quinta-feira, 28 de maio de 2020

Um poema de Jules Morot


ns



    Jules Morot, francês de fio a pavio, não podia deixar de ser um poeta que raciocina sobre a questão da escrita e da literatura que se organiza sobre aquela e, naturalmente, sobre a vida que lhe reside em torno, antes ou depois do acto.
   Sendo originário do Loire, essa - e cito - “região pacífica da exuberante paisagem, vinhas, longas praias arenosas e sapais, salpicada de castelos, solares e zonas de caça e na qual os prazeres bucólicos se misturam com a fruição de cidades fascinantes”, um pouco desse rincão encantado lhe percorre o que pensa, o que escreve, o que inventa.
   Assim sendo, é natural que se detecte nele um fundo mágico que o lança em composições nas quais tenho percebido duas coisas fundamentais: o amor à natureza e ao pensamento especulativo (o que se oferece, por exemplo, nos seus poemas “O besouro” e “Mozart” dados a lume na DiVersos nº 7 - revista de poesia e tradução de José Carlos Marques).
   Creio que o mesmo se poderá dizer do trecho que aqui vai para se ler e que do mesmo modo explicita o seu mundo interior, vazado numa afirmação que afinal é interrogação sistemática mediante os ítens que o enformam e que, ao cabo, reflectem o homem e o autor fascinado ante os mundos de baixo e de cima – que o mesmo é dizer os do espírito e os da luminosa materialidade.


O LUTO A  ALEGRIA

Os amigos que estão
no seu pé de página
como em caixão florido
pelos tempos futuros
têm de nós o gesto mais perfeito -

um sorriso transido mas mesmo assim
verdadeiro
e muitas mãos para afagar lembranças
e muitos dentes luzindo para criar   o verão
e muitos olhos  em repouso para dizer   que é tarde

e muitos gritos para dizer que é cedo
e que é a hora de acordar
e de dormir porventura
e de bailar entre as árvores
e de correr entre as sombras
e a luz que elas provocam
e de sofrer um pouco
um pouco ainda
como crianças sem remorso  sem dor  sem amargura
de novo em viagem

sem efígie sonhada 
e já desaparecida.  
        

Jules Morot
in “Le mardis-gras”

                                      (Tradução de ns)

(Mais de e sobre Jules Morot, aqui)

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