segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Entrevista a Oleg Almeida

 

    Entrevista com o tradutor Oleg Andréev Almeida

     Dada ao “Digestivo Cultural”


    Tradutor, poeta e ensaísta, Oleg Andréev Almeida nasceu em 1971 na Bielorrússia (uma das repúblicas ocidentais da então União Soviética), estudou as letras francesas na Escola Central das Línguas Estrangeiras em Moscou (1989-1992). Mudou-se para o Brasil em julho de 2005, vindo a naturalizar-se Brasileiro em 2011.
 
    Lançou seu primeiro poema em português, “Pouco importa”, pela Câmara Brasileira de Jovens Escritores / CBJE em 2007, e seu primeiro livro, romance poético “Memórias dum hiperbóreo”, pela Editora 7 Letras em 2008. Publicou os livros de poesia “Quarta-feira de Cinzas e outros poemas” (2011) e “Antologia cosmopolita” (2013) pela Editora 7 Letras (Rio de Janeiro); “Desenhos a lápis” (2018) pela Editora Scortecci (São Paulo).

   Traduziu do francês “O esplim de Paris: pequenos poemas em prosa, e outros escritos” de Charles Baudelaire (Martin Claret: São Paulo, 2010), “Os cantos de Bilítis” de Pierre Louÿs (Ibis Libris: Rio de Janeiro, 2011), “O eterno Adão” de Jules Verne e “Um outro mundo” de Joseph Henry Rosny Aîné (ambos na coletânea “Das estrelas ao oceano: Contos de ficção científica”. Martin Claret: São Paulo, 2019).

   Traduziu do russo, entre outros, “Canções alexandrinas” de Mikhail Kuzmin (Arte Brasil: São Paulo, 2011); Para a Martin Claret traduziu as seguintes obras de Dostoiéviski, “Diário do subsolo”; “O jogador”; “Crime e castigo”; “Memórias da Casa dos mortos”; “Humilhados e ofendidos”; “Noites brancas” e “O eterno marido”. De Tolstói traduziu: “A morte de Ivan Ilitch e outras histórias [Sonata a Kreutzer e O padre Sêrgui]” e “Anna Karênina”. Também traduziu “Pequenas tragédias” de Alexandr Púchkin. Elaborou, por encomenda da Editora Martin Claret, a coletânea de contos clássicos russos, publicados em 3 volumes.

   Tem como livros prediletos: Marília de Dirceu de Tomás Antônio Gonzaga, O Romanceiro Cigano de Federico García Lorca, As Flores do Mal de Charles Baudelaire, Sonetos de William Shakespeare, Mamãe e a Bomba de Nêutron de Evguêni Yevtuchenko, Pequenas tragédias de Alexandr Púchkin entre muitos outros.    

   Seu lema de vida é: Vivere militare est (Sêneca).

*

JARDEL: Qual sua trajetória para tornar-se tradutor profissional?

OLEG ALMEIDA: Formado em Letras, aos 21 anos de idade, já vislumbrava uma possível carreira tradutória, ainda mais que a escola russa de tradução era considerada, inclusive pelos seus desafetos, uma das melhores do mundo. Na década de 90, quando fiquei empregado no setor comercial, deixei o antigo sonho em segundo plano; aliás, traduzi alguns textos técnicos para as empresas com que estava colaborando. Feitas as contas, só me dediquei profissionalmente à tradução literária aqui no Brasil. A editora Martin Claret, que me tem contratado desde 2009, facilitou muito essa escolha.

JARDEL: Você tem feito traduções do russo para o português, enfrentando autores como Dostoiévski, Tolstói, Púchkin, dentre outros. Também uma coleção de contos russos, com variados autores. Fale um pouco sobre essa tarefa homérica, que inclui a tradução de volumes densos como Anna Karênina, de Tolstói.

OLEG ALMEIDA: “Tarefa homérica”? Essa é ótima! Realmente, a tradução de Anna Karênina, a mais recente e, talvez, a melhor que fiz até hoje, acabou exigindo 14 meses de trabalho árduo; Crime e castigo foi traduzido em cerca de um ano. Cheguei também a participar, vez por outra, de vários projetos ao mesmo tempo, lamentando então que o dia tivesse apenas 24 horas. Imagine alguém que traduz Anna Karênina pela manhã e revisa uma nova versão de Notre-Dame de Paris à tarde... E isso sem contar meus escritos autorais, como poemas, ensaios, artigos de feitio acadêmico, etc.


JARDEL: Já existem traduções dos autores russos citados acima e que você também traduziu. Você vê alguma diferença particular entre a tradução que você faz e as já existentes?

OLEG ALMEIDA: De fato, as mais diversas obras russas foram transpostas para o português, em particular pelos “magnificent three” (Boris Schnaiderman, Paulo Bezerra e Rubens Figueiredo), mas, infelizmente, não estou em condição de comentar a respeito delas. Jamais leio as traduções dos concorrentes diretos para não me submeter, nem que seja por mero acaso, a nenhuma influência sua. Quanto aos critérios gerais que norteiam meu próprio trabalho, são simples: fidelidade e autenticidade. Há quem interprete, se não reescreva, o autor traduzido e quem dialogue, se não polemize, com ele, mas esse não é meu costume. Sempre me atenho aos princípios da “vertente tecnologicamente precisa”, a qual se instaurou na União Soviética, nos anos 1920-30, e depois foi suplantada, tanto naquele país como no mundo inteiro, pela “vertente criativa”, mais livre em tratar o conteúdo e, máxime, a forma dos textos literários.

JARDEL: Segundo Henti Meschonnic, “a tradução é o melhor posto de observação sobre as estratégias de linguagem”. Sendo assim, traduzindo Tolstói e Dostoiévski você adentra profundamente o universo da linguagem desses autores. Você poderia comentar sobre a diferença estética entre eles?

OLEG ALMEIDA: A escrita de Dostoiévski é prolixa, caótica, não raro desprovida de qualquer harmonia: dá para ver que seus famosos romances foram compostos às pressas, literalmente “ao correr da pena”, com pouca lapidação estilística. Não se deve esquecer, nem por um minuto, que Dostoiévski se viu, durante a vida toda, perseguido pelos credores e pressionado pelos editores inescrupulosos, tendo de entregar manuscritos “para ontem” e de resgatar os pertences de sua família que penhorava sistematicamente a fim de suprir as necessidades básicas dela; caso contrário, surge a tentação de “polir” suas obras, de remodelá-las naquele português correto e bonito de Machado de Assis. No que concerne a Tolstói, digamos que sua prosa se encontra sob um forte influxo da língua francesa, o que não é de admirar, pois ele a usava desde criança com plena desenvoltura, a par da maioria dos fidalgos russos de sua época. Ao analisar o original de Anna Karênina, percebi que traduzir esse livro significaria estabelecer algum tipo de equilíbrio razoável entre os três idiomas patentes ou subentendidos nele: o russo convencional do século XIX, o francês culto, falado pela elite do Império Russo, e o português castiço, por um lado relativamente próximo do contexto histórico em que o romance de Tolstói foi concebido, mas, por outro lado, nem tão próximo assim, para não espantar o futuro leitor brasileiro. Como está vendo, o tradutor não se limita a repetir o que o autor disse, mas também procura compreender o que ele teria pensado antes de dizê-lo.

JARDEL: Além de autores russos, você também traduziu franceses como Baudelaire e Pierre Louÿs. Como é, sendo russo, enfrentar também como tradutor essa outra língua e, ainda, traduzindo a poesia de Baudelaire?

OLEG ALMEIDA: Diria que é mais fácil lançar uma ponte linguística entre o português e o francês, graças a inúmeras afinidades óbvias e implícitas desses idiomas, do que entre o português e o russo, bem diferentes em todos os sentidos. Além do mais, tenho uma profunda ligação pessoal com o francês: algo que remonta à minha infância, que envolve minhas emoções íntimas, sabe? Aliás, a primeira tradução minha, aceita e publicada, em 2010, pela Martin Claret, foi a dos “petits poèmes en prose” de Baudelaire. Parece que não se acreditava muito, àquela altura, que eu fosse apto a lidar com o russo, dado a caráter “hermético” dele. Até agora me perguntam, às vezes, se porventura não traduzo os clássicos russos por interposição do francês.

JARDEL: Qual a diferença para você entre traduzir poesia e romance?

OLEG ALMEIDA: Uma tradução “tecnologicamente precisa” é viável em prosa, mas pode levar a resultados catastróficos em poesia, sendo o valor intrínseco de um conto ou um romance proporcional, sobretudo, ao alcance de sua letra, isto é, da história narrada, e o de um poema, ao de seu espírito, à mágica daqueles recursos verbais de que se vale quem o escreve.

JARDEL: A ideia do “tradutor como traidor” para você se refere mais à poesia ou ao romance? Já que na poesia as particularidades linguísticas saltam aos olhos (rima, métrica, aliteração), seria ela a traída?

OLEG ALMEIDA: É claro que à poesia, porquanto aquela mágica que acabei de mencionar, com seus aspectos imateriais, oníricos, transcendentais, prevalece nela sobre toda e qualquer narrativa. A poesia não entretém nem ensina, mas comove, perturba, inspira de modo inconsciente, e seu tradutor precisa ter isso em vista.

JARDEL: Além de tradutor você é poeta. Qual o grau de importância para sua poesia o fato de você ser tradutor?

OLEG ALMEIDA: Para mim, a tradução literária tem sido uma verdadeira “musculação mental”, um exercício sofisticado que me ajuda a aperfeiçoar meu próprio estilo. Tolstói e Balzac, Flaubert e Turguênev, Búnin e Mérimée, Verlaine e Pasternak são meus colegas e professores virtuais: todos os dias aprendo um bocado de coisas úteis com eles.

JARDEL: Você tem conhecimento sobre as traduções de Maiakóvski e outros poetas russos pelos irmãos Augusto de Campos e Haroldo de Campos? Como as avalia?

OLEG ALMEIDA: Conheço algumas dessas traduções, sim, e o Maiakóvski dos irmãos Campos me parece firmemente encaixado nos moldes da prosódia e da mentalidade nacionais, ou seja, bastante abrasileirado. Acho plausível afirmar que não são traduções em estrita acepção do termo, mas antes releituras artísticas, ou melhor, recriações dos poemas em questão. Não obstante, tiro meu chapéu para a coragem e o virtuosismo indiscutível dos irmãos Campos. Eu mesmo não ousaria traduzir Maiakóvksi, e não por falta de habilidade nem por excesso de humildade, mas pura e simplesmente porque, nesta cabeça minha, ele grita demais em russo e, quando arranha o português, para de gritar e se queda falando em voz baixa. Sou como aquele rei persa que disse, instado a ouvir um homem capaz de imitar o canto de rouxinol: “Já ouvi o rouxinol mesmo cantar”.

JARDEL: O tradutor de poesia é visto como traidor, dadas as especificidades da poesia, que são praticamente impossíveis de serem reproduzidas em outra língua. Como você vê as ideias de Augusto de Campos e Haroldo de Campos, que na tradução de poesia propõem - como resposta a essa impossibilidade - uma espécie de “transcriação” do poema (e até “transluciferação”), exigindo do tradutor de poesia a “recriação” do poema original e não apenas uma tradução do “conteúdo”? Exigência essa que pede atenção sobre todos os planos da linguagem: o fonético, o sintático, o semântico, o prosódico.

OLEG ALMEIDA: Seria difícil não concordar com essa opinião corrente ainda na primeira metade do século XIX, quando Vassíli Jukóvski recompunha, com formidável mestria, as baladas de Walter Scott e Friedrich Schiller no intuito de familiarizar o leitor russo com elas. Reler um poema escrito em russo ou em francês, repensá-lo de acordo com as normas léxico-gramaticais da língua portuguesa, recriá-lo, por fim, de maneira que corresponda ao espírito do original, sim... mas com uma ressalva crítica: evitar grandes adaptações, exceto se forem imprescindíveis, deixando intactas, na medida do possível, as peculiaridades espaço-temporais dele, por mais estranhas que sejam. Os lápti do camponês russo não são exatamente alpercatas nem sabots, e Mademoiselle não é apenas uma “senhorita” solteira, mas ainda, em se tratando, por exemplo, de um texto antigo, uma mulher casada que não pertence à nobreza, ou então pertence a ela sem ter título, a primeira princesa de sangue, quer dizer, a filha do irmão ou tio do rei, e até mesmo a guilhotina. Cumpre ao tradutor, posto que “traia” por necessidade, buscar aquela aurea mediocritas de Horácio que possa justificar as consequências da “traição” poética com um bem maior. Nisso consiste o principal desafio que ele enfrenta no caso.

JARDEL: Para terminar, o tradutor de literatura é bem pago no Brasil? Como é feito esse pagamento, por lauda, por obra?

OLEG ALMEIDA: Estou a mil léguas de ser rico ou, no mínimo, abastado: minha tarefa diária se resume em manter as contas rotineiras em ordem. Não saberia caracterizar o mercado livreiro do Brasil como um todo, pois a Martin Claret é a única editora interessada em recorrer aos meus serviços profissionais, mas já fui pago por lauda e por obra. São coisas definidas pela negociação e, queiramos ou não, vinculadas à conjuntura econômica. Os píncaros da poesia, segundo Púchkin, não distam das bancadas do escritório...


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