IN
MEMORIAM DE ANTÓNIO SALVADO
(Castelo Branco, fevereiro 1936 – março 2023)
Há, neste acervo, um verso que a meu ver descreve com exactidão o mundo
da escrita de António Salvado: “só a natureza purifica os sons”, diz ele a dada altura no poema dedicado a
Claudio Rodriguez. (Claudio Rodriguez, sublinho, ou seja: um dos poetas
europeus onde a natureza se confrontou decisivamente com os sons duma
modernidade assumida, reencaminhada nos troços vicinais de um continente que
não perdera de vista a claridade da Grécia mas sabia ser impossível não a
tentar reconverter através do mergulho achado em Rimbaud e Dylan Thomas).
Poeta da natureza, António Salvado? Sim, mas
também da linguagem que a certifica, perpassa e ultrapassa. Conhecedor dos clássicos,
sempre soube viajar – como fica patente nesta pequena antologia – pela comovida
desconstrução da escrita.
E, assim, é um contemporâneo tanto dos que
se foram como de todos os outros que a seguir irão vindo.
Por último e ainda no continente da Poesia,
gostaria de relevar o trabalho incontornável de A.S. enquanto tradutor – e dou
ao termo trabalho, aqui, o seu exacto perfil e conteúdo não só de labor mas de encantamento
partilhável, uma vez que é disso que se trata: ser António Salvado, como a
meu ver tem sido, o poeta do seu poeta vertido em português sem jaça e com o
ritmo próprio e a figura de quem escreve como se em língua lusa este
escrevesse. - ns
CASA DO AMOR
Foi nas perenes coisas que aprendi
a ser: a casa do amor cercada
de ruas que subiam junto ao fim
do céu que sempre mais se prolongava,
de longos mudos maternais jardins
onde as eternas flores eram lagos
de fragrância ofegante colorida
e os lagos sol em água mergulhado.
E nela: o pão cantado sobre a mesa,
a bilha da ternura a renascer,
a pureza do linho a dedilhar
as palavras nos lábios entoadas…
deito longe a saudade: permanece
a casa do amor, em mim, perene.
MEDITAÇÃO
(à memória de Claudio Rodriguez)
Dos olhos e das mãos brotam as
coisas:
inocentes paisagens onde a vida
e a morte se insinuam e comprazem.
Feitas indagação, elas entregam
- mesmo longínquas – o fluir
constante
do sangue atravessando o pensamento.
De há muito que o sabemos caminhando:
somente a natureza purifica os sons
da chama inviolável que destrói
enganos: uma flor desabrochada,
rapariga na curva do distante,
calor do oiro na melancolia.
Daí, que a claridade estenda os
braços
a resvalar-se à voz: e invada os
veios
exaltados da pureza e bafeje
para que ouçamos dela o sussurrar,
como um astro súbito inesperado,
como a verdade plena de harmonia.
Em segredo, o pulsar do coração
traça novos destinos entre areia,
reconstruindo a casa à beira do
abismo
solidifica a água das correntes.
Em segredo. Os olhos abrem-se mais
e as mãos, hirtas p’lo frio
passageiro,
modelam outro espaço e outro tempo
para que o canto seja eternidade.
ANOS SE LEVA
Anos se leva a descobrir a pátria:
a terra onde existir p´ra sempre a salvo,
o barro que há-de modelar a alma,
a língua a ser sabida a ser falada.
E que os rios e serras e que mares
e que cidades grandes ou lugares,
que plantas animais
vão habitar
essas paisagens virgens a brotarem.
Porque o amor - uma conquista lenta -
precisa de passado e de presente
quando constrói os elos do futuro;
que a pátria seja em ânsia
toda a gente -
de mãos nas mãos e olhos indif´erentes
a quem não queira partilhar o fruto.
António Salvado