Entrevista com o tradutor Oleg Andréev Almeida
Dada ao “Digestivo Cultural”
Tradutor, poeta e ensaísta, Oleg Andréev
Almeida nasceu em 1971 na Bielorrússia (uma das repúblicas ocidentais da então
União Soviética), estudou as letras francesas na Escola Central das Línguas
Estrangeiras em Moscou (1989-1992). Mudou-se para o Brasil em julho de 2005,
vindo a naturalizar-se Brasileiro em 2011.
Lançou seu primeiro poema em
português, “Pouco importa”,
pela Câmara Brasileira de Jovens Escritores / CBJE em 2007, e seu primeiro
livro, romance poético “Memórias
dum hiperbóreo”, pela Editora 7 Letras em 2008. Publicou os livros de
poesia “Quarta-feira de Cinzas e
outros poemas” (2011) e “Antologia cosmopolita” (2013) pela Editora 7 Letras (Rio de
Janeiro); “Desenhos a lápis” (2018)
pela Editora Scortecci (São Paulo).
Traduziu
do francês “O esplim de Paris:
pequenos poemas em prosa, e outros escritos” de Charles Baudelaire
(Martin Claret: São Paulo, 2010), “Os
cantos de Bilítis” de Pierre Louÿs (Ibis Libris: Rio de Janeiro,
2011), “O eterno Adão” de
Jules Verne e “Um outro mundo” de
Joseph Henry Rosny Aîné (ambos na coletânea “Das estrelas ao oceano: Contos de ficção científica”. Martin
Claret: São Paulo, 2019).
Traduziu
do russo, entre outros, “Canções
alexandrinas” de Mikhail Kuzmin (Arte Brasil: São Paulo, 2011);
Para a Martin Claret traduziu as seguintes obras de Dostoiéviski, “Diário do subsolo”; “O jogador”; “Crime e castigo”; “Memórias da Casa dos mortos”; “Humilhados e ofendidos”; “Noites brancas” e “O eterno marido”.
De Tolstói traduziu: “A morte de
Ivan Ilitch e outras histórias [Sonata a Kreutzer e O padre Sêrgui]” e “Anna Karênina”. Também traduziu “Pequenas tragédias” de Alexandr
Púchkin. Elaborou, por encomenda da Editora Martin Claret, a coletânea de
contos clássicos russos, publicados em 3 volumes.
Tem
como livros prediletos: Marília
de Dirceu de Tomás Antônio Gonzaga, O Romanceiro Cigano de Federico García Lorca, As Flores do Mal de Charles
Baudelaire, Sonetos de
William Shakespeare, Mamãe e a Bomba de Nêutron de Evguêni Yevtuchenko, Pequenas tragédias de Alexandr
Púchkin entre muitos outros.
Seu lema de
vida é: Vivere militare est (Sêneca).
JARDEL: Qual sua trajetória para tornar-se tradutor profissional?
OLEG ALMEIDA: Formado em Letras, aos 21 anos de idade, já vislumbrava uma possível carreira tradutória, ainda mais que a escola russa de tradução era considerada, inclusive pelos seus desafetos, uma das melhores do mundo. Na década de 90, quando fiquei empregado no setor comercial, deixei o antigo sonho em segundo plano; aliás, traduzi alguns textos técnicos para as empresas com que estava colaborando. Feitas as contas, só me dediquei profissionalmente à tradução literária aqui no Brasil. A editora Martin Claret, que me tem contratado desde 2009, facilitou muito essa escolha.
JARDEL: Você tem feito traduções do russo para o português, enfrentando autores como Dostoiévski, Tolstói, Púchkin, dentre outros. Também uma coleção de contos russos, com variados autores. Fale um pouco sobre essa tarefa homérica, que inclui a tradução de volumes densos como Anna Karênina, de Tolstói.
OLEG ALMEIDA: “Tarefa homérica”? Essa é ótima! Realmente, a tradução de Anna Karênina, a mais recente e, talvez, a melhor que fiz até hoje, acabou exigindo 14 meses de trabalho árduo; Crime e castigo foi traduzido em cerca de um ano. Cheguei também a participar, vez por outra, de vários projetos ao mesmo tempo, lamentando então que o dia tivesse apenas 24 horas. Imagine alguém que traduz Anna Karênina pela manhã e revisa uma nova versão de Notre-Dame de Paris à tarde... E isso sem contar meus escritos autorais, como poemas, ensaios, artigos de feitio acadêmico, etc.
JARDEL: Já existem
traduções dos autores russos citados acima e que você também traduziu. Você vê
alguma diferença particular entre a tradução que você faz e as já existentes?
OLEG ALMEIDA: De fato, as mais diversas obras
russas foram transpostas para o português, em particular pelos “magnificent
three” (Boris Schnaiderman, Paulo Bezerra e Rubens Figueiredo), mas,
infelizmente, não estou em condição de comentar a respeito delas. Jamais leio
as traduções dos concorrentes diretos para não me submeter, nem que seja por
mero acaso, a nenhuma influência sua. Quanto aos critérios gerais que norteiam
meu próprio trabalho, são simples: fidelidade e autenticidade. Há quem
interprete, se não reescreva, o autor traduzido e quem dialogue, se não
polemize, com ele, mas esse não é meu costume. Sempre me atenho aos princípios
da “vertente tecnologicamente precisa”, a qual se instaurou na União Soviética,
nos anos 1920-30, e depois foi suplantada, tanto naquele país como no mundo
inteiro, pela “vertente criativa”, mais livre em tratar o conteúdo e, máxime, a
forma dos textos literários.
JARDEL: Segundo Henti Meschonnic, “a tradução é
o melhor posto de observação sobre as estratégias de linguagem”. Sendo assim,
traduzindo Tolstói e Dostoiévski você adentra profundamente o universo da
linguagem desses autores. Você poderia comentar sobre a diferença estética
entre eles?
OLEG ALMEIDA: A escrita de Dostoiévski é
prolixa, caótica, não raro desprovida de qualquer harmonia: dá para ver que
seus famosos romances foram compostos às pressas, literalmente “ao correr da
pena”, com pouca lapidação estilística. Não se deve esquecer, nem por um
minuto, que Dostoiévski se viu, durante a vida toda, perseguido pelos credores
e pressionado pelos editores inescrupulosos, tendo de entregar manuscritos
“para ontem” e de resgatar os pertences de sua família que penhorava
sistematicamente a fim de suprir as necessidades básicas dela; caso contrário,
surge a tentação de “polir” suas obras, de remodelá-las naquele português
correto e bonito de Machado de Assis. No que concerne a Tolstói, digamos que
sua prosa se encontra sob um forte influxo da língua francesa, o que não é de
admirar, pois ele a usava desde criança com plena desenvoltura, a par da
maioria dos fidalgos russos de sua época. Ao analisar o original de Anna
Karênina, percebi que traduzir esse livro significaria estabelecer algum tipo
de equilíbrio razoável entre os três idiomas patentes ou subentendidos nele: o
russo convencional do século XIX, o francês culto, falado pela elite do Império
Russo, e o português castiço, por um lado relativamente próximo do contexto
histórico em que o romance de Tolstói foi concebido, mas, por outro lado, nem
tão próximo assim, para não espantar o futuro leitor brasileiro. Como está
vendo, o tradutor não se limita a repetir o que o autor disse, mas também
procura compreender o que ele teria pensado antes de dizê-lo.
JARDEL: Além de autores russos, você também
traduziu franceses como Baudelaire e Pierre Louÿs. Como é, sendo russo,
enfrentar também como tradutor essa outra língua e, ainda, traduzindo a poesia
de Baudelaire?
OLEG ALMEIDA: Diria que é mais fácil lançar uma
ponte linguística entre o português e o francês, graças a inúmeras afinidades
óbvias e implícitas desses idiomas, do que entre o português e o russo, bem
diferentes em todos os sentidos. Além do mais, tenho uma profunda ligação
pessoal com o francês: algo que remonta à minha infância, que envolve minhas
emoções íntimas, sabe? Aliás, a primeira tradução minha, aceita e publicada, em
2010, pela Martin Claret, foi a dos “petits poèmes en prose” de Baudelaire.
Parece que não se acreditava muito, àquela altura, que eu fosse apto a lidar
com o russo, dado a caráter “hermético” dele. Até agora me perguntam, às vezes,
se porventura não traduzo os clássicos russos por interposição do francês.
JARDEL: Qual a diferença para você entre
traduzir poesia e romance?
OLEG ALMEIDA: Uma tradução “tecnologicamente
precisa” é viável em prosa, mas pode levar a resultados catastróficos em
poesia, sendo o valor intrínseco de um conto ou um romance proporcional,
sobretudo, ao alcance de sua letra, isto é, da história narrada, e o de um
poema, ao de seu espírito, à mágica daqueles recursos verbais de que se vale
quem o escreve.
JARDEL: A ideia do “tradutor como traidor” para
você se refere mais à poesia ou ao romance? Já que na poesia as
particularidades linguísticas saltam aos olhos (rima, métrica, aliteração),
seria ela a traída?
OLEG ALMEIDA: É claro que à poesia, porquanto
aquela mágica que acabei de mencionar, com seus aspectos imateriais, oníricos,
transcendentais, prevalece nela sobre toda e qualquer narrativa. A poesia não
entretém nem ensina, mas comove, perturba, inspira de modo inconsciente, e seu
tradutor precisa ter isso em vista.
JARDEL: Além de tradutor você é poeta. Qual o
grau de importância para sua poesia o fato de você ser tradutor?
OLEG ALMEIDA: Para mim, a tradução literária tem
sido uma verdadeira “musculação mental”, um exercício sofisticado que me ajuda
a aperfeiçoar meu próprio estilo. Tolstói e Balzac, Flaubert e Turguênev, Búnin
e Mérimée, Verlaine e Pasternak são meus colegas e professores virtuais: todos
os dias aprendo um bocado de coisas úteis com eles.
JARDEL: Você tem conhecimento sobre as traduções
de Maiakóvski e outros poetas russos pelos irmãos Augusto de Campos e Haroldo
de Campos? Como as avalia?
OLEG ALMEIDA: Conheço algumas dessas traduções,
sim, e o Maiakóvski dos irmãos Campos me parece firmemente encaixado nos moldes
da prosódia e da mentalidade nacionais, ou seja, bastante abrasileirado. Acho
plausível afirmar que não são traduções em estrita acepção do termo, mas antes
releituras artísticas, ou melhor, recriações dos poemas em questão. Não
obstante, tiro meu chapéu para a coragem e o virtuosismo indiscutível dos
irmãos Campos. Eu mesmo não ousaria traduzir Maiakóvksi, e não por falta de
habilidade nem por excesso de humildade, mas pura e simplesmente porque, nesta
cabeça minha, ele grita demais em russo e, quando arranha o português, para de
gritar e se queda falando em voz baixa. Sou como aquele rei persa que disse,
instado a ouvir um homem capaz de imitar o canto de rouxinol: “Já ouvi o
rouxinol mesmo cantar”.
JARDEL: O tradutor de poesia é visto como
traidor, dadas as especificidades da poesia, que são praticamente impossíveis
de serem reproduzidas em outra língua. Como você vê as ideias de Augusto de
Campos e Haroldo de Campos, que na tradução de poesia propõem - como resposta a
essa impossibilidade - uma espécie de “transcriação” do poema (e até
“transluciferação”), exigindo do tradutor de poesia a “recriação” do poema
original e não apenas uma tradução do “conteúdo”? Exigência essa que pede
atenção sobre todos os planos da linguagem: o fonético, o sintático, o semântico,
o prosódico.
OLEG ALMEIDA: Seria difícil não concordar com
essa opinião corrente ainda na primeira metade do século XIX, quando Vassíli
Jukóvski recompunha, com formidável mestria, as baladas de Walter Scott e
Friedrich Schiller no intuito de familiarizar o leitor russo com elas. Reler um
poema escrito em russo ou em francês, repensá-lo de acordo com as normas
léxico-gramaticais da língua portuguesa, recriá-lo, por fim, de maneira que
corresponda ao espírito do original, sim... mas com uma ressalva crítica:
evitar grandes adaptações, exceto se forem imprescindíveis, deixando intactas,
na medida do possível, as peculiaridades espaço-temporais dele, por mais
estranhas que sejam. Os lápti do camponês russo não são exatamente alpercatas
nem sabots, e Mademoiselle não é apenas uma “senhorita” solteira, mas ainda, em
se tratando, por exemplo, de um texto antigo, uma mulher casada que não
pertence à nobreza, ou então pertence a ela sem ter título, a primeira princesa
de sangue, quer dizer, a filha do irmão ou tio do rei, e até mesmo a
guilhotina. Cumpre ao tradutor, posto que “traia” por necessidade, buscar
aquela aurea mediocritas de Horácio que possa justificar as consequências da
“traição” poética com um bem maior. Nisso consiste o principal desafio que ele enfrenta
no caso.
JARDEL: Para terminar, o tradutor de literatura
é bem pago no Brasil? Como é feito esse pagamento, por lauda, por obra?
OLEG ALMEIDA: Estou a mil léguas de ser rico ou,
no mínimo, abastado: minha tarefa diária se resume em manter as contas
rotineiras em ordem. Não saberia caracterizar o mercado livreiro do Brasil como
um todo, pois a Martin Claret é a única editora interessada em recorrer aos
meus serviços profissionais, mas já fui pago por lauda e por obra. São coisas
definidas pela negociação e, queiramos ou não, vinculadas à conjuntura
econômica. Os píncaros da poesia, segundo Púchkin, não distam das bancadas do
escritório...
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