ns, A música
Em qualquer
pessoa que à música se entregue sem preconceitos sempre ecoará uma melodia de
Franz Schubert – o Schubert “pequeno, rude e mal ataviado“ que numa manhã de
Setembro, ante o gáudio de uma vintena de alunos e cultores do bel-canto, se
apresentou no Conservatório de Viena para mostrar o que valia, num desses
eventos que usam apelidar-se “exames de Estado” das Academias (1). Mas igualmente um outro Schubert, o
de óculos luzindo nas trevas sociais duma Europa que a breve trecho se veria
mergulhada em convulsões que aparentemente nada fazia adivinhar, o rapaz “de
coração fagueiro” que amava os campos floridos e os bosques olorosos – esses
lugares onde, em potência, palpitava a imaginação a que os altos espíritos
sabem ser sensíveis e onde se viaja na direcção certa, sob as madrugadas de
feliz boémia criadora. E, também, o Schubert dos tempos do fim, pouco a pouco
desfeito pela miséria económica e os farrapos dum sonho que não cabia nos
estreitos limites duma sociedade espartilhada por regras desajustadas – esse
Franz Schubert que a “indústria cultural”, mesmo que o tente, não conseguirá nunca devorar nem
escurecer, o “pobre rapaz de olhar ingénuo” no fim da doença que iria levá-lo,
lendo custosamente, mas com todo o prazer de um homem que entendia, as páginas
exaltantes de liberdade dum James Fenimore Cooper habitante do lado de lá do
Oceano. Esse outro lado onde sabia bem viver e onde as planícies abertas eram
percorridas por um grande hausto de ar novo e de aventura.
É Alexander Woolcott quem nos conta: ”Certo
dia de Novembro de 1828, Franz Schubert morria de febre tifóide, em casa dum
irmão, nos subúrbios de Viena. Apenas um ano antes, empunhando archotes, um
grupo de amigos acompanhara o grande Beethoven à sua sepultura em Wahring e, na
volta, fora Schubert de entre eles quem, erguendo o copo, propusera um brinde
àquele que iria a seguir. Chegara a sua vez e o inditoso e acanhado rapaz, de
corpo cansado e desajeitado, olhos míopes e coração faminto, não daria mais
canções ao mundo. Jamais, até então, havia aparecido alguém dotado de tanto
talento para a melodia. Foi uma fonte inexaurível de música, e nunca tão fértil
como nos últimos anos da sua curta vida.(…) E qual foi a última coisa que
Schubert escreveu? Uma carta – uma carta ao seu amigo Schober, com quem no
princípio do ano tinha morado na estalagem do “Porco Espinho Azul”, até que se
mudou por não poder pagar a metade do aluguer que lhe cabia: 11 de Novembro de 1828 – Caro amigo: Estou
doente e há 11 dias que quase não como nem bebo. Estou tão cansado e prostrado
que mal me posso mover da cama para a cadeira e vice-versa. Rinna é que cuida
de mim. Qualquer alimento que tome, lanço-o logo fora. Nesta situação aflitiva,
poderia V. mandar-me alguns livros que me animassem? De Fenimore Cooper já li
“O último Mohicano”, “O piloto”, “O espião” e “Os pioneiros”. Se tiver mais
algum livro seu, agradecia que o deixasse no Café da Srª Gogner. O meu irmão,
que é a consciência em pessoa, mo fará chegar às mãos da melhor forma. Do
amigo, Schubert.”
E conclui Woolcott: “Quando pensamos
A despeito dessa nobreza interior, foi ele
sujeito de parcos amores consumados (uma Teresa Grob, uma Karolin von Estherazy
pertenceram mais ao plano das vivências do coração forçadas pela miséria do
tempo), substituídos por muitas horas empregues a trabalhar nos Cafés de uma
Viena dada à alegria e aos folguedos, de conversas com amigos pelos atalhos e
caminhos vicinais dos arredores. Schubert, que nunca pertenceu a qualquer ordem
iniciática, deu-se contudo com gente diversa, incluindo alguns frater e era
sensível à música mais hermética de Mozart como “A flauta mágica”. Mas o seu universo, tão povoado de seres de outro
plano mais profundo, reconduzia-se à terra, ao quotidiano citadino ou
campestre, transfigurava-se na existência que ele sonhara um dia alcançar mas
que a dura realidade societária acerbamente desmentiu. Nessa Viena que pouco
depois da sua morte sentiria os abalos dos novos tempos, o destino que lhe
coube foi o de incessante tangedor das esferas da Natureza, pois este
mourejador musical era um cativante companheiro de pacatos festins e de largos
passeios, amando como bom andarilho o sol e o cantar dos pássaros, as merendas
e os banhos nas ribeiras campestres (2).
Pode afirmar-se sem margem sensível de erro
que só na sua “Viagem de Inverno” palpitam amargamente os fantasmas da
nostalgia e do desespero melancólico, a plena certeza da proximidade da morte.
(1) Principalmente depois do filme “Amadeus” de
Milos Forman, Salieri viu colada a si uma lenda absolutamente injusta de
mediocridade. Aquilate-se do valor dessa lenda
pela sua atitude quando foi presidente do júri que
examinou Schubert: ao terminar a prova, ajoelhou-se perante ele e beijou-lhe as
mãos. Mais: com Rueziezka, completou-lhe a educação artística e protegeu-o
sempre que pôde.
(2) Schubert tinha muitos amigos, que devotadamente
o acompanhavam nas famosas “schubertíadas”e em excursões pelas estalagens dos
arredores que faziam jus à estima que lhe devotavam e à sua maneira de ser
aberta e comunicativa. Pois logo a maldade dos bons burgueses de Viena tentou,
caluniosamente, ver nisso uma característica de teor sexual em geral mal
encarada pelos hipócritas pseudo-moralistas.
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