um novo planeta nos espreita lá de cima.

Não tenhas medo, pai!

Eles não andam no quintal. Eu disse-lhes

Que não andassem no quintal, mesmo em Vila do Conde.

Logo terás, depois da música

Areias do deserto e os ventos da beira-mar. E olha

Consertei-te o coração

E o teu boneco estripado.

 

Pai: ontem um moço, na rua

Olhou para mim e eu

Pensei de repente em coisas - borboletas sobre um prado,

Um grilo tenor em alvoroço, rios correndo – em coisas que tenho

Pudor de contar a outras gentes. Que tolice, pai, não é?

Mas ele, se assim o digo, parece gostar de mim. E estou um pouco feliz.

E peço-te já versos para ele. Como os daquele príncipe

Que todo se danava se acaso a lua não vinha. O meu rapaz

Tem um sorriso esquisito

E uns olhos azuis-lilases.

 

Pai, a casa – esse navio – vai partir. Olha, ao pé, a tua estrela

Do teu menino ausente. Não te entristeças, pai. Estou tão contente!

Dá-me a tua tablete

De chocolate, dá-me a Nossa Senhora, dá-me a tua caneta

De estudante: com ela farei versos

Que tu me invejarás. Estou a meter-me contigo, pois então!

Como tu, também sei pelo caminho quais os passos

Que vão dar aos meus próprios lados. Quando dormires

Eu te velarei. E vejo-te sempre como tu me vês

Pelas pálpebras mal cerradas.

Teremos luz e calor, pai

Como tu bem mo quiseste revelar. Os deuses, coitados deles

Não terão mais remédio

Que ler teus livros inteiros. (Um dia

Pedir-lhes-ei alvíssaras).

 

Não temas, pai. Eu estou aqui. Sempre estarei aqui. Guardo comigo

As rosas desfolhadas

E o meu vestidinho branco. E agora

Vamos, pai. Deixa lá as escritas, escreverás o resto do teu conto

Lá p’ra mais tarde.

(É sempre p’ra mais tarde que se escreve). Vamos agora passear.

 

Que a grande voz do mundo

Eu já ao longe a ouço.

 

                                                                              ns

                                                                        in “Escrita e o seu Contrário”



Desenho de José Régio

Aos confrades, amigos, adeptos e simpatizantes

     Devido a um problema informático de última hora, não nos será possível fazer a postagem desta semana.    Esperando resolvê-lo em breve,...