segunda-feira, 27 de março de 2023

Para que a Terra não esqueça

 

Agatha Christie é a mais recente vítima de censura


Expressões passíveis de incomodar o leitor estão a ser suprimidas ou alteradas nos romances policiais de Hercule Poirot e de Miss Marple.





Palavras como "nativo" ou "oriental", referências à etnia e tudo o mais que possa ofender "leitores sensíveis" estão a ser varridos para debaixo do tapete do politicamente correto nas reedições dos mistérios de Hercule Poirot e Miss Marple, da autoria de Agatha Christienoticiou o Telegraph. Os livros publicados pela Harper Collins juntam-se a uma lista cada vez maior de obras literárias amputadas.

(Dos jornais)

 


Não nos deixemos enganar, isto não é estupidez é sim pura ideologia orientada por meliantes “ativistas” sem escrúpulos que visam um novo tipo de inquisição.

Carlos Barradas



Porque não experimentam alterar o Corão? Se calhar as coisas não lhes iriam correr lá muito bem...

 

Raul Martins


Dois poemas de Floriano Martins

 


ns



3.

Algo nos torna mais que forma

dissolvida ou transfigurada

na matéria de nossos deslizes.

Respiro tua esquiva semelhança,

abres tua casa ao sigilo do nada.

Um grito imóvel, uma noite fixa

em seus próprios olhos, a terra

ilusória por trás de toda imagem.

O que refletimos não sabemos

se mera justiça ou dura asfixia.

 

4.

Wei Yin Wu temia que as trevas

fossem o desenho do coração,

que fosse a dor a casa do homem

e sangue a duração de seu êxodo.

Novos nomes doava a formas

já desfeitas em sua memória.

O próprio rosto não reconhecia,

nem mesmo o fulgor de seu olhar.

Indagava atônito sobre a luz do dia,

certo de seus racimos ainda visíveis.

 

in ÓLEOS DE TREVAS

 

José do Carmo Francisco, Postal nº 1 para Ana Isabel

 

Ontem vi o teu olhar duas vezes e lembrei os cauteleiros do meu tempo de menino - «Há horas de sorte!» A primeira foi de manhã e julguei ver na tua luz as buganvílias da minha filha Marta e os pneus de brincar do meu neto António no recreio do Jardim Infantil. Depois do almoço penso que vi de novo o teu olhar mas não o garanto pois pode ter sido a tua irmã gémea. À noite, «hora de sorte», era na TV o esplendor da vitória em Londres sobre o Arsenal, líder do Campeonato Inglês. Em 21 de Outubro de 1981 em Southampton o Sporting Clube de Portugal venceu o Clube da cidade por 4-2. Era também líder do seu Campeonato e tinha um jogador temido na Europa – Kevin Keegan. Jordão abriu a contagem aos 2 minutos e Manuel Fernandes fechou a mesma ao 88. Pelo meio outro golo do capitão aos 42 e um golo de Holmes na própria baliza aos 21. Em Portugal quase ninguém viu esse jogo; o videotape foi guardado na gaveta dum patrulheiro desportivo da RTP porque foi a primeira vez que uma equipa portuguesa venceu um conjunto inglês em Inglaterra e o ex-aluno da Universidade da Rabicha escondeu essas imagens, para ele insuportáveis. Em 1962 já havia muitos trabalhadores rurais na Estremadura que, de enxada ao ombro, pelo fim da tarde, diziam à porta dos poucos cafés desse tempo «Caluda, tá a dar a marcha do Benfica!» mas era, na verdade, o Hino da Eurovisão. Hoje é tudo diferente de 1981: já ninguém pode esconder os videotapes porque eles fazem parte apenas da memória magoada de quem, como eu, não esquece nem perdoa. Alguns desses ainda resistem e taparam com tinta preta a caricatura de um treinador na parede da Universidade da Rabicha.


Johann Sebastian Bach, Suite nº2, Minuete, Badinerie

 



terça-feira, 21 de março de 2023

Para que a Terra não esqueça

 


ns


"Igreja tem de pagar indemnizações às vítimas"

A procuradora Dulce Rocha diz que a reação da Igreja ao relatório da Comissão Independente mostrou "falta de empatia com as vítimas" e que a "ocultação" que durou "décadas" faz "parte do abuso".

(Dos jornais)


Sem comentários


Um poema de Céline Arnauld

 

OS MEUS TRÊS PECADOS DADA

 

Sobe, sobe a colina

oh roda esmagada roda

quebrada pupila amarga

amargo abrunho dos bosques

oh tu que sobes assobiando

e que és um cobertor velho

o hino das crianças amadas.

Os olhos dos papagaios são bolinhas enganadoras.

Vós não sois deuses, mantilhas

ou escuros guarda-chuvas, nem mecanismos de toque

de alvorada.

Vós sois o anfitrião dum Amphion sem lira

uma vela sem poesia

uma majestade sem reflexos de música

o nascimento semanal dum girassol

- o girassol da minha prece –

e os meus olhos de roda quebrada

que envio ao grande mágico Merlin.

Para me castigar irei imolar-me numa adega.

 

Este é o pecado do fogacho quase extinto.

 

Ah sorte malina!

Beber uísque numa flor-de-lis

discussão espiritual da minha traição a sós

com a sua imagem

e depois dormir, dormir até que uma esmola

dos olhos tombada deslizasse nas minhas veias

Mas o que dei ao papagaio

não, para vós não é –

Amizade não se escreve em estenografia.

 

E é sempre essa roda, esse suplício

quebrado que me atormenta.

Para consertá-lo tomo

Merlin como testemunha

a escada como ícone

o vidro como microscópio

o copo como microscópio

e as minhas belas pupilas

como a linguagem mais formosa.

 

E depois, já que tudo acabou

iremos deitar abaixo

o edifício construído

sobre uma prisão e um suplício

na adega das discussões espirituais

 

do seu calvário de uísque.

 

 

  (Este poema da co-fundadora e directora da revista “Projecteur” e mulher do poeta Paul Dermée foi extraído de “L’Aventure Dada”.)


Tradução de Nicolau Saião


Nicolau Saião, Viajar com o Vicente



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    A mais bela reflexão sobre “a viagem” não a fez o tal político avis rara que deu duas vezes a volta ao planeta sem sair do gabinete e recebeu, por tal feito, os correspondentes emolumentos. Nem o tal escritor de sucesso que faz viagens de propósito – que horror! – para depois escrever buques que os interessados e os artolas irão consumir regalados. Nem sequer o estimável Xavier de Maistre, com o seu “Voyage au tour de ma chambre” que nos compraz e nos excita pela evidente convicção e o eficaz discurso literário.

  De facto, quem me parece ter feito a tal superlativa reflexão que em 9 páginas arruma de vez a questão, foi mesmo Vicente Blasco Ibañez – e de que maneira inteligente, criativa, realmente lúcida e poética! Exacto, o mesmo autor de “Os 4 cavaleiros do Apocalipse”, de “Sangue e arena” cinematograficamente protagonizado por um Tyrone Power novinho pero todo un hombre – o outro, em fita, tinha por lá o Glenn Ford, a Ingrid Thulin, o Charles Boyer...

   O livro – “A volta ao mundo dum novelista” (3 volumes) – foi publicado em Espanha, na França, nos E.U.A. faz este mês precisamente 92 anos. É, pois, um livro antigo – como se tivesse sido escrito mesmo agora. Leiam as páginas sobre Nova Iorque, sobre a China, sobre as ilhas perdidas do Pacífico e depois venham falar comigo. Sujeito de razão e coração este Ibañez e ainda por cima um democrata de antes quebrar que torcer.

  Se não encontrarem nos escaparates (saíu por cá em 44 na Livraria Peninsular Editora, em bela tradução de Agostinho Fortes) ameacem o editor de lhe ferrarem um tiro caso não reedite. Nunca uma doce ameaça faria tanto sentido.

  Recomenda-se aos aventureiros/as e aos muito adultos - a todos os que souberam conservar o seu vibrante coração de adolescentes sem remorsos.


Marillion, The Space

 



segunda-feira, 13 de março de 2023

PÓRTICO

 

IN MEMORIAM DE ANTÓNIO SALVADO

         (Castelo Branco, fevereiro 1936 março 2023)       





 Há, neste acervo, um verso que a meu ver descreve com exactidão o mundo da escrita de António Salvado: “só a natureza purifica os sons”, diz ele a dada altura no poema dedicado a Claudio Rodriguez. (Claudio Rodriguez, sublinho, ou seja: um dos poetas europeus onde a natureza se confrontou decisivamente com os sons duma modernidade assumida, reencaminhada nos troços vicinais de um continente que não perdera de vista a claridade da Grécia mas sabia ser impossível não a tentar reconverter através do mergulho achado em Rimbaud e Dylan Thomas).

  Poeta da natureza, António Salvado? Sim, mas também da linguagem que a certifica, perpassa e ultrapassa. Conhecedor dos clássicos, sempre soube viajar – como fica patente nesta pequena antologia – pela comovida desconstrução da escrita.

   E, assim, é um contemporâneo tanto dos que se foram como de todos os outros que a seguir irão vindo.

     Por último e ainda no continente da Poesia, gostaria de relevar o trabalho incontornável de A.S. enquanto tradutor – e dou ao termo trabalho, aqui, o seu exacto perfil e conteúdo não só de labor mas de encantamento partilhável, uma vez que é disso que se trata: ser António Salvado, como a meu ver tem sido, o poeta do seu poeta vertido em português sem jaça e com o ritmo próprio e a figura de quem escreve como se em língua lusa este escrevesse. - ns

 

CASA DO AMOR


Foi nas perenes coisas que aprendi

a ser: a casa do amor cercada

de ruas que subiam junto ao fim

do céu que sempre mais se prolongava,

 

de longos mudos maternais jardins

onde as eternas flores eram lagos

de fragrância ofegante colorida

e os lagos sol em água mergulhado.

 

E nela: o pão cantado sobre a mesa,

a bilha da ternura a renascer,

a pureza do linho a dedilhar

as palavras nos lábios entoadas…

 

deito longe a saudade: permanece

a casa do amor, em mim, perene.

 


MEDITAÇÃO

                             (à memória de Claudio Rodriguez)

 

Dos olhos e das mãos brotam as coisas:

inocentes paisagens onde a vida

e a morte se insinuam e comprazem.

Feitas indagação, elas entregam

- mesmo longínquas – o fluir constante

do sangue atravessando o pensamento.

De há muito que o sabemos caminhando:

somente a natureza purifica os sons

da chama inviolável que destrói

enganos: uma flor desabrochada,

rapariga na curva do distante,

calor do oiro na melancolia.

Daí, que a claridade estenda os braços

a resvalar-se à voz: e invada os veios

exaltados da pureza   e bafeje

para que ouçamos dela o sussurrar,

como um astro súbito   inesperado,

como a verdade plena de harmonia.

Em segredo, o pulsar do coração

traça novos destinos entre areia,

reconstruindo a casa à beira do abismo

solidifica a água das correntes.

Em segredo. Os olhos abrem-se mais

e as mãos, hirtas p’lo frio passageiro,

modelam outro espaço e outro tempo

para que o canto seja eternidade.

 

 

ANOS SE LEVA


Anos se leva a descobrir a pátria:

a terra onde existir   p´ra sempre a salvo,

o barro que há-de    modelar a alma,

a língua a ser sabida   a ser falada.

 

E que os rios e serras e que mares

e que cidades grandes    ou lugares,

que plantas  animais   vão habitar

essas paisagens virgens   a brotarem.

 

Porque o amor - uma conquista lenta -

precisa de passado e de presente

quando constrói os elos do futuro;

 

que a pátria seja    em ânsia   toda a gente -

de mãos nas mãos   e olhos indif´erentes

a quem não queira partilhar o fruto.

 

António Salvado


Para que a Terra não esqueça

 

“Um dia, num mosteiro, um dos irmãos superiores disse que a Deus nada era impossível e solicitou aos aprendizes que glosassem o tema de diversos pontos de vista, mediante pequenas frases escritas. Depois de ler várias, o mestre embatucou ao olhar uma outra. Eis o que aprendiz escrevera: Conseguirá Deus, numa partida de bisca em que o trunfo seja copas, ganhar a um valete de trunfo com o dois de paus?”

Sir Charles Burnbridge

Um poema de Ana Swir


 LAVO A CAMISA


Lavo, pela última vez, a camisa do meu pai,

que morreu. A camisa cheira a suor. Lembro-me

deste suor desde a minha infância, tantos anos

lhe lavei as camisas e a roupa interior,

secava-as num fogão de ferro no atelier

e ele vestia-as por passar.

De entre todos os corpos no mundo, animais, humanos,

um só exalava este suor.

Inspiro-o pela última vez. Ao lavar

a camisa destruo-o para sempre.

Agora só as pinturas que cheiram a óleos

lhe sobrevivem.

 

Tradução de Francisco Craveiro de Carvalho,

com base em versão inglesa de Czeslaw Milosz & Leonard Nathan


José do Carmo Francisco, Primeira pessoa do singular

 


ns



   Fui Juiz Social no Tribunal de Família e Menores de Lisboa entre 1993 e 2016. Participei como «juiz asa» em dezenas de audiências de julgamento e ouvi juízes, pais, crianças, assistentes sociais, advogados, testemunhas, oficiais de justiça, guardas da PSP, etc. Primeiro foi nas Varas no Alto do Parque, depois foi numa Rua perto do Edifício Imaviz e, mais tarde, no Campus da Justiça. Foram muitos anos a ouvir histórias; como na peça de Pirandello «Para cada um sua verdade» e no meu caso a verdade tem muitas versões. Por tudo isso fui espectador interessado do filme «Spotlight» de 2015 cuja história se passa no interior de um dos mais importantes jornais dos EUA – o Boston Globe. Um dos aspectos mais curiosos do enredo do filme é que foi a leitura dos Anuário da Arquidiocese de Boston que permitiu perceber as deslocações anuais dos sacerdotes nas várias paróquias. Como num jogo de dominó as peças foram-se juntando. As últimas imagens do filme antes da onda de telefonemas, mostram as camionetas a saírem das garagens carregadas de jornais. Um jornal não deixa de ser uma empresa que só existe graças aos seus lucros, vive de vender notícias aos assinantes e aos compradores em quiosque e mesmo que o jornalista seja o historiador do quotidiano, mesmo que o jornal seja o livro de todos os dias, o assunto não deixa de ser o que é – um jornal é uma empresa, não é uma IPSS. A vida não começa nem acaba no «Spotlight». Os abusos sobre as crianças são mais elevados nas famílias, nos prédios, nos bairros e nas escolas. Sempre que tocam as pandeiretas sobre três por cento são noventa e sete por cento que ficam remetidas ao silêncio. A nódoa permanece mas a pandeireta deixou de se ouvir.      


Gimnasijia Kranj Symphony Orchestra and Choir, A moonlight night - the most beautiful ukainian song (dedicated to all brave ukrainian people)

 



terça-feira, 7 de março de 2023

PÓRTICO

 

Recebemos, ao final da noite de ontem, a triste notícia do falecimento do nosso confrade e amigo António Salvado.




Perante a impossibilidade de o fazermos já hoje, ser-lhe-á dedicada a próxima publicação do Casa do Atalaião.

Para que a Terra não esqueça

 

Arrendamento coercivo não afeta casas de ministros

Governantes são donos de 37 imóveis, dos quais 14 são para habitação própria. Opções tomadas previamente ou exceções da lei colocam património dos ministros fora da mira do arrendamento coercivo.

(Dos jornais)


Comentários para quê? Ser ministro é um posto na “tropa”. É a igualdade socialista em todo o seu esplendor.

Martinho Miranda


Dois poemas de José Ribeiro

 

o encanto e o desencanto destes dias. uma brisa matinal devolve ao teu dia

as incertezas que te rodeiam. a pausa no café ainda e sempre.

novas ideias para uma lua em quarto crescente

com as sementeiras como destino.

uma pedra e a sombra de um sobreiro são

 o sítio certo para a leitura daqueles livros que aguardam

 há séculos a atenção que merecem. uma vida inteira

 à espera e nem quinhentos anos mais serão suficientes

 para matar esta curiosidade de criança.

 

 *


este tempo é uma constelação de ódios.

nada nem ninguém entende os sinais dos céus.

 a mansidão do lobo e do cordeiro. a lenta agonia

 da natureza que se revolta sem piedade.

 estamos à mercê do imprevisível.

este futuro mete medo como um túnel

nas entranhas da terra. como sair destas horas

 de treva e desencanto?

 o lento regresso da simplicidade e da bondade

 será possível? as notícias de todos os dias

 apontam para o grande desastre.


Nicolau Saião, in Contarelos para mortos vivos

 

3. Vida e aventuras de Jonas P. Clausewitz



ns



    Na tarde clara Jonas arrotou.

    Era o antes da noite e a cidade, semi-morta, esperava assustada a brisa do mar. Para os lados de Samarcanda, a Outra, Jonas divisava, através do mofo do rio, um brilho estranho de casarios desvairados, um jardim, os ameaços pintados da planície, uma capela enorme e silenciosa, dura, quente. E por debaixo da janela de Jonas, o preclaro, rei dos reis e sábio dos sábios, as folhas sempre sem flores das árvores do seu parque palacial estralejavam como pães de trigo talvez por causa daquele vento que vinha não se sabia de onde.

    Jonas, antes da primeira estrela, levanta-se. A cadeira de prata, aliviada do seu peso, suspira. Mas levemente, mas ternamente, que o peso de Jonas é doirado e de veludo negro as suas calças são. E doce o seu sentar de largos anos.

     O quarto, suspenso, como que amoroso e dado, morno, espia-lhe todos os gestos. E altos são os pensamentos de Jonas, que nele próprio pensa e no seu destino. Como está velho! Os cabelos, até os brancos, desapareceram e no crânio de Jonas, por bondade, uma luz cor de anil depositou os seus ovos e as suas esperanças. E assim é que a cabeça do Preclaro brilha vagarosamente na não-obscuridade.

     No seu princípio, ante o mar e ante a terra, enquanto as palavras que mais tarde – oh quão mais tarde – iriam poisar-lhe na língua limpa como manteiga e dela sair após, Jonas amara o seco roncar do oceano, onde – pensava ele – haviam habitado os seus ascendentes. Ou nele andado haviam, que o povo de Menchu-Pachu, ciente da direcção que oferece a terra a achar, para ela caminhara, mas com norte, e nele saudando o carinho do sol e dos cogumelos em pó. Pois que deles é que vinha a riqueza trágica de Menchu-Pachu, cujas chaves de cera e de bronze nas mãos doces de Jonas repousavam.

 

      Ouro canela marfim florete de espadachim leão jumento segmento de

      prazer ou de tormento raro porque é claro o lembrete do juramento

      como um não e um porque sim.

 

    E eram os pensamentos do Grande Rei que num soprar instantâneo lhe viajavam através das circunvalações, lhe traçavam violências para haver, glórias para estimar, duas crianças ameaçadas por um rouxinol, o divisar de relógios podres na moleza de um salão que Jonas amava, que haveria de amar quando à noite, bem na noite, no meio do palpitar das velas tremulantes da sua câmara de dormir o seu fiel Culhambas até ele viesse e junto ao leito esperasse o seu gesto de olhos, o seu aceno de queixo e depois de ouvir o sapiente ensino das suas palavras para um governo de mestre aguardasse a chegada de Blazina, a por demais amada. Jonas dir-lhes-ia, com a brancura da alegria na sua face mártir, o quanto os relógios todos lhe eram queridos, com os seus minutos lentos e poderosos. Pois não é através deles, da sua marcha por entre as horas esquivas, que a grandeza dos grandes se ademonstra?

     Jonas, sabe-o, não morrerá. Defeso lhe é morrer, vedado lhe será jazer em pedra e em vermes, e nunca no seu corpo rodeado de prantos e cetins repousarão os dentes verdes e agudos de alguém do além-túmulo. Ah mas agora é a morte. Da dúvida, da inquietação dos outros que lá por fora andam, daqueles que pouco sabem e quase nada podem. Que para Jonas é todo seu o dizer para onde - a mais bela das mortes, a da indecisão e da procura de pequenas escusas para os que não encontraram a verdade que é dele e de mais ninguém. O saber para quê, o como e o com certeza, e ficar desta maneira junto à janela, com a silhueta envolta em macia pele de animais do quase polo sul, serenamente, sustentando o seu ardor amado de ser a Lei, a Vida, o Sempre. O ontem e o hoje e o permanente.

    Frente ao rio, lodoso e luzindo como uma flama no horizonte, Jonas arrotou. Saída é a lua, embora a noite espere. E como um traço de cal no céu se firma. E a ele lhe anuncia, Jonas o puro, rei dos reis e sábio dos sábios, o de Menchu-Pachu a loira e a morena, que também na madrugada não cumprida Dona Leonarda virá com Blazina já ida, com o seu silêncio senhoril e sensual sentado num escabelo. E ali ficará até que Jonas, com o gesto do seu queixo, com o vazio ondeante da sua mão, lhe acaricie o ombro vidrado de recordações e de mistérios e sonolências. Antigas, da sua existência vizinhas, comuns e raras.

    Pois de Jonas, o Preclaro, é a sabedoria do mundo que nele achou seu mando. E nele perdurará. Enquanto o Universo rolar para o lado de Altair, o astro de todas as realidades sobrepostas.

    Inteiras, inconquistáveis.   


Tom Jones, Delilah

 



Aos confrades, amigos, adeptos e simpatizantes

     Devido a um problema informático de última hora, não nos será possível fazer a postagem desta semana.    Esperando resolvê-lo em breve,...