segunda-feira, 30 de agosto de 2021

PÓRTICO

 

UMA TRISTE NOTÍCIA

   Recebemos ontem, do nosso confrade e colaborador António Cândido Franco, a informação de que o escritor e ensaísta Pietro Ferrua, uma das mais destacadas figuras do universo libertário mundial, faleceu em Portland (EUA) nos finais de Julho.

    Professor catedrático da Universidade daquela cidade americana, (Lewis & Clarke College), Pietro Ferrua lecionou durante anos as cadeiras de Literatura Comparada, Cinema e Línguas estrangeiras. Organizou vários congressos e simpósios culturais, tanto nos Estados Unidos como em França, Suíça e Itália, país onde nascera – em Sanremo – em 1930. E foi nesta nação que fez a participação na Resistência contra o nazismo. Manteria, também, uma posição adversa ao estalinismo e a todas as ideologias totalitárias que entretanto iam fazendo o seu curso.

    Conhecedor profundo da língua portuguesa, pois vivera no Brasil (Rio de Janeiro) vários anos, foi dele que recebi o convite para participar no Simpósio Internacional de Portland, ao qual enviei uma Comunicação sobre Religião Comparada, tendo-me sido facultado estender o convite a Mário Cesariny, que se fez representar com uma Comunicação sobre Fernando Pessoa como poeta.

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Para um minuto de meditação - 122

 

“Nada mais habitual em certos homens que o desejo infrene de riqueza. Amontoar dinheiro de todas as formas, mesmo as mais infames, aparece-lhes sempre como a melhor e a mais respeitada educação”.

Giovanni Papini


Um poema de Maria Estela Guedes

 



A cerejeira

 

São pessoas com raízes

tão fundamente enterradas

no coração

que sangram por espinhos

finos acúleos

e deixam regos de cicatrizes.

 

As árvores são antepassados

de braços erguidos sobre a cabeça

com cabelos encarapinhados.

 

Caem de maduros frutos doces

da cabeça dos homens

pensamentos luxuriantes

entre os quais repicam sinos.

 

Somos a cerejeira

de vermelhas bagas como brincos

nas folhas de pequenas orelhas

ouriculares

no cadinho das letras

audíveis estrelas

brilham com seus dentes de ouro

na cúpula sombriamente noturna

a escorrer tinta azul dos dedos.

 

 

Em baixo correm riachos

subterrâneos

até ao caranguejo de lava

do centro incandescente da terra

que tudo alumia e alimenta.

 

Cintilam ideias, fulguram mentes

agitam-se as folhas tagarelas

dos choupos tremedores

mas nós somos a interdita cerejeira

de punhais trespassada

à porta dos pais fechada

os velhos sentados na pedra antiga

dos provérbios contados

ao sol, diante da velha choupana

enquanto galinhas debicam grãos de sol

na crepitação da palha

despedem centelhas os folículos

das espigas e rente ao chão

nos agostos insondáveis

as manchas prateadas da colcha acetinada

das gramíneas.

Por cima de tudo isto, as árvores.

Essas pessoas de chapéu na cabeça para proteger

os pensamentos

e de mão encostada ao lado esquerdo do peito

a serenar o coração.

 

Meu coração não te partas

como travessa de barro

pesada de  arroz de mágoas

os olhos no luto do forno

carbonizados sem dizer adeus

nesta despedida imóvel

à porta da casa de deus

fechada entre olivas cinéreas

ao trémulo clarão da cerejeira.

 

Lá longe, o negro túmulo abeira-se

de um arbusto de recordações

bagas num perigo vermelho

que nem pintam nem são passas

antes colar de pérolas de veneno.

 

Chegam pássaros de bico dourado

para o repasto das árvores

e caem mortos, caem mortos

com tanta fruta no chão

que ninguém aproveita

mas deixar os pássaros comer,

isso é que não!

 

Gaia, a superterra, a deusa-mater

feita de estruturas e relações

não sabe sentir vergonha

nem ódio contra esta gente

que ainda não saiu da fase evolutiva de macaco.

Por isso não se vinga

apenas nos dá o troco dos nossos atos:

mosquitos com fartura, baratas tremendas

as casas invadidas pelos ratos

e fruta sem gosto, envenenada

as alfaces radioactivas

que nos fazem cair os cabelos

e os dentes das gengivas.

Quando era tão fácil deixar comer as aves

numa terra em que há cerejas para todos.

 

Zumbem abelhas à volta do tronco alto

e carcomido dos anos

porque as árvores envelhecem

como os amos

e merecem como eles morrer disso.

 

Idosa cerejeira, tocada um pouco de

Alzheimer, ampara-te

ao meu braço amigo.

 

Eis porém que chega o carniceiro

com seu cutelo

de fio fino

à garganta da mãe apontado.

O tronco dobra-se para dentro

os ramos apertam-se em torno da dor

salta uma espadana de sangue

cerejas vermelhas cerejas de sangue

salpicam de sangue cereja o áspero térreo chão.

 

Outra machadada

no tronco da única árvore

de porte no terreno

anciã do pomar

os cabelos de líquenes brancos

já anunciando morte a seu tempo

sem precisão de eutanásia.

A velha grita que não fez nada

a velha agarra-se ao sofrimento próprio e alheio

e geme que não foi ela

não foi ela quem interditou aos pássaros

as mais altas cerejas da idosa

cerejeira

é só um grito único a varrê-la das raízes

à cúpula dos pensamentos

rubis amargos

verdes ramas

rubis amargos

sangue em gotícolas que se espalha

e a seiva de sangue é um regato

que se derrama

do coração aos pés da velha árvora

decana nesse campo onde outrora

com nobreza

a nobreza que nunca mais se viu em casa

nem casinhas nem casota

com nobreza de sangue

à sombra da elevada cerejeira

erguia-se uma graciosa choupana.

 

Caem-lhe um a um os braços

num roçagar de folhagem e estampido breve

das projetadas cerejas

colares de coral vivente

em sumo solto abaladas

lágrimas de ferida pungente

o tronco aberto à facada

a ver-se-lhe tudo por dentro:

o coração partido,

as tripas enroladas, os rins decepados

que mal se seguram por um fio

e a seiva vermelho vivo

de cochinilha

que escorre

goma animal nos dentes.

A besta armada de cutelo e machado e punhal

abate abate

abate a velha cerejeira

só para mostrar ao mundo

que tem tomates.

 

Zumbem abelhas à volta dos toros

ensanguentados

e carcomidos dos anos

no chão sem sentidos empilhados

porque as árvores envelhecem

como os amos

e merecem como eles morrer disso.

 

In «Arboreto», em publicação na Arte-Livros, de São Paulo


Gaspar Garção, Literatura de “Praia” e Literatura “Académica"

 


Alice Rahon

 

   Um dos fenómenos mais interessantes das últimas décadas no mundo da Literatura tem sido, inegavelmente, o dos “best-sellers”, verdadeiros “mastodontes”, quer seja no tamanho de cada exemplar, nos inúmeros volumes que se seguem ao sucesso inicial, nas promoções feitas em todos os meios de comunicação, nas inevitáveis - e geralmente deturpadas - adaptações para cinema, ou no número “obsceno” de vendas, que até em Portugal causam sensação; enfim, a denominação de fenómeno que se usa porque sugere “histeria de massas”, algo que terá a ver com a camada inculta da população, que prefere a cultura descartável, na moda e pouco difícil de apreender.

   A distinção entre “Alta Cultura” e “Baixa Cultura”, geralmente feita pelos entendidos como sendo o entretenimento de elites e o entretenimento de massas, nada tem de científico, mas poderá começar a perceber-se através das categorias em que – subjectivamente – são alinhadas.

   À Pintura Clássica ou dos Mestres, à Música Clássica, à Ópera e ao Cânone Literário estudado nas universidades, sem esquecermos o cinema de autor e os apelidados de “Filmes de Qualidade”, contrapõe-se na Baixa Cultura o comercial, o vendável, o instantâneo, as super-produções de Hollywood e os tão mal afamados “best-sellers”, a música pop e a Geração MTV, as séries de T.V. e a banda desenhada para “fanáticos”, a ideia de que se está a vender algo, que além de ser de pouca qualidade fará inevitavelmente no futuro com que o Coeficiente de Inteligência dos seres humanos baixe para níveis assustadoramente “americanizados”.

   O interessante, a meu ver, nesta discussão útil, é que indiscutivelmente o Tempo é o grande nivelador, o grande árbitro em matérias de gosto e a não ser que a extrapolação futurista dos críticos na moda e das “eminências pardas” da cultura anglo-saxónica seja dum nível Nostradamiano, as suas “sentenças” serão apenas conjecturas baseadas no seu gosto pessoal, nos géneros artísticos em voga e nos seus desejos pessoais de influenciar a “grande corrente” cultural do mundo ocidental.

   E se mais provas forem necessárias em relação à importância do passar dos anos e das modas na asserção da qualidade cultural, basta lembrarmo-nos da forma como a “Opera Buffa”, as obras-primas de Shakespeare e o cinema dos “nickelodeons” eram vistos no início destas manifestações culturais: como um gosto abjecto, das classes populares mais baixas e pouco instruídas, os primeiros locais a fechar quando ocorriam epidemias e geralmente proibidas de tempos a tempos pelo seu carácter popular, revolucionário e contra as elites instituídas.

   E voltando ao início desta crónica e aos “livros de hipermercado”: se o facto do meu gosto pessoal se inclinar mais para os geniais romances que li ultimamente, adquiridos por acaso em heróicas livrarias que teimam em remar contra a maré, como por exemplo “Kafka à Beira-Mar”, de Haruki Murakami, “2666”, de Roberto Bolano e a trilogia póstuma “Millenium”, de Stieg Larsson, é impossível negar o facto de que estes livros, que acredito irem perdurar muitos anos na mente de quem os leu – e talvez até um dia atinjam a suprema honra de subir ao panteão dos estudos literários, para uma dissecação impiedosa, – se terem encontrado nos tops portugueses e mundiais com obras dos inevitáveis Nicholas Sparks, Stephenie Meyer, Isabel Allende, Dan Brown e J.K. Rowling, entre muitos outros.

   E quem nos poderá garantir quais os romances, filmes, discos ou quadros que farão parte do imaginário popular das gerações vindouras e do tesouro cultural da humanidade, os ícones que sobreviverão a um hollywoodesco fim do mundo tal como o conhecemos, um cenário saído do filme “Planeta dos Macacos”?

   Eu certamente não me abalizarei a fazer tal previsão à “Zandinga”, lembrando-me do ódio figadal que tinha – juntamente com muitos amigos da mesma geração –, por dois prodígios de vendas de anos idos, Gabriel García Márquez (ainda que nobelizado, na altura por muitos considerado um fenómeno de “massas” perecível) e Patrick Suskind, dois romancistas admiráveis e fundamentais, que demorei a conhecer e que agora são imprescindíveis nas minhas releituras anuais, desde “O Perfume” e a “Crónica de uma Morte Anunciada” até ao “Amor em Tempos de Cólera” e “A Pomba”, ódio ridículo esse que começou porque no Verão de 1993 eram incontáveis os passageiros no comboio para Coimbra a “devorarem” os seus livros e eu futilmente prometi a mim mesmo que nem sequer as primeiras páginas iria espreitar…

 

in Revista “Pormenores”


Stornelli d'esilio cori multietnici

 



quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Para um minuto de meditação - 121

 

  “Tenho pena que quando se fala de racismo se feche o ângulo sobre a história que envergonha os brancos e não se diga tudo: que o racismo também grassa entre as outras raças e que hoje ainda há escravatura, exercida de negros sobre negros, em África. Seria uma abordagem mais honesta e transparente. Teria a vantagem de não cavar trincheiras, com vítimas sempre da mesma cor de um lado e verdugos sempre da mesma cor do outro, algo que potencia o ódio de parte a parte. Melhor ainda, interpelaria cada um de nós, independentemente da raça, sobre o papel que queremos desempenhar neste combate, que deve ser da humanidade contra um dos seus atavismos, o preconceito racial”.

Teresa Ribeiro


Dois poemas de Floriano Martins

 




6. Algumas fotografias sobre a mesa,

irrestituíveis dejetos do instante.

Ao limpar a casa o poeta se indaga:

– Só nos resta a raiz do cantar?

Dilui-se em dura duração de datas,

dopado pelo rigor da noite. Pedra

de luz que o capta em ocioso deslize

ao redor das sombras que tramam

para que não amanheça o cantor.

Visíveis os vestígios de todo limite.

 

 

7. A caminho do abismo a palavra

indaga a suas letras: – o que busca

aquela que cai sobre si mesma?

Somos o centro do olho, a página

que muda à lei de sua consumição.

Dispersa-nos a pompa, a fraude

de imagens que não descarnam

a arquitetura que nos decompõe.

Espelho de cicatrizes solitárias,

buscamos a alma desfeita em corpo.

 

in 365 POEMAS & FOTOS


Soares Feitosa, Do relato de uma peregrinação adolescente

 



Fragmento de um questionário:

Francisco, personagem de um poema longo, Psi, a Penúltima, sai de dentro do poema e vem conversar com o autor, um certo SF, que também é Francisco.


64. Francisco: Você já peregrinou?

SF: Sim, várias vezes. No tempo do sertão. Morava nos matos, mas estudava em Nova-Russas, o terceiro ginasial. Ia fazer os exames todos os meses. Uma boa distância, sete léguas. Era um ano bom de chuvas; como dizemos por lá, um bom inverno. Havia um velho Ford F-5, da firma Carneiro & Veras Ltda, que fazia a linha Nova-Russas—Monsenhor Tabosa, carreando mamona. Na época das chuvas, as estradas muitos ruins, o caminhão, já muito cansado, não tinha forças para enfrentar os atoleiros. Além do mais, a safra é para depois das chuvas. O problema é que eu tinha que ir aos exames, do contrário perdia o ano. Da primeira vez, fui a cavalo, mas o animal, um transtorno na cidade; eu não tinha onde abrigá-lo. Em vez de um pouco mais de tempo livre para me divertir, administrava mais uma preocupação além dos exames: cuidar do cavalo, à redobrada preocupação de que o animal não passasse fome, nem sede. As próximas viagens, enquanto o velho caminhão não retornou, fi-las a pé.

 

65. Francisco: A pé?

SF: Sim, a pé. De noite! Durante o dia, com o sol quente, é muito pesado. Insuportável até. Saía de tardinha. Aprontava um pequeno lençol, com umas poucas roupas e os livros já lidos. Um embrulho na diagonal. É o matulão. A gente o coloca no ombro, transverso com o quadril oposto, distribuindo o peso. Nos primeiros quilômetros, o bicho vai que é uma beleza. Depois, não há lugar para ele. Você muda de ombro, bota para a barriga, bota para a bunda, troca de um lado, vira para o outro, mas quem disse?! Depois resigna. Chega o vento da noite. As estrelas no céu. Um céu enxuto. Levei um grande susto quando li o poema de Kant.

 

66. Francisco: Kant? Filósofo, não?

SF: Também. Ele disse, lá com as palavras dele: Nada me enche de maior assombro que o senso moral dentro de mim e o céu estrelado sobre minha cabeça.

 

67. Francisco: Por que o susto?

SF: É que na cidade grande também já esquecemos os céus, estrelados ou não. Só quem andou de noite, nos matos, sabe o que é, ainda que não houvesse, no dia em que andou, estrela alguma no céu nublado. Mas lá, estrelas é o que não falta. De noite, naturalmente.

 

68. Francisco: Não era perigoso?

SF: Eu pegava um garrancho, um cipó, coisa leve, porque na proximidade das casas, os cachorros vêm de lá, com a gota serena, a acuá-lo. Não! Morder não, que os cachorros do mato não são treinados para morder. Mas a gente não pode facilitar. Falava com eles, amansava-os, de voz mansa, mas nem todos. Continuavam latindo até o final do pátio, de despedida ou de raiva. Eu também latia com eles, mas só de despedida. De raiva, não, porque noutra viagem, o bicho haveria de lembrar. Enfurecido! Cachorro lembra de tudo. Quando paravam de latir, jogava o garrancho fora. Lá na frente, na próxima casa, pegava outro, ali mesmo, na beira do mato. As casas eram distantes, naquele tempo. Fechadas, que todo mundo dorme muito cedo. Mal escurecia, deitávamo-nos. Em compensação, sequer amanhecia, já está todo mundo de pé, na labuta.

 

69. Francisco: Assim mesmo, sem companhia, à viagem inteira?

SF: Havia uma companhia fantástica: a solidão. E a intempérie, bem na cara. Sabe, o vento no rosto destampado dá-nos uma certeza de desamparo, mas, incrível, é também uma perfeita sensação de exterior, um mundo mais. Sete léguas, 42 quilômetros, os mesmos da Maratona, que tem exatos 42,195km. Sem perceber, a gente se transforma num bicho da Natureza. Ainda que nunca tenha lido os versos de Kant, saberá perfeitamente o que significam. A noite é fresca, mas o tempo é seco. Sem maiores avisos, esbarrava-me no rio Acaraú, ainda próximo das nascentes, apenas um riachote, um filete magro, quase sem água, mas dá um banho. E que banho! Com tempo de sobra, um banho longo, botando o tempo para render, esticando-o além da conta. Esticava também o corpo inteiro. Era novo, mas a caminhadeira, a suadeira, de cansar! Os pés — a poeira fazia um pó grosso —, lavava-os, muito e muito. E a cara. Mas o estiramento era também de partes: pé, braço, dedo. Até os dentes, havia de estirá-los. Não é fácil, mas dá para estirá-los, desde que o cansaço seja intenso. Nesse ponto, você e a Natureza, um bicho único.

 

70. Francisco: Um bicho? E o medo?

SF: Medo de quê? Era um tempo calmo. Hoje, nem pensar! Medo de nada. Nem da outra cobra, a cobra-macho, da beira do rio Macacos, se é que ela existia. Devia existir, mas não dava para pensar. A que existia, estava morta, eu que matei. Por que haveria de ter medo de nada? Se aparecesse, era cacete para cima dela. Do mesmo jeito. A gente tem outro medo, mas só no começo. É o medo de desistir. Depois, passa. Lá adiante, você, a viagem e o cansaço: quem é quem? Nenhum medo.

 

71. Francisco: Uma boa peixeira, bem afiada, não?

SF: Que nada! Se não havia medo algum, por que haveria de andar com o instrumento do medo? Lá nos matos, sim, a faca não é do medo, é do serviço. Nem revólver, nem nada. No trabalho, nos matos, para cortar um galho de pau, desenganchar um bicho, cortar um cordão de umbigo, a faca, quanto mais afiada, melhor. Mas em viagem, se não há medo, para quê?

 

72. Francisco: Pelo menos uma boa lanterna, não?

SF: Lanterna, coisa nenhuma! Nunca tive lanterna naqueles tempos. Éramos modestos. Uns trocados, e comprei enxó na loja O Gabriel, e pua, trados, formões e outros ferros de carpinteiro, uma plaina e folhas de lixa. Verniz? Não! O dinheiro não deu para verniz. Conseguia-o na lixa, polindo, até brilhar, a madeira. Alisava com mucanã. Um brilho real. A beleza modesta, na madeira, a maciez do polimento, horas a fio. Assim Ela, do mesmo modo — os olhos, tintas nenhumas. Não deu para lanterna, o dinheiro, ou até acho que deu, mas havia de comprar pilhas novas. Desmantelou, descarregou, vazou. Os ferros, bastava amolá-los, eu mesmo, na pedra de amolar: água e paciência, pra lá e pra cá, assim, um fio sobre fio, a ponto de cortar rentes os cabelos do braço. Barba, não, que a barba era rala, só a penugem, 15 anos. Por outra, os caminhos, por mais escura que seja a noite lá no sertão, é sempre possível entendê-los. No sertão, não há aquela escuridão de breu, da serra. Na serra, de noite, nublado, você enfia o dedo no olho e não vê nada; só as estrelinhas, furando os olhos. No sertão, por mais escuro, a gente divisa o vulto das mãos. É suficiente! Lá, as noites são de uma penumbra que dá para saber da mancha dos matos e do contorno das casas. É a hora, antes de cansar, de soltar a mente. Depois que cansa, não precisa mais olhar para nada. Nem consegue.

 

73. Francisco: Antes de cansar?

SF: Isto mesmo! Antes de cansar, a mente é igual a um macaco na corrente, para lá e pra cá, pulando, sem sossego. Nada melhor do que soltá-la para cima dos matos, das folhas, dos barrancos, das nuvens lá longe e das estrelas por todos os lados da cabeça. Soltá-la, mente, por cima das pessoas que ficaram. E de outras que estão por vir, mas você não sabe quem. Depois, com o cansaço, isto é fundamental, ela, a mente, cuida de chegar para perto do dono. Acho que vem acudi-lo, deve ser isto. Ou porque perde as forças, com o cansaço. Então, a mente o tange a uma outra paisagem, a sua paisagem. O lado de dentro. E, quando vem a encontrar, bem no futuro, aquela pessoa saltitada de sua mente cansada, já sabe quem... Ela, é claro. Mas esse sossego interior leva algum tempo. Tem que cansar primeiro. O ruim da viagem era o amanhecer.

 

74. Francisco: O amanhecer? Não haveria de ser a melhor parte?

SF: Sim, razoável que o fosse. É que aos primeiros clarões, os céus esturricando-se de vermelhos, dava para divisar a torre da igreja de Nova Russas, que a cidade é num baixio, no vale do rio Curtume. Era ruim porque faltava muito mais de uma légua inteira. Bom pela certeza de que estava perto, chegando. Mas cadê?! Longe por demais, melhor que não avistasse nada! Avistar coisas de esperança muito larga é tentar-se ao desistir. Deixasse para avistar só bem de perto. Você anda e anda. E nada! O bom é que, de descida, uma descida leve, tudo ajuda, descendo. Mesmo assim, aquela visão nova, ressurgindo dos escuros da noite, trazia uma aflição nova.

 

75. Francisco: Um aflição nova?

SF: Era da impaciência de chegar. De dar por concluída aquela tarefa, agora às claras. Veja, de noite, sem ver nada, a noite é melhor. Também é a hora da sede, de manhã, pela manhã, com o sol. A sorte é que as casas, nos matos, abrem muito cedo. A gente pede água. Oferecem café. É bom. Uns minutos de alpendre, sentado. Sai cuscuz com leite. Perguntam coisas, a gente vai respondendo. Perguntam se vai chover no ano que vem. A gente diz que sim, abaixo de Deus, tirando o chapéu, mas nunca andei de chapéu. É da lei que essas coisas sejam respondidas “abaixo de Deus”. Entristece porque, avistando a torre da igreja, ainda que de muito longe, você percebe que a viagem está no fim. No duro, a viagem é boa. Aliás, ótima. Mas há um perigo a mais, aborrecer-se com a passagem.

 

76. Francisco: Com a passagem? Havia outro rio?

SF: Não! Rio nenhum. Aliás, o Rio Curtume, outro riachote, depois que fizeram um açude grande, secou à jusante. Havia ponte dentro da cidade, entre a rua do Progresso e o Centro. Falo de um outro obstáculo, um rito, como se fosse passagem: da noite para o dia; dos matos para a cidade. Entre aquele aparente nenhum, o sertão, e a pólis, há um salto fantástico, mas esse salto há de ser dado sem salto algum. Do silêncio ao burburinho, indo e voltando. Só assim, a viagem! O trânsito límpido entre o sertão e mar; mar e sertão. Assim as coisas também do coração. Não! No amor, não! Que haja a vertigem! Quanto mais alta, melhor. Mas fique claro: Nova-Russas, a mais de cem quilômetros do mar... Mas era Mar em relação ao Sertão, onde a viagem se fez de começo.

 

77. Francisco: Quantas horas de viagem?

SF: Começava a andar pelas quatro da tarde, mais um pouquinho. Chegava às cinco e pouco da manhã. Mais de 12, em torno de 13 horas. Sem puxar, esbanjando todo o tempo. Se fosse para fazer ligeiro, a média é de uma légua por hora, umas sete ou oito, por aí. Mas para quê? O bom daquilo era gastar o tempo, a insultar com o tempo. Se fosse ligeiro, acho que não aguentaria. Era jovem demais. Por outra, para que ir ligeiro? Administrava o chão, os meus pés em cima dele, comigo de dentro, em cima dos pés. Não administrava os passos de chegar ligeiro. Mas, se necessário, correria. No chouto, por longo tempo. Ou galope. Alternando-os.

 

78. Francisco: Não estou entendendo: você fala em peregrinação, mas a rigor era um dever, comparecer aos exames do colégio, sob pena de ficar reprovado. Peregrinação não pressupõe livre vontade?

SF: Sim, era um dever. Tinha que ir. Em dia certo, chegar na hora certa, comparecer aos exames e auferir as notas suficientes. Mas, iniciada a viagem, tomando gosto pelo que fazia, o gostar eliminava o obrigatório. O prazer de fazer é que faz a diferença entre o cativeiro e a devoção. Ainda que o fruto seja o Mal. Só assim se explica a eficiência dos carrascos de Hitler, aliás, de quaisquer carrascos —, eles gostam do que fazem. Fazem-no melhor que o dono. Mas há quem faça o Bem. Sem paga alguma.

 

79. Francisco: E o cansaço, muito?

SF: Sim, muito, porque aquilo era uma doidice. Exatos 15 anos, toda a musculatura doía. Mas era bom porque havia um fenômeno muito estranho. Um excesso de energia, talvez mesmo por conta do excesso de cansaço. Assim que chegava à casa do padre, um banho ligeiro, que a água era pouca. Se a caixa d’água estivesse meio vazia, ainda tinha que dar umas bombeadas, se não o padre reclamava que haviam acabado com a água dele. O padre chamava, perguntando coisas, roçados, chuvas e os mesmos assuntos de sempre, andando. Quando nos dávamos conta, estávamos na sacristia, na hora da missa. Ele dizia: venha ajudar.

 

80. Francisco: Você ia?

SF: É claro! Com o maior prazer! Dentro em pouco, lá estava eu – pichelengo, pichelengo – tocando com toda força a campainha na hora do Sanctus, Santus, Sanctus, [Isaías, 6], que não tem outra mais bonita no lugar, mas, por favor, a segunda parte não é de Isaías, é do Humberto Teixeira e do Luiz Gonzaga e refere-se à missa do meu velho tio, o padre Leitão. Também às meninas do coro. Havia a voz em contralto da futura monja. E a outra, muito magra, uma alma-de-gato, uma voz tênue, os cabelos calmos. A missa era em latim. Voltava para o café, com o padre. Ia em seguida para o ginásio. Sem parar, que o cansaço, agindo pelos inversos, não deixava parar. Fazia minha algazarra com a turma. Os exames, fazia-os. Os meninos diziam que era mentira, eu, escondido na casa do padre, estudando. Eu lhes mostrava os pés. De tarde, desabava como um bicho bruto, a acordar só no outro dia. De noite. E as notas!

 

81. Francisco: Alma-de-gato, o que é?

SF: Com o forro das casas, na cidade, perdemos mais esta informação. Seja uma coberta de telhas. Ou de palhas. Réstias, aqueles buraquinhos por onde entra o sol, a lua, a escuridão das estrelas. Pronto, se uma réstia de sol bater numa vasilha d'água, refletirá na parede uma mancha de luz. Com o vento n'água, ter-se-á uma luz tremida, ligeira, assustando, bulindo, mexendo. Era, de puro susto, sobre mim, os olhos — Ela.

 

82. Francisco: Vejo que tenho que fazer um curso de sertão. E a volta, outra vez a pé?

SF: Bom, aí eu esquecia os matos. Muito justo que os esquecesse. Era jovem, as meninas do ginásio, muitas, e a minha turma de adolescentes. Havia de voltar, mas só voltava quando encontrava um transporte que me deixasse na porta de casa ou, no mínimo no Morro Redondo, no lugar Cruzeta, exatas duas léguas e meia (15 km) que eu tirava num chouto. Com um novo estoque de livros, uns oito ou dez, para não fazer muito peso.

 

83. Francisco: Livros, os do colégio?

SF: Não! Os do colégio já estavam em casa. Eram agora os livros que o juiz me emprestava. O doutor Bastos, Moacir Bastos, que Deus o tenha. Duas belas estantes da melhor literatura. Livros da Editora Globo, coisa de antigamente, ótimos. Edison Carneiro, lembro este nome. Ele conta que Zumbi tinha escravos. Muito estranho que um senhor de escravos tenha sido escolhido patrono do Movimento Negro. Joaquim Nabuco, não! Era senhor e não tinha escravos. Levava os livros de volta e trazia outros. De noite, a lamparina polmando fuligem. O dedo no nariz? Vinha preto! Fumaça da lamparina! Se fez algum mal? Acho que não! Passei dos sessenta e estou aqui novinho em folha, para outros vinte! Ou trinta. Ou mais!

 

84. Francisco: A peregrinação, uma coisa sofrida. Alguma vantagem?

SF: Ah, sim! Só vantagens. É quando você encontra o seu animal.

 

85. Francisco: Um saci, um duende. Crê nessas coisas?

SF: Nem um pouco. O animal, você o encontra quando peregrina sozinho, à noite, cansado, jejuado. Ele está dentro de você. O corpo sacrificial, o seu, os céus, estrelados ou não, que, ao mesmo tempo, chamam-no para cima e, com a mesma força, o repelem e o esmagam no rumo do chão, que também o puxa e empuxa. Você no meio, joguete de céus e terra. Não é fácil, creia-me. É quando o seu animal aflora, salta para suas mãos. É a hora de domá-lo. Ficam amigos, o animal e o dono. Acho que a peregrinação devia ser matéria obrigatória no currículo do jovem.

 

86. Francisco: Ainda que não fosse religioso?

SF: Religioso? Nada a ver! Não precisa ser religioso para peregrinar. Melhor que nem o seja. Veja, há um aterramento, ainda que o cabra não esteja descalço. Eu mesmo, questão de costume, nunca consegui andar descalço. Sempre andei em cima de minhas chinelas de currulepo ou das alpercatas de rabicho. Mas a terra está ali, nos seus pés, na poeira, no ar, na face. E a intempérie também, bem na cara. De tarde, quando a viagem começa, o vento é duro, abafante. No poente, o Sol, rubro de fogo, estatelando-se nos boqueirões da Serra Grande, lá muito longe, mas doendo na cara. Depois, à medida da noite, chega a fresca da noite. Você começa pelo pior, o sol quente nos olhos, o vento-mormaço, o calor. Tudo isso de ruim ajuda a abrandá-lo, fragmentando-o, a rearrumar-se. A desejar que a noite chegue. E escureça! Lá pela madrugada, uns pingos ligeiros, coisa que não dá para molhar, apenas para, digamos, lembrar como é que molha. Mínimas gotas escorrem na face, mas o bom é não enxugá-las. Deixar que subam no vento, secando. Quando respinga um pouco mais, a gente bebe (não faz mal que beba), mas não pela sede. Acho que seria uma sagração das águas — bebê-las dos céus, direto na face. Os óculos. Sempre andei de óculos. Ficam manchados, mas de noite não precisa limpá-los.

 

87. Francisco: Não fica ruim para enxergar?

SF: Enxergar o quê? Tudo no escuro, a leitura é outra. Tem que aprumar o faro, as oiças, a pele, o corpo. Os dentes, a mordedura, se necessário. O vento às vezes se dana, rodopia nos paus, faz um barulho grosso. Era a hora de lembrar da jumenta de Jeremias esturrando no deserto. Você, ali, com certeza também é um jumento. Um retorno, uma grande viagem de volta. Não! Não tem que ser religioso. Melhor que nem o seja. Basta completar a quota. A quota do cansaço. Estou certo de que Jeremias errou, senão, de muito pudor, não contou que o esturro verdadeiro é do jumento e não da jumenta.

 

88. Francisco: Jeremias, o que ele falou?

SF: Veja, ele escreveu: Uma jumenta selvagem acostumada ao deserto, que no ardor do cio sorve o vento... [Jer 2, 24]. Não contou que o tirinete legítimo, em onda alta, é do jumento-de-lote. Do lote das éguas, o jumento garanhão. Assim o lá de casa, o Meia Noite. Eu também! Ele rasgava o vento, esturrando. Não! Nada a ver com relincho. Nem com zurrar. É um esturro de vento, nas ventas do bicho, espoucante, rápido e largo como um feixe de borrachas a sibilar sob grande pressão de um redemoinho feroz. Eu fazia do mesmo jeito. Esturrava na beira do rio, reinando. Ora, de jumento de lote, igual ao Meia Noite; ora, de touro, o touro Fidalgo, chifrando os murundus no pátio da fazenda, rodeando as vacas, brotando, zombando. Só quem é de lá, da noite, sabe o que é. Faz medo, mas é um medo grato, que a gente insulta com ele, para mais medo. Viajar na noite. Um medo bom.

 

89. Francisco: Medo?

SF: Um dia, de noite, fui pegar o Meia Noite para uma viagem ligeira. Ele rasgou o vento nas ventas, dentro de uma moita, bem perto de mim, que não o havia visto. Levei um susto medonho. Pensei que era a onça. Claro que tive medo, mas já saltei bem acolá, a postos. Arrepiado, um gato de assombro teria sido menos. O bicho correndo de lado, olhando para trás, ora de um lado, ora do outro. É bonito. Era de lua, no descampado, cheia. No trote ligeiro, a cara de banda, rasgando o vento, o jegue garanhão. Só os equinos correm assim, quando soltos. Acho que preparam as armas, que no boi é de frente; neles é atrás, os cascos, afiadíssimos, ao coice. Em nós é mais de frente, as mãos, os olhos. Os olhos, as mãos — armas, aqui, ó!, os pés. A palavra! O corpo inteiro, tudo é arma, homens (e vítimas!), uma arma só, o Homem. Garra, dente, unha! O olhar. Por isto é que olham de lado e para trás, equinos. Devia estar com medo da onça, o jegue garanhão, ou zombando dos outros jumentos. Eu também zombava dos outros meninos na beira do rio. Pois se o vento esturra com a gente, de noite, a gente esturra com ele. Fazia igual ao meu amigo, o jumento de lote, o meu compadre, o Meia Noite. O vento responde. Se o cabra for medroso, é o suficiente para mais se assombrar. Correr e cair. Ou paralisar, sem sair do canto, de medo, caído. Não tinha ninguém para ouvir, nem reclamar. Muito menos para acudir. Os cachorros latiam. Eu também latia. O vento esturrava outra vez. Eu respondia no mesmo trom. A garganta roncando até ficar rouca. Depois acalmava. Zombava de novo. O vento. Eu, os bichos de chão, o medo — reinantes.

 

90. Francisco: Ninguém por perto?

SF: No fim da tarde, as pessoas retornam dos roçados; de noite cedo, das casas das namoradas. Um boa-noite – é de lei. Todo mundo cumprimenta-se, muito diferente da cidade grande, que quase ninguém responde um bom-dia no elevador. Até se espantam com a cortesia. Lá, depois das oito da noite, só o silêncio. Nem luz, nem carro, nem nada. Ninguém. Podia cantar. Cantava o Forró no escuro. Berrar um poema, também podia. Assum-preto. Ninguém reclamava. Podia berrar. Berrava. Só as aves noturnas, os coriscos da noite, os cachorros e o seu animal. E o Magnificat, que sabia berrá-lo de voz grave, em latim. 

 

91. Francisco: Coriscos da noite?

DF: Sim! As estrelas cadentes, um risco no céu, rasgando o céu de cima abaixo, reto, ou assim na diagonal, ligeiro, quase de banda, bem inclinado, no fim do horizonte. Ninguém ouve nada, só a luz, uma luz azul, esverdeando-se. Era de lei que fizesse pedidos ao corisco. Eu os fazia. Pra cima dela, é claro, que sempre os fiz. Com o cansaço, presente o seu animal, todos os sentidos são um só, um bicho único, você mesmo, faiscando, pulsando, fremindo. Ora, se você negocia com o corisco da noite, ao nome dela, não precisa esclarecer sobre os deuses. Claro que eles estão de dentro.  

 

92. Francisco: Nunca mais peregrinou?

SF: Não. Nunca mais. Sinto falta. Já marquei viagem, mas só de boca, com mestre Antônio fazendo o apoio, a camionete carregada com umas águas...! Rapadura, paçoca de carne seca e queijo de coalho. Sim, cerveja também. E castanhas daqui, torradas no sal. E vinho, que faz bem para o coração. Qualquer dia destes, meto os pés e vou. Mas acho que isto de ter apoio e comida à vontade, ali, bem próximos, ao alcance de um grito, inibe o seu animal de aparecer. Tem que ser coisa de só. Sob a certeza do não. O homem, se for de coragem, quanto mais sozinho, mais coragem.

 

93. Francisco: Esse tal animal, ele aparece, só se for com o sofrimento?

SF: Não deixa de ser. Mas não há um sofrimento. É tudo suportável. Desculpe, quase. A técnica, se dói a batata da perna, é chamar a dor lá mesmo, na batata da perna. A gente pega a dor, vai rodando com ela, botando para cá e para lá, domando. Mas tem que estar de só. Na noite, a pé, póco-póco-póco, alternando os trocânteres para cima das alpercatas, chega num ponto em que você diz: Vem, perna! Ela dói, mas vem para junto de si! A sua perna, agora bem de juntinho, que normalmente está a léguas de distância. Você sabe de suas pernas? Claro que não! Pois ali, em viagem, sabe delas. Deixa de doer. Com palavras mansas.

 

94. Francisco: Palavras mansas?

SF: Isto mesmo. Veja, o meu tio Vicente, amansador de cavalos. Um dia, ele montou um cavalo muito doido. O bicho dando pulos que não tinham tamanho. Ele ali, rijo e forte, mas dizia palavras leves. O que ele dizia, eu não sei. Não dava para escutar. Mas os sons eram leves. O bicho calmou. Ele deu a volta, botou as marchas que era para botar e disse, apeando-se, batendo levemente na anca no animal, até pareciam velhos companheiros: Está manso. Sim, a patente-mor de domador de cavalos, a mais alta de lá do sertão, um grau a mais sobre a de vaqueiro. Aquele meu tio, Vicente; o finado meu pai, também Francisco; Heitor, direto de Tróia, e também este seu criado, esta patente a todos eles: domador de cavalos! Aos esturros do vento: de noite, de dia, à beira-rio ou no pedregulho da mata seca, espinhos e bromélias —, reinando, somo-los.

 

95. Francisco: E trocânter, o que é?

SF: Também pode dizer trocanter, oxítono. Fica na cabeça do osso do corredor, na coxa (donde nasceu Dionísio, donde padeceu Jacó a cutilada após o vau do Jaboc), o alto do fêmur, um lugar bom de trincar quando o cabra fica velho, sobretudo nas mulheres, de osteoporose. É ali que cansa e dói quando o bate-pernas é por demais. É a hora de chamar o animal a acalmá-lo. Deixa de doer. Só dá certo se for só. Na certeza da solidão. De ninguém acudir. Nem a quem se queixar. Nem remédio, nem nada. As palavras calmas. Energicamente as palavras calmas. E o medo nenhum.

 

96. Francisco: Não dá medo da morte?

SF: Pode até dar. O cabra não pode voltar. Este, o perigo: não pode jamais pensar em voltar. Tem que ser sem volta, póco-póco-póco, em frente. Sempre! A pisada bem firme, eu não tinha medo de nada. Nem da morte. A gente sabe que não. O seu animal garante que não. Não se trata de confiar. Há uma única palavra: certeza! Era o que eu lhe dizia. Ela dizia que sim. A certeza!

 

97. Francisco: Um instante: 42 quilômetros? Há peregrinações muito maiores. Canindé, você disse, 120 km; Santiago de Compostella, quase 1.000. Por que essa sua, tão curta, seria tão proveitosa?

SF: Tem sido um mistério a mais para mim. Mas veja, começava de tarde, com o Sol bem na cara, no rumo do poente. A noite, que seria o pior, ao assombro da escuridão, pelo contrário, era refrigério. Há o achamento interior, desde que na solidão absoluta. Na estrada do Canindé, centenas de carros, indo e vindo. A luz que vem, a luz que vai. Vruummm! E um bocado de gente a lorotar. Claro que o seu animal não virá nunca. O dono ganhará apenas o cansaço. O melhor lugar para peregrinar, estou certo, vai da fazenda Catuana até Nova Russas, iniciando pelas quatro da tarde, enfiando pela noite inteira, na mais absoluta solidão. Sem levar nada. Sequer livros ou matulão. Só a roupa do corpo, uma roupa leve e as alpercatas. Nem pente, nem escova, nem nada. Ou só os livros. Acho que sim, os livros. Os livros, sim! E um perfume para os cabelos dela, quando voltar. Sempre levei os livros. Dei-lhos todos. Perfume, não, que não tinha nenhum. Nem dinheiro. Da próxima vez que for peregrinar, levarei o incenso e a mirra. Aspergirei, com as minhas mãos, os seus cabelos calmos. A risca do rosto. Primeiro um, depois o outro, os olhos. Entre olho e olho, a única possível – viagem e morte —, os lábios. De ressurreição.

 

98. Francisco: Poderia ser o contrário, de Nova-Russas à fazenda Catuana?

SF: Não! A viagem tem que começar pelo pior, contra o Sol, correndo atrás dele, no rumo do poente. De manhã, quando você menos espera, ele o ataca por trás, nascendo, rasgando os horizontes, de tanta luz. Isto lhe dá a sensação de que ele, Sol, ganhou a corrida. É verdade, não tem quem ande com o Sol. Ele é mais ligeiro, muito mais. Amanheceu! Você se volta e o abençoa. Pede-lhe a "benção", que é um novo dia! É botar os olhos lá na frente... um limiar novo. Os seus olhos grandes, de nenhuma tinta, Ela. Perfil e silhueta, um tempo veloz. Iluminação.


Aos confrades, amigos, adeptos e simpatizantes

     Devido a um problema informático de última hora, não nos será possível fazer a postagem desta semana.    Esperando resolvê-lo em breve,...