segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Para que a Terra não esqueça

 

329 crianças ucranianas estão desaparecidas,

mais de 12 mil deportadas para a Rússia


A informação é do gabinete do Procurador-Geral da Ucrânia. Desde 28 de novembro de 2022, há 329 crianças ucranianas em parte incerta. A estas somam-se mais 12.034 que foram deportadas para a Rússia — informação que Moscovo não confirma…

A informação foi partilhada na rede social Telegram e citada pela imprensa do país. O gabinete informa ainda que 440 crianças morreram vítimas da guerra e 851 estão feridas.

(Dos jornais)


  Grande é a poesia, a bondade e as danças. Mas o melhor do mundo são as crianças.”, dizia Fernando Pessoa. Mas pelos vistos para o sr. Putin são objecto de chantagem e de agressão. E mais não é preciso dizer.

 Freitas Afonso


Recordando...

 

Um poema de

Carlos Garcia de Castro






OS MELROS

 

A tarde já está branca, e então os melros

voam de novo com os seus estalidos.

Gosto de vê-los, quase nunca falto,

a qualquer hora quando penso em mim.

Mas não me salta nunca cá de dentro

um ser de forma alada, tracejante,

ao gosto dos poetas competentes

e das mais gentes tidas nesse gosto.

Esta a surpresa repetida e calma

da liberdade no voar dos melros.

Que os melros são reais e são concretos

na sua zoologia – sem poetas.

Ainda que banal, não imagino

que se reparta o coração num pássaro

a saltitar disperso nas ramagens.

É meu dizer de mim que sempre tive

– mais homem que poeta, ambos vulgares,

vida e saber sem mais comparações.

Porque um poeta como eu, ingénuo,

não tem ideias nem pesquisas únicas,

é incapaz de conceber os pássaros,

limita-se a dizer que existem pássaros

quando o que vê são na verdade os pássaros.

Assim banal, disfarço a velha imagem

dos outros imitando um coração,

fingida a fantasia que há nos pássaros.

 

Agora com os melros, isso não!

 

Com estes melros não, porque são meus,

voam de novo à tarde com estalidos,

levam no bico um cibo do quintal,

e este quintal é meu – e destes melros.

Gosto de vê-los, quase nunca falto,

 a qualquer hora quando penso em mim.

 

Mais homem que poeta, ambos vulgares,

o meu dizer dos melros já deixou

de ser um sentimento, é crueldade.

Passava bem sem eles no quintal,

mas tenho medo de os deixar de ver.

 

Quando será que um pássaro se alastra

para existir à tarde – com surpresa?

 

Agora tenho de pensar em mim.

Aos melros tanto faz, quando eu faltar.


Nicolau Saião, Na manhã clara

 


    Não é soturna mas misteriosa. Um antigo lagar. Todos os dias a via, aquela casa casarão agora abandonada. Só frequentada, agora, por pombos. Segundo andar e sótão a toda a largura do edifício. E janelas, janelas de arcada, janelas em ogiva, janelas largas em sacada por onde se faziam subir as saquiladas de azeitona nos tempos da minha infância e adolescência. Todos os dias a via – que fica mesmo em frente do Museu aonde estacionava profissionalmente e onde todos os dias passava. Que todos os dias recordo.    

   Todos os dias? Todas as horas, que da janela do meu gabinete o via e hoje catrapisco na memória sem ser sequer preciso virar os olhos dentro da cabeça.

   Casarão à maneira do Lovecraft, que se ele o pisgasse logo o meteria em estória de espantações. Agora, deserto de presenças humanas, já com algumas vidraças partidas, é a guarida dos pombos, dos pombos que como dantes lhe andam sempre em volta (são dum columbófilo encartado, desses que fazem largadas de Oviedo, Sevilha, Vila Nova de Poiares, o mundo…) sem ousarem entrar. Netos - bisnetos, quero eu dizer - dos que por aqui esvoaçavam quando eu era tão-só um puto.

    Lançavam-se papagaios: feitos de papel de seda – azul, vermelha, amarela, duravam pouco mais que um dia mas prolongavam-se pelo tempo. E passavam as mulheres da queijaria, a soldadesca e os pedreiros, gente de cara seca e braços encordoados e alguns ficavam a olhar por um momento antes de irem abancar na taberna do sr. Abreu, taberna assim a modos que fina onde os manejadores do maço e das pachadas de cimento entravam com unção de quem entra já não digo num templo mas pelo menos numa sacristia. Os odores das iscas cozinhadas à maneira, o belo carapau de escabeche que nunca mais senti como presença de sedutoras iguarias, o moço de lábio leporino que levava as travessas carregadas de copos e de terrinas substanciais… E o senhor primeiro-sargento Cabanas (o que mais tarde me ensinou a esgrimir) que depois do toque à ordem ia buscar o jantar p’ra ele e sua senhora, acompanhado pelo impedido pacholas, soldadinho raso das bandas de Montargil que lhe transportava os comeres.

   E o fiscal de isqueiros, funcionário da repartição de Finanças a quem se atribuíam também suspeitosos outros mesteres e que afinal, depois da bernarda abrilina, se revelou velho militante do partidão e distribuidor, pela calada da noite, de corajosas papeladas subversivas. E a dona Virgínia, cordial vizinha e esposa do senhor Casaca, que fazia brinquedos de madeira – camionetas coloridas, rocas e piões a granel e palhaços que davam cambalhotas suspensos numa barra de arame grosso. E os altares de S. João donde escorria e onde cantava a água numa ribeirinha de cenário, e a menina Maria que foi mestra de gaiatos toda a vida, e o polícia senhor Laranjo que era da terra da minha mãe e por isso eu não temia porque me dava ervilhanas e, já quase na reforma, um dia teve de me ir deter com um colega também das minhas relações, por mando do governador civil porque eu agia demais no velho Clube de Futebol do Alentejo e estava dado como perigoso oposicionista.

   Os pombos. Dizia eu – os pombos. Parentes dos que todas as manhãs me acordam, pois vivem no rebordo da marquise por cima da janela do meu quarto, abandonados que foram por um cidadão columbófilo com demasiado apego a Baco e que por isso, flechado na figadeira, lá foi ter com o comandante dos olimpos romanos antes de tempo.  

   Pombos, pombinhos? Dum suave arrulhar para quem é um dorminhoco convicto. E lá no velho lagar, que eu bem a vi quando uma vez não me contive e espreitei pelo arrombado duma porta, há uma poeira muito fina no ar de outrora iluminada brevemente por raios de sol que lhe cruzam a penumbra mais consistente e onde o silêncio para quase todas as horas se condensa e vai perdendo no tempo vivo.


Frederic Chopin, Joie de vivre

 



segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Para que a Terra não esqueça

 


ns



Consumo recreativo de "gás hilariante"

é preocupação crescente em Portugal e na Europa


O Observatório Europeu das Drogas e da Toxicodependência alerta sobre evidências crescentes da venda deste produto em botijas e balões para consumo, confirmado pelo número de apreensões em 2021.

(Dos jornais)

 

Les portugais sont toujors gais”, lá diz o ditado antigo dos franceses...

Marcelino Novais


Joaquim Saial, O Bob é um chato

 




Estão ali na estante,

juntinhos uns aos outros,

os meus 32 CD (até agora) do Bob.

Isto, para além do único vinyl,

o fabuloso "The Times They Are A-Changin'"

que me fez querer ter umas botas de couro espanhol

que afinal saíram de vaca portuguesa,

raios, muito mais feias que as dele.

 

Ah! ah! ah!, aquela cara de carneiro mal morto

e aquele boné em bico do primeiro disco,

superados pela ternura da capa do segundo,

com a Suze Rotolo prestes a deixá-lo

e que eu só soube quem era décadas depois.

O par enlaçado, no frio gélido da cidade,

parecia falar de seu amor,

de facto em roda livre (ou coisa parecida),

como o título anunciava.

 

E depois todos os outros discos

(que pena faltarem-me uns quantos)

que não cito, para não parecer pedante,

até ao meu último, o das sombras nocturnas,

com autorias de Sinatra, Prévert, Berlin, Gillespie e outros.

Valente, o Bob a cantar de crooner

e uma América tão americana na sua voz

e tempos passados a chegarem aos meus ouvidos

e eu a pensar "Estás em forma, pá!"

E ele sem querer saber de mim,

nada ralado com o que penso…

 

E as histórias, tantas, dele?

O desastre de mota que lhe nasalou a voz,

os negócios esquisitos de armas,

as zangas dos parceiros da folk

provocadas pela rebeldia iconoclasta

da sua guitarra eléctrica Fender Stratocaster

que usava como se fosse um misto de metralhadora e harpa

e os puristas a julgarem por erro

que ele se chamava Bob Guthrie…

 

Mas era só o Bob e sempre foi o Bob,

Antes, depois e sempre, sempre foi o Bob.

Nem Zimmerman ele quis ser, só Bob e Dylan,

o rapaz de Duluth, Minesotta.

 

O Bob envelheceu comigo (ou eu envelheci com ele).

Aqui em casa, aparece-me a toda a hora,

como um amigo de sempre que vem beber um copo

de manhã, pela hora do café,

às cinco da tarde, tempo de touros e gin,

ou à noite, acompanhando-me na escrita,

em poemas como este, feito com ele.

Ou ouvindo-o no seu programa de rádio

que começa com a voz doce da locutora

"It's night time in the big city…"

e depois continua com a dele,

apresentando a América

mais teluricamente musical que existe,

escolhida por ele,

bem escolhida,

a dedo,

por ele.

 

Ei-lo agora a cantar aqueles cinco minutos de "Duquesne Whistle"

e o balanço a fazer-me ondular na cadeira,

acompanhado pela bateria do Tony Garnier.

E penso: Bob, és o maior,

mas és um grande, grande chato,

ó bolas, és sim, um chatarrão.

Que parva ideia aquela de falhares o recebimento do Nobel,

que tontice descabida.

Que chato, que chato que és.

É pá, não se faz!...

Ninguém te entendeu, ficaste mal visto

e a pobre da Patty até se enganou

no "Hard Rain's A-Gonna Fall"

e olha que te representou mais que bem

mas ela sabia que eras tu

quem ali devia estar.

A tua amiga sabia.

E tu fintaste-nos,

meu sacana.

Que fiasco, tu, nesse dia, que fiasco!...

Não há dúvida, és um grande chato, Bob,

Aquilo não se faz…

 

E depois vieste a Lisboa

e esgotaste a sala dita "de gladiadores".

Mas não disseste ao pessoal nem "Hello!" nem "Goodbye!"

E eu que estive para te ir ver…

Ainda bem que me cortei à última hora,

pois se tivesse ido, mandava-te um assobio,

era limpinho.

 

Pfttt!, Bob, és um grande chato.

 

Mas, mesmo assim, Bob,

és o maior.


Do livro “Poemas para a Hora de Ponta”, de Joaquim Saial

Ed. Cordel d’Prata, Carnaxide, 2020

Nicolau Saião, As últimas leituras e a última carta de Schubert

 


ns, A música


     Em qualquer pessoa que à música se entregue sem preconceitos sempre ecoará uma melodia de Franz Schubert – o Schubert “pequeno, rude e mal ataviado“ que numa manhã de Setembro, ante o gáudio de uma vintena de alunos e cultores do bel-canto, se apresentou no Conservatório de Viena para mostrar o que valia, num desses eventos que usam apelidar-se “exames de Estado” das Academias (1). Mas igualmente um outro Schubert, o de óculos luzindo nas trevas sociais duma Europa que a breve trecho se veria mergulhada em convulsões que aparentemente nada fazia adivinhar, o rapaz “de coração fagueiro” que amava os campos floridos e os bosques olorosos – esses lugares onde, em potência, palpitava a imaginação a que os altos espíritos sabem ser sensíveis e onde se viaja na direcção certa, sob as madrugadas de feliz boémia criadora. E, também, o Schubert dos tempos do fim, pouco a pouco desfeito pela miséria económica e os farrapos dum sonho que não cabia nos estreitos limites duma sociedade espartilhada por regras desajustadas – esse Franz Schubert que a “indústria cultural”, mesmo  que o tente, não conseguirá nunca devorar nem escurecer, o “pobre rapaz de olhar ingénuo” no fim da doença que iria levá-lo, lendo custosamente, mas com todo o prazer de um homem que entendia, as páginas exaltantes de liberdade dum James Fenimore Cooper habitante do lado de lá do Oceano. Esse outro lado onde sabia bem viver e onde as planícies abertas eram percorridas por um grande hausto de ar novo e de aventura.

   É Alexander Woolcott quem nos conta: ”Certo dia de Novembro de 1828, Franz Schubert morria de febre tifóide, em casa dum irmão, nos subúrbios de Viena. Apenas um ano antes, empunhando archotes, um grupo de amigos acompanhara o grande Beethoven à sua sepultura em Wahring e, na volta, fora Schubert de entre eles quem, erguendo o copo, propusera um brinde àquele que iria a seguir. Chegara a sua vez e o inditoso e acanhado rapaz, de corpo cansado e desajeitado, olhos míopes e coração faminto, não daria mais canções ao mundo. Jamais, até então, havia aparecido alguém dotado de tanto talento para a melodia. Foi uma fonte inexaurível de música, e nunca tão fértil como nos últimos anos da sua curta vida.(…) E qual foi a última coisa que Schubert escreveu? Uma carta – uma carta ao seu amigo Schober, com quem no princípio do ano tinha morado na estalagem do “Porco Espinho Azul”, até que se mudou por não poder pagar a metade do aluguer que lhe cabia: 11 de Novembro de 1828 – Caro amigo: Estou doente e há 11 dias que quase não como nem bebo. Estou tão cansado e prostrado que mal me posso mover da cama para a cadeira e vice-versa. Rinna é que cuida de mim. Qualquer alimento que tome, lanço-o logo fora. Nesta situação aflitiva, poderia V. mandar-me alguns livros que me animassem? De Fenimore Cooper já li “O último Mohicano”, “O piloto”, “O espião” e “Os pioneiros”. Se tiver mais algum livro seu, agradecia que o deixasse no Café da Srª Gogner. O meu irmão, que é a consciência em pessoa, mo fará chegar às mãos da melhor forma. Do amigo, Schubert.

  E conclui Woolcott: “Quando pensamos em Franz Schubert, comovido no seu leito de morte ao escutar o ruído de um galho estalando sob o passo de um índio nas florestas à beira do rio Mohawk – que pena não ter, nessa altura, sido ainda escrito “O caçador de veados”! – de certo modo os anos entre 1828 e o presente momento ficam como que riscados do calendário. Não somente a distância entre Cooperstown e Viena se encurta: o espaço de permeio também desaparece. E, de repente, achamo-nos tão perto do jardim de Schubert que podemos ver o vôo dum pardal, e de tal modo próximo da sua cabeceira que chegamos a ouvir o pulsar dum nobre coração”.

  A despeito dessa nobreza interior, foi ele sujeito de parcos amores consumados (uma Teresa Grob, uma Karolin von Estherazy pertenceram mais ao plano das vivências do coração forçadas pela miséria do tempo), substituídos por muitas horas empregues a trabalhar nos Cafés de uma Viena dada à alegria e aos folguedos, de conversas com amigos pelos atalhos e caminhos vicinais dos arredores. Schubert, que nunca pertenceu a qualquer ordem iniciática, deu-se contudo com gente diversa, incluindo alguns frater e era sensível à música mais hermética de Mozart como “A flauta mágica”. Mas o seu universo, tão povoado de seres de outro plano mais profundo, reconduzia-se à terra, ao quotidiano citadino ou campestre, transfigurava-se na existência que ele sonhara um dia alcançar mas que a dura realidade societária acerbamente desmentiu. Nessa Viena que pouco depois da sua morte sentiria os abalos dos novos tempos, o destino que lhe coube foi o de incessante tangedor das esferas da Natureza, pois este mourejador musical era um cativante companheiro de pacatos festins e de largos passeios, amando como bom andarilho o sol e o cantar dos pássaros, as merendas e os banhos nas ribeiras campestres (2).

   Pode afirmar-se sem margem sensível de erro que só na sua “Viagem de Inverno” palpitam amargamente os fantasmas da nostalgia e do desespero melancólico, a plena certeza da proximidade da morte.

 

(1) Principalmente depois do filme “Amadeus” de Milos Forman, Salieri viu colada a si uma lenda absolutamente injusta de mediocridade. Aquilate-se do valor dessa lenda

pela sua atitude quando foi presidente do júri que examinou Schubert: ao terminar a prova, ajoelhou-se perante ele e beijou-lhe as mãos. Mais: com Rueziezka, completou-lhe a educação artística e protegeu-o sempre que pôde.

 

(2) Schubert tinha muitos amigos, que devotadamente o acompanhavam nas famosas “schubertíadas”e em excursões pelas estalagens dos arredores que faziam jus à estima que lhe devotavam e à sua maneira de ser aberta e comunicativa. Pois logo a maldade dos bons burgueses de Viena tentou, caluniosamente, ver nisso uma característica de teor sexual em geral mal encarada pelos hipócritas pseudo-moralistas.


Franz Schubert, Serenade

 



segunda-feira, 14 de novembro de 2022

Para que a Terra não esqueça

 

O sagrado e o profano de Rosa Ramalho em exposição



Rosa Ramalho, Diabinho músico



Viveu entre os séculos XIX e XX, mas na sua cabeça cruzavam-se tempos e espaços arcaicos. Rosa Ramalho pode agora ser (re)descoberta: há mais de cem peças inéditas para ver no Palácio da Cidadela.

(Dos jornais)

 

  No panorama geralmente medíocre das exposições de arte nacional contemporânea, com obras de pintura/escultura conceptual e pós-moderna vazias de conteúdo ou simplesmente ilustrando gigantismos pacóvios, a obra de Rosa Ramalho é uma lufada de ar fresco incontornável. A visitar sem qualquer receio, com o apreço que merece.

Mateus de Albuquerque


Três poemas de Rui Magalhães

 


ns, O viajante



Do bosque que acolhe a solidão dos pássaros

não há relatos deste lado do mundo.

Apenas a suspeita trazida pelo viajante

que uma noite falou de pássaros sem sombra

de pássaros que cantam e não se ouvem cantar.

E do sábio que habita no bosque.

                            *

Deixou os apetrechos junto ao fogo

e subiu a colina até ver além da noite.

Não lhe faltaram armas nem crenças

nem o corpo lhe falou de qualquer desejo.

Ficou ali até o fogo se apagar

e só então regressou à vida.

                           *

Para trás ficaram campos intermináveis

e cidades ardilosas.

À sua frente há só o silêncio da viagem

e as memórias entrevistas no início da noite.

Embora o viajante seja despojado de crenças

tem uma particular estima por essa verdade.

 

In “O viajante exposto à verdade das coisas”


Nicolau Saião, O prazer de citar

 


Fernando Aguiar



  Tenho um gosto pronunciado pelos provérbios e as citações.

  Os provérbios porque, independentemente da sua justeza, por vezes são pérolas de fantasia verbal; as citações porque correspondem a momentos excepcionais no espírito dos autores das frases, quando a mente, em fase ascendente e profundidade fecunda, traça girândolas que jamais se apagam.

  Além disso, ambos são úteis. Os primeiros servem muito bem para nos acautelar o dia-a-dia, tornando-nos mais atentos às eventuais ciladas; os segundos, além de serem uma homenagem reconhecida a quem as pronunciou ou escreveu, dão sempre sinal sonoro que ilumina tudo em torno.

  Assim, por exemplo, quando um político astuto e cheio de ronha vem prometer mundos e fundos, tirando o pigarro uma pessoa pode responder-lhe parafraseando Churchill: " Pois... Como se eu não soubesse que a política é a arte de ajudar o público a não tratar dos assuntos que lhe interessam...". E, se um malacueco qualquer até nós vem com falinhas mansas para nos interessar num negócio chorudo e de mão-beijada, podemos raciocinar: "Tá bem, deixa...Como se eu não soubesse que não dá o frade do que bem lhe sabe!". Se alguém se queixa de que, num estabelecimento, comprou um produto bom e barato, desses que a preclara televisão nos mete pelos lúzios adentro e que a breve trecho pifou, pode pensar com equilíbrio: "Fui um saloio... Então não sabia eu que as pechinchas dão em requinchas?". E, ao saber que num determinado serviço público certos funcionários andaram a lesar o contribuinte mediante actos de pequena ou grande corrupção, abafados pelos superiores factuais, pode comentar com filosofia: "Os javardos, na lama, são donos como el-Rei no Paço...". E a alguém que se admire de que num areópago os representantes populares passem o tempo a bulhar por dez réis de mel coado, esquecendo os interesses da nação, pode responder-se com sensatez: "Deixe lá... Se se pusessem de acordo é que se calhar era mau. Pois não sabe o meu amigo que quando os barões se abraçam quem leva as pauladas é o servo?". Espanta-se uma pessoa porque os inquéritos sobre os casos das contas de… e das luvas de... demoram a deslindar-se? É referir-se-lhe, com bonomia: "Tenha lá tento! Então nunca ouviu dizer que a roupa suja deve ser lavada em família?". E ao fabiano que comente o ar patibular de certas figuras públicas, pode esclarecer-se sensatamente, a exemplo de Oscar Wilde: "Note, meu caro, que cada sujeito tem a cara que merece. Aliás, a partir dos trinta anos cada um é responsável pela cara que tem...". Vem um tipinho, muito moralista, metido na sua indumentária a dar conselhos à gente, pela televisão e pela rádio, alertando-nos para a nossa falta de contenção na fala e para o nosso amor ao mundo, ao dianho e à carne? É repontar-se-lhe de pronto: "Sim, sim...Bem prega frei Tomás". Ou, como escreveu um dia Benjamin Péret, "Quando eu tinha 20 anos, os espertalhaços avisavam-me: vais ver quando tiveres 40 anos! Tenho 40 anos - não vi nada...".

  Pela minha parte, digo que embora os ditames e as citações sejam inúteis para ultrapassar certas situações de facto (vejam, por exemplo, se é possível acabar com o abuso de poder de certos donos dos grandes dinheiros com um provérbio jogado à cabeça do argentário) o que não admira pois lá reza o ditado sobre o trinta-e-um de boca, e sabe-se que cantar é bonito mas não enche barriga, serei sempre apreciador de tão concisos conceitos.

  Bom, mas calo-me já para não correr o risco de algum leitor mais afoito me dizer fique-se com a sua sabença que eu fico-me com a minha mantença ou, pior ainda, vozes de jerico não chegam ao firmamento.

   E não me assistiria, está de ver, o direito de responder com uma parelha de coices, como fazem certas coléricas personagens que, por nosso azar, transitoriamente nos tratam do quotidiano...


Scorpions, Always somewhere

 



segunda-feira, 7 de novembro de 2022

Para que a Terra não esqueça

 

Investigação revela novos horrores em Bucha

 

Segundo a investigação, havia uma palavra de ordem para o que era preciso fazer em Bucha: "zachistka" (limpeza). Um soldado conta à mãe que as ordens eram para abater crianças, mulheres e idosos.

(Dos jornais)

 

  É a ideia que os invasores russos fazem de “libertação”. Igual à de Hitler na Checoslováquia e de Stalin na Polónia, durante a segunda guerra mundial.

  Avelino Carredo

 

  Os tipos e tipas que também entre nós fazem contorcionismos para justificar Putin e a camarilha também têm as mãos manchadas de sangue. A sua falta de vergonha e cinismo são como os dos que agem no terreno de forma criminosa.

  Mourinho Cabral


Um poema de Anna Swir

 




Por dentro


A caminho de tua casa para uma festa de amor

a uma esquina vi

uma velha pedinte.

 

Peguei-lhe na mão,

beijei-lhe a face delicada,

falámos,

por dentro era como eu,

a mesma natureza,

percebi logo isso

como um cão conhece outro

pelo cheiro.

 

Dei-lhe dinheiro,

não conseguia afastar-me dela.

No fim de contas, precisamos

de alguém que nos seja próximo.

 

E depois não sabia já

por que estava a ir para tua casa.

 

  (Tradução de Francisco Craveiro de Carvalho,

 com base em tradução inglesa de Czeslaw Milosz & Leonard Nathan)


  Anna Swir (Swirszczynska), 1909-1984, nasceu em Varsóvia. Membro da Resistência Polaca, serviu como enfermeira durante a Revolta de Varsóvia tendo, a certa altura, estado a uma hora de ser executada, antes de ser poupada. Autora de seis recolhas de poesia, Swir descreve frequentemente o sofrimento que testemunhou durante a guerra.


Nicolau Saião, Gilgamesh ou A Aposta impossível

 


ns



  Seria fácil imaginar um tigre a comer erva, assim como um cordeiro a engolir a pitança. Todavia… Todavia estou a lembrar-me, ao calhar dos minutos, daquela célebre hipótese de Mark Twain: “Se Moisés não tivesse existido, teria existido decerto outro indivíduo com o mesmo nome”. E funções, evidentemente, acrescento de minha lavra. Aqui, entra Chesterton em cena, peso-pesado das metafísicas ligeiras mas reconfortantes: “Eu nunca minto, a não ser que seja absolutamente necessário”. Pois, é como na História não reciclada pelos descendentes ou herdeiros de Walt Disney. Velha mania de ocupar os lugares todos, de preencher o tal vazio assustador dos metafísicos? Ou apenas sensatez suficiente para que saibamos, definitivamente, que onde está um baú não pode estar uma cadeira de baloiço, assim como onde está um inteligente não podem estar sete idiotas?

   Em trocos miúdos: o que se aponta é de facto para o simulacro da “hybris” revista pelos sucessivos Concílios. Esses tais que nos quebraram a cara como o faria um soco de pugilista desempenado, sem que no entanto em simultâneo nos tratassem da alma que como se sabe se multiplica nas celestes moradas em graus de aperfeiçoamento singular. Questão intemporal de ascensões no etéreo, digamos, ou de quedas corporais. Ou, melhor ainda, o apelo fascinado de certos mundos paralelos que nos oferecem a ciência e a religião oficializadas, certas paisagens serenas ou infernais cuja traça se ergue para logo se desmoronar, como em Hollywood.

   Aqui entre nós, que pouca gente nos escuta: quem é que não sonhou ainda em mudar de rota, uma vez por outra, mesmo sabendo que o ser-se isto implica necessariamente não se ser aquilo, sendo a Vida como é (ao que alguns dizem com sensatez maldosa) não propriamente uma escolha mas a impossibilidade de se terem dois destinos?

   Com o que, pelo que, conclui-se sem mais demoras que um tigre a comer erva só nos anúncios da margarina Custódio ou do automóvel Tortilha. Ou nas estórias da Carochinha que os malabaristas da coisa pública, finamente, nos distribuem pelas rádios e têvês.

    Digamos com certa inocência, como nas doces festas de anos de antanho: saibam lá vossências que há pouco tempo atrás um sábio que é também robusto memorialista – trata-se de François Jacob – assinalou que a existência mais parece coisa de biscateiro que de engenheiro, mesmo genético. As somas eventuais não apagam nem destroçam e muito menos repelem o já construído. É no género do “Blade Runner” ou dos fabulosos bricabraques de Tinguely. Coisa de truz – e eu fico-me um bocado a rir das tiradas dos que compenetradamente afirmam nos media que estão muito atentos e um pouco trémulos ante a possibilidade de se multiplicarem em provetas os hitlers, os stallones e outros hermanjosés. Mas não foi sempre a sociedade, além da ciência e das técnicas que lhe estão nos arrabaldes, uma perigosa brincadeira? Se no próprio laboratório do Éden, onde os elohins oficiavam… - mas deixemos isso por ora.

    Creio que fará sentido concordar com Thomas Mann quando este refere, nos intervalos do seu sonho montanhês, que ao nível das concreções superiores existe como que uma actuação alquímico-hermética do coração humano, uma renovação de todas as fibras do ser que nos força a ir em busca do conhecimento capaz de nos fazer compreender que os passeios pelas margens dos rios, as idas ao cinema ou ao circo de mão na mão, o acordar no azul penumbroso dum quarto às três da tarde ou às quatro da manhã são o equivalente de coisas que a mística só pode explicar de forma aproximativa. (Dantes agia-se de forma expedita e suave: calabouço com eles e uma eventual passagem pelas brasas). E talvez faça sentido, também, meditar nesta frase de Nietzsche que, como num espelho mágico, nos diz lá do fundo: “Há alguns que nunca se tornam doces e apodrecem mesmo no Verão. Só a cobardia os sustenta no ramo”. E antes de entrarmos no fato bem passado da angústia existencial, vistamos por baixo uma camisola barata de senso comum: “Quando eu tinha vinte anos, diziam-me: hás-de ver quando tiveres quarenta anos! Pois bem: tenho quarenta anos - não me mostraram nada”. (Benjamin Péret).

    Venham cá dizer-me que a metafísica é uma serena imanência! Não os acreditarei, com mil bombas. Seja no masculino ou no feminino. Porque os deuses têm cara de tarráqueos nestes tempos que vão correndo. Quer dizer; antes de subirem aos céus experimentam em nós os seus destinos; não falando - porque isso dá excomunhão mais ou menos democrática - no cultivo intensivo e na intensa proliferação de santos, aspecto que não será de desconsiderar. Na verdade é tudo uma questão de símbolos.

    Eis senão quando que Gilgamesh, por causa das vozes de sempre (já com Joana d’Arc irá ser alegadamente o mesmo incómodo) se decidiu a tomar da capa e do porrete e abalar para o deserto. Ia em busca da flor azul, como nos contos de fadas? Parece que não, o que estava em causa era tão só a imortalidade e não a saúde e a cura por extenso (úlceras, cegueira, tiro de pistola no flanco, enfarte de miocárdio). E então deu-se que Enkidu, ser primordial e selvático, inocente como um padre cura do breviário, lhe apareceu pela frente – os braços peludos de atleta, os olhos de vedeta das matinés adolescentes, a naturalidade de futebolista ferrabraz, a figura talhada ao jeito das fitas de Spielberg… e foi o coup de foudre conforme reza nas tábuas de barro. Coisa mística, de resto, como nos conta a seguir um velho papiro (apócrifo?). Saborosa e interdisciplinar.   

  Contudo…

  Contudo, como já cá se ficou sabendo, os cordeiros não comem carne e os tigres muito menos tasquinham a ervinha tenra. Gilgamesh, algo ingénuo e estupefacto, viu aparecer de chofre coisas adustas no corpinho empolgado de Enkidu: tinha de se render à evidência, a metafísica às vezes fica claramente ultrapassada pelas circunstâncias do momento em tempo real, a filosofia e os textos pré-diluvianos são muito bonitos mas não servem, de todo, em determinadas ocasiões: Gilgamesh, com a personalidade enrodilhada, as roupas num farrapo, começou a perceber que Enkidu não era tão angélico e abstracto como nas ficções, mais parecia um gigolo do Parque Mayer, a braguilha desapertava-se-lhe em alturas muito impróprias e um arfar suspeito punha-se a trabalhar como um motor de avioneta. Gilgamesh concluiu então que os mitos são coisa fina mas não safam a virtude de um homem de brios, co’os diabos. Tratou, rapidamente, de se pôr a andar enquanto dizia de si para si que é inútil um zé-maria enlear-se no golpe da mágica/mitológica compreensão absoluta com um zé-antónio, porque então o zé-antónio transforma-se noutro zé-maria e tudo volta ao princípio.

  Circular, como nas fábulas iniciáticas. De sorte que o nosso herói, já com a escolaridade pessoal toda empinadinha, aprofundou-se finalmente pelo rosto da deusa, que mais adiante no relato o esperava a pé firme. “Será este pois o sentido da Estória que se conta depois do repouso do Senhor, quando Adão viu, entre assustado e divertido, o pirilau crescer com denodo ao contemplar o fruto da sua costela?” perguntará, do lado, o leitor com ironia.

    Na verdade, o andrógino inicial é coisa com certa piada, talvez, mas só faz sentido nos contos de proveito e exemplo mediante os quais se chega a conclusões diametralmente opostas consoante se for anjo ou demónio. Enoch sabia disso (e era esta a sabedoria dos antigos escribas, que só por irrisão se crismariam de hipnotizados. Adiante). O que realmente faz brilhar as pupilas da existência, essa existência séria que o grande Humboldt tão bem escrutinou, é o facto de haver opostos com a autonomia que dá origem às novelas surpreendentes. De resto, não. E foi nisto certamente que o Alfa-Ómega pensou, ele que é princípio e meio e parece que não tem fim e que, experiente até mais não, tem para além dos limites a legítima lábia e o conhecimento da matéria.

    Mas seria, com franqueza, de esperar coisa diferente? Como dizia outra vez Chesterton, depois de ter relanceado a lady do distrito de Belgravia com olho maroto, “Os amores platónicos, como todos os tónicos, são apenas um estimulante”. Se não acreditam, vão perguntá-lo a Gilgamesh.

     À Deusa, quer-se dizer…


Mozart, Lacrimosa from Requiem

 



Aos confrades, amigos, adeptos e simpatizantes

     Devido a um problema informático de última hora, não nos será possível fazer a postagem desta semana.    Esperando resolvê-lo em breve,...