Estão ali na estante,
juntinhos uns aos outros,
os meus 32 CD (até agora)
do Bob.
Isto, para além do único
vinyl,
o fabuloso "The
Times They Are A-Changin'"
que me fez querer ter
umas botas de couro espanhol
que afinal saíram de vaca
portuguesa,
raios, muito mais feias
que as dele.
Ah! ah! ah!, aquela cara
de carneiro mal morto
e aquele boné em bico do
primeiro disco,
superados pela ternura da
capa do segundo,
com a Suze Rotolo prestes
a deixá-lo
e que eu só soube quem
era décadas depois.
O par enlaçado, no frio
gélido da cidade,
parecia falar de seu
amor,
de facto em roda livre
(ou coisa parecida),
como o título anunciava.
E depois todos os outros
discos
(que pena faltarem-me uns
quantos)
que não cito, para não
parecer pedante,
até ao meu último, o das
sombras nocturnas,
com autorias de Sinatra,
Prévert, Berlin, Gillespie e outros.
Valente, o Bob a cantar
de crooner
e uma América tão
americana na sua voz
e tempos passados a
chegarem aos meus ouvidos
e eu a pensar "Estás
em forma, pá!"
E ele sem querer saber de
mim,
nada ralado com o que
penso…
E as histórias, tantas,
dele?
O desastre de mota que
lhe nasalou a voz,
os negócios esquisitos de
armas,
as zangas dos parceiros
da folk
provocadas pela rebeldia
iconoclasta
da sua guitarra eléctrica
Fender Stratocaster
que usava como se fosse
um misto de metralhadora e harpa
e os puristas a julgarem
por erro
que ele se chamava Bob
Guthrie…
Mas era só o Bob e sempre
foi o Bob,
Antes, depois e sempre,
sempre foi o Bob.
Nem Zimmerman ele quis
ser, só Bob e Dylan,
o rapaz de Duluth,
Minesotta.
O Bob envelheceu comigo
(ou eu envelheci com ele).
Aqui em casa, aparece-me
a toda a hora,
como um amigo de sempre
que vem beber um copo
de manhã, pela hora do
café,
às cinco da tarde, tempo
de touros e gin,
ou à noite,
acompanhando-me na escrita,
em poemas como este,
feito com ele.
Ou ouvindo-o no seu
programa de rádio
que começa com a voz doce
da locutora
"It's night time in
the big city…"
e depois continua com a
dele,
apresentando a América
mais teluricamente
musical que existe,
escolhida por ele,
bem escolhida,
a dedo,
por ele.
Ei-lo agora a cantar
aqueles cinco minutos de "Duquesne Whistle"
e o balanço a fazer-me ondular
na cadeira,
acompanhado pela bateria
do Tony Garnier.
E penso: Bob, és o maior,
mas és um grande, grande
chato,
ó bolas, és sim, um
chatarrão.
Que parva ideia aquela de
falhares o recebimento do Nobel,
que tontice descabida.
Que chato, que chato que
és.
É pá, não se faz!...
Ninguém te entendeu,
ficaste mal visto
e a pobre da Patty até se
enganou
no "Hard Rain's
A-Gonna Fall"
e olha que te representou
mais que bem
mas ela sabia que eras tu
quem ali devia estar.
A tua amiga sabia.
E tu fintaste-nos,
meu sacana.
Que fiasco, tu, nesse
dia, que fiasco!...
Não há dúvida, és um
grande chato, Bob,
Aquilo não se faz…
E depois vieste a Lisboa
e esgotaste a sala dita
"de gladiadores".
Mas não disseste ao
pessoal nem "Hello!" nem "Goodbye!"
E eu que estive para te
ir ver…
Ainda bem que me cortei à
última hora,
pois se tivesse ido,
mandava-te um assobio,
era limpinho.
Pfttt!, Bob, és um grande
chato.
Mas, mesmo assim, Bob,
és o maior.
Do
livro “Poemas para a Hora de Ponta”, de Joaquim Saial
Ed.
Cordel d’Prata, Carnaxide, 2020