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"A Arte humaniza. Por isso é que a arte que o é verdadeiramente constitui o perfeito contrário da normalização, da pornografia e do autoritarismo"
Maynard Blechert
Conheci Vincenzo Quillici em Junho de 99, aquando da
minha estadia em Paris e em Bruxelas para lançar na Livraria Lusófona, frente
à Sorbonne (e, a seguir, numa galeria da capital belga que tinha o ambiente
dos contos de Jean Ray) o meu livro de poemas “Flauta de Pan”.
Chamou-me
a atenção aquele homem que se mantivera ligeiramente à parte da assistência
luso-francesa enquanto o apresentador, depois um confrade e, finalmente, eu
mesmo debitavámos com o melhor esmero as nossas orações de sapiência…Usava um
chapéu de abas largas e uma gravata fina à Gary Cooper, serve dizer: daqueles
objectos ornamentais tão usuais nos filmes dos anos 50 com que os dandys
pistoleiros criavam o seu pessoal cenário de elegância…
Mais
tarde, soube que não o fazia para se singularizar, mas apenas porque amava a
fantasia percorrida por um senso-de-humor inteiramente partilhado com os
amigos e as outras pessoas em geral.
Disse-me
que viera ali para me contactar; pois, encontrando-se em Paris, amigos comuns
lhe tinham dado a notícia do evento e a localização da funçanata.
Finalizámos
o encontro, já tarde na noite, em frente de umas canecas de cerveja irlandesa,
perto da Rua do Rivoli, acompanhadas de filetes de vitela. Quillici comia com
apetite e com uma espécie de concentração a que eu chamaria artística: por
duas vezes, ao que recordo, solicitou ao empregado que deixasse a espuma da
preciosa bebida um pouco acima das bordas, pois ficava mais sugestiva…mais
apetitosa.
Ao
despedir-se, deixou-me nas mãos uma pequena brochura contendo dezasseis
estorinhas que classificarei de surpreendentes e apelativas, em vista do seu
específico humor negro tranquilo e sedutor, mas que eu também diria
percorridas por uma evidente melancolia.
Desse livrinho, que depois ampliaria
principalmente por incitamento de Maria Darmyn, com quem entretanto contraíu
matrimónio, extraí e traduzi três relatos de que aqui vos deixo o primeiro,
com agradecimentos e um abraço ao seu autor.
O
FLIBUSTEIRO
Foi um pouco antes do jantar, depois de
vir do escritório, que o Basile teve a certeza de que era cornudo.
Era uma
segunda-feira. Basile – Basile Cambon, como o grande homem de Estado – saía
sempre depois de todos os empregados se despacharem. A menina Capitoline, a
dactilógrafa e recepcionista, dissera-lhe como sempre com os seus olhinhos de
carneiro mal-morto: “Quer que feche, senhor Basile?”. E ele, como
sempre, respondera: “Não, deixe estar. Vá andando que eu depois fecho
tudo”. Toda a gente, desde o Rimet, o estarola que também fazia as
vezes de caixeiro-viajante quando calhava, até à madame Sidonie, que a Casa
herdara da anterior gerência, sabia que ela estava apaixonada por Basile, mas
ele só se servia disso para lhe atirar para cima do lombo uns leves
trabalhitos inadiáveis. Também toda a gente sabia que o patrãozinho Cambon,
sucessor do velho Ignace, gostava muito da esposa, a dona Renate filha dos
Blondine das ourivesarias. Nem constava que ele se desalinhasse até quando
ia, o que aliás depois do casório se tornara muito raro, aos serões das Folie
Bergères.
Às vezes
até se davam ao trabalho de falar no casal perfeito que eram Basile e Renate.
Comeu a
refeição quase em silêncio. De vez em quando, entremeado na escassa conversa,
um olhar saltava em direcção à face da esposa, que com os lábios vermelhinhos
e os cabelos arruivados aguentava muito bem uma segunda e até uma terceira
mirada. E o peitinho de rola até lhe arfava, ela que era dada a fagueirices
como Basile muito bem sabia.
Aí por
volta da sobremesa, Basile percebeu quem era o destruidor do seu lar: o Patrice,
evidentemente, o tal que nas festas de aniversário, de Carnaval e de antigos
alunos do liceu tinha o hábito de pôr um monóculo e de imitar o Maurice
Chevalier e o Coluche. Um tunante, é claro, mas sabe-se como as senhoras
românticas se pelam por tal género de energúmenos.
Ainda
tentou dizer para si mesmo que ninguém iria reparar, que tal coisa era na
cidade o pão-nosso de cada dia, que muitos dos seus conhecidos também
participavam de tal estatística. Mas nada o consolava. Sentira assim como uma
cabeçada no plexo solar e, quando passara a Renate a tacinha da compota, até
as mãos lhe tremiam.
Com a
classe herdada de seu pai, um homem honrado dos pés à cabeça, fez que não
reparava na evidência da traição. Mas o coração estalava-lhe de comoção
camuflada.
Foi para o
escritório sem dar sequer uma palavra à esposa, que aliás nem se deu conta do
gesto: pairava é claro noutros universos e o nariz reluzia-lhe sem embaraços.
Passou as
mãos pelos seus velhos livros, seus companheiros de aventura. Do armário tirou
os calções de pano grosso, o casacão de alamares, o chapeirão e o sabre.
Ajustou, depois de bem enfarpelado, o par de pistolões em cruz no cinturão
largo de couro com a grande fivela de prata. O papagaio estava, como sempre,
no poleiro da cozinha: foi só tirá-lo de lá e colocá-lo sobre o ombro.
Estava
pronto. Desceu ao quintal, o quintal grande e arborizado que a mãe Cambon
tanto ornamentara e melhorara. Acenou para o seu imediato, com a larga mão
aberta, o sinal de zarpar. E desta vez é que já não voltaria.
Assim como
assim, afinal, no fundo nunca gostara muito de Paris.
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Devido a um problema informático de última hora, não nos será possível fazer a postagem desta semana. Esperando resolvê-lo em breve,...