terça-feira, 26 de abril de 2022

Para mais tarde recordar

 

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Sócrates e PS: quem aldrabou quem?



António Costa declarou que Sócrates aldrabou o PS. Mas esqueceu-se de acrescentar que o PS também aldrabou Sócrates ao fazer de conta que acreditava nele e que ambos nos aldrabaram a nós, portugueses.

(Dos jornais)

 

   O que acaba de escrever é a pura realidade dos factos. O "engº" Sócrates perdeu-se na sua vaidade louca de querer ser o mais em tudo: em elegância, em pergaminhos, em extravagâncias e em diplomas, mas o seu sucessor, político experiente e sabido, consegue ser muito pior do que ele. É dos que pela calada e sem grandes alardes, vai fazendo pela vida e tem toda a comunicação social a louvaminhá-lo, sem nunca lhe fazer perguntas incómodas nem tão pouco fazer o escrutínio da sua vida, pelo que engorda ele e a sua corte a seu bel-prazer e nós ficamos todos embevecidos com o tal optimismo irritante do amigo do sr. Marcelo!

Alberico Lopes

 

   Quando A. Costa afirmou que Sócrates aldrabou o PS, reconheceu que afinal houve muitas aldrabices! Logo, os ataques ferozes de vários líderes do PS contra as acusações da imprensa, do MP e da Justiça (apelidando-as de cabalas), exigem uma retratação pública do partido socialista e uma indemnização às respectivas vítimas.

Fernando Martins do Vale

 

   O Kosta que se cuide. Não há honra entre socialistas e após o mesmo abandonar o poleiro, não demorará muito até que comecem a vir à tona do pântano algumas verdades desagradáveis. Uma delas é o porquê de Kosta não ter uma conta bancária conhecida (onde será que recebe o ordenado?) É inevitável que o PS descarte Kosta, como agora descartam o 44. Estou curioso quanto ao epíteto que o Nuno da TAP usará para descrever o seu antecessor.

Elvis Wayne


Lembrança de Pedro Oom - Três poemas

 




Poema

 

                 À Júlia Chaves

 

Há um ar de espanto

no teu rosto em silêncio    pequenas pausas

entre nós e as palavras

          que desfiamos

Quando o silêncio (pausa mais longa

           que nos contrai o peito)

cai bruscamente

duas mãos agitam-se meigamente     as nossas

e os mendigos, todos os mendigos

espreitam ao postigo do teu pequeno apartamento

coroados de rosas e crisântemos

 

É o momento

em que afirmamos a realidade das coisas

não a que vemos na rua

e que sabemos fictícia

 

mas a outra

 

aurora cintilante

que põe estrelas no teu sorriso

quando acordas de manhã

com um sol de angústia na garganta

 

acredita

nada nos distingue

entre a multidão anónima a que pertencemos

embora

o fotógrafo teime sempre

em nos oferecer uma esperança

- fluido imaterial que nem mil anos

poderão condensar -

 

O nosso rasto

mal se apercebe na areia

condenados ao fracasso

pequena glória dos pequenos heróis deste tempo

ainda aspiramos

          no entanto

a ser o índice deste século

único sinal humano, florescente e salubre

de contrário

seremos apenas

um halo de vento

arco-íris de luto

ou estrada para sedentários

É ocioso

preparar a objectiva

que nos vai condenar a um número

nesta cidade onde cada homem

é escravo de uma arma

Ocioso

avivar as flores do cenário

encher de luar o jardim do nosso afecto

                      Só um acaso

                      nos poderá revelar

                 por isso

                        fechemos o rosto

                                                   meu amor

 

 

Poema

 

Os camaradas

saíram para a rua

com os bolsos cheios de serpentinas

 

            (o calendário

            estava trocado

            e de Entrudo

 

                        nicles

              nem um só cabeçudo

              ou máscara

              até o polícia de giro

              com a dignidade sui generis

              dos pequenos autocratas

              participou na patuscada

              depois do jogo

              - o Benfica foi eliminado)

 

Os camaradas

compraram fatos novos

nos alfaiates dernier-cri

e botaram as serpentinas

no lixo

 

para não deformar

os bolsos (novos).


 

História do meu boneco

 

Cresceu comigo

neste espaço que se diz português

e neste tempo (histórico)

 

Maricas (era de esperar)

mas rebelde como um felino

ninguém se lhe pôs inteiro

ficou sempre um bocadinho

porque rangia a dentadura.

 

Deixou de acreditar na Santíssima Trindade

quando notou as primeiras brancas do púbis

mas já era muito tarde para ir às “meninas”

pelo que aderiu aos movimentos parlamentares

- lixou-se!

 

Depois de 45

afundou-se na continuidade

engordou (discretamente)

caíram-lhe os últimos molares

farfalhou o bigode, à Guarda Nacional antiga

e hoje

para fingir que é   ainda o teso,

levanta a calva luzente

e bate o pé

 

ao peso dos argumentos.

 

                                            Sacavém, Março de 1973

 

   Enviados a nicolau saião para serem publicados no Suplemento Cultural - do semanário “A Rabeca” - que este dirigia e onde foram integralmente cortados pela Censura.

   Faleceu em Lisboa a 26 de abril de 1974, com quarenta e sete anos de idade. O falecimento ocorreu no “Restaurante 13”, devido a um ataque cardíaco fulminante, quando conjuntamente com amigos festejava os acontecimentos da véspera, a conquista da liberdade pelo povo..


Um prefácio de João Garção...

 




... ao livro A CUMPLICIDADE DOS SENTIDOSde Ana Maria Amorim  

  

Conta-se que o editor Marc Humblot, ao rejeitar a obra À Procura do Tempo Perdido, de Marcel Proust, argumentou que não compreendia por que razões eram precisas trinta páginas para descrever as voltas que alguém dá na cama antes de dormir… E, no entanto, nesta magistral obra, Proust fez a realidade ganhar sentido precisamente através das suas mais peculiares impressões. Mas não nos enganemos, pois essa obra não se resume a uma simples análise introspectiva, revelando também – revelando sobretudo – uma dimensão de mordaz e justa crítica social em relação à sociedade do seu tempo.

Não pude deixar de me recordar desse episódio ao ler este trabalho de Ana Maria Amorim, autora que evidencia (com as devidas diferenças em relação ao grande escritor francês) uma predisposição de teor semelhante. As dezenas de páginas por si escritas ‘de rajada’ (entre 25 e 26 de Setembro de 2010, como indica), não são apenas ‘reflexões ao correr da pena’, impressões subjectivas sobre o mundo que a rodeia e onde lhe foi dado viver, mas, ao introduzirem-nos no seu mundo pessoal (com os seus fantasmas, os seus lamentos, as suas esperanças, as suas angústias e as suas alegrias), levam-nos igualmente a reflectir sobre o estado desse mesmo mundo, que também é o nosso. A própria autora, aliás, afirma imaginar-se ‘muitas vezes outra pessoa’, afirmação de alteridade indispensável para qualquer indivíduo poder ter veleidades de carácter ético e moral, já que a incapacidade de nos colocarmos no lugar do outro impossibilita sabermos conferir-lhe a indispensável dignidade de que é merecedor, decorrente da sua condição de ser humano.

Este é um trabalho que funciona como balanço de vida da autora até ao presente momento. É, nesse sentido, uma obra de amadurecimento pessoal. Mas é também uma obra de descoberta – de descoberta de si mesma e de descoberta da forma como encara a maravilhosa aventura que é a vida (garantia de quotidiano renascimento, mesmo que esteja, aqui e ali, salpicada de desilusões, de angústias e de receios).

Ao efectuar esta análise à sua existência e ao mundo que tem habitado, Ana Maria Amorim coloca-se claramente como tributária das doutrinas católicas que enquadram o seu viver e norteadoras das suas acções. Em várias passagens da obra, a autora mostra aceitar os ensinamentos de Cristo e da Igreja e colocar-se nesse patamar de aceitação. A adesão a esses princípios leva-a a construir determinadas mundividências e a manifestá-las de forma sincera, algumas das quais, pelo menos para quem se situar fora desses princípios, podem considerar-se polémicas e merecer uma rápida rejeição. Mas essa adesão de Ana Maria Amorim não é absolutamente linear e acrítica, a meu ver. É o que sucede, por exemplo, com a sua apreciação sobre a Morte. Como católica, a autora aceita que ‘a vida não é aqui’ (pelo menos, a ‘vida’ mais importante). Com efeito, os ensinamentos de S. Paulo salientam que o corpo pode estar morto, mas que o Espírito é vida - “E se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus de entre os mortos habita em vós, Ele, que ressuscitou Cristo de entre os mortos, também dará vida aos vossos corpos mortais, por meio do seu Espírito que habita em vós.” (Romanos, 8. 11). Idêntico posicionamento se pode encontrar em S. João: “Em verdade, em verdade vos digo: quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna e não é sujeito a julgamento, mas passou da morte para a vida.” (João, 5.24). Mas, mesmo assim, Ana Maria Amorim não deixa de se questionar acerca do que existirá numa outra vida para além desta (“quer ela exista ou não”, como refere), desejando rejeitar a morte, a doença e o sofrimento terrenos. Embora a dogmática cristã lhe dê alento, não lhe proporciona completa tranquilidade: “Viver, é o que mais importa nesta passagem. Viver intensamente, desfrutando todos os prazeres que a vida nos proporciona, como se cada dia fosse o último. A morte é o que mais me assusta e atormenta. A dúvida e a incerteza, que enigma delirante e ao mesmo tempo detestável!”.

Menos cristã, por isto? Creio que não. Aliás, a rejeição da Morte e a exaltação da Vida são princípios divulgados pelo Cristianismo (e, como tal, por todos os cristãos deveriam ser sempre enfatizados, em qualquer tempo e em todas as circunstâncias). Foi aliás o Nazareno que disse: “Eu sou a Verdade e a Vida”. A Morte, que, no dizer de Cristovam Pavia (um poeta português, límpido como poucos e frequentemente – e injustamente – esquecido e em cujos poemas é bem visível a mensagem de Jesus), é velha, gorda e feia, merece da autora, muito salutarmente, a maior rejeição. Como Cristovam Pavia, Ana Maria Amorim, corajosamente, não foge e sustem ‘o peso da hora’ para homenagear familiares já falecidos e, ainda como o escritor alentejano, desejaria poder regressar à ternura de menina, a um tempo de felicidade onde todos os seus irmãos ainda viviam e onde as vivências quotidianas tinham o doce sabor da alegre inocência, mesmo que experimentadas sob o amargor de algumas difíceis condições materiais (a que muitos portugueses não podiam furtar-se, em tempos idos – como ainda o não podem fazer, infelizmente, em tempos actuais).

A recordação desses queridos familiares, entretanto falecidos, leva Ana Maria Amorim a construir-lhes uma elegia ao longo de algumas páginas desta obra. ‘Y aunque la vida murió, nos dexó harto consuelo su memoria”, escreveu no século XV Jorge Manrique, cavaleiro de Santiago, nas suas magníficas Coplas a la Muerte de Su Padre. “Tudo está escrito em mim”, afirma Ana Maria Amorim, que também deseja compartilhar connosco essas gratas (mas simultaneamente dolorosas) recordações, pelo que a escrita – e a autora o deixa entrever – constitui também para si uma actividade catártica, através da qual vai desabafando e, por essa via, procurando amortecer o peso da dor que essas pungentes memórias, nunca apaziguadas, ciclicamente lhe vão trazendo (“o mal é inesquecível” e “o passado é uma sombra”, como afirma).

As gratas vivências quotidianas, em anos felizes, servem de ponto de comparação em relação ao quotidiano actual e, em consequência, de claro contraponto. Os tempos actuais são, para a autora, uma “floresta habitada, mas cada vez mais deserta em valores éticos e morais.”. Ana Maria Amorim contesta a violação dos direitos humanos, enfatizando as situações que têm as crianças como vítimas, manifestando grande inquietação pelas apetências pesadamente materialistas contemporâneas e pelas correlativas inconsistências e traições que considera grassarem com despudor na actual sociedade. O comodismo egoísta do homem contemporâneo reflectir-se-á na sua paralela solidão (solidão espiritual, já que fisicamente, pelo contrário, está muito próximo dos seus semelhantes). Esta avaliação, refira-se, tem sido uma constante ao longo da história humana, evidenciando-se com particular acuidade em certas épocas. Jorge Manrique, por exemplo, na obra atrás referida, não deixou de salientar ‘cómo, a nuestro parescer, cualquiera tiempo passado fue mejor.”. Este desconforto com as características do tempo presente levou alguns autores a elogiar uma vida retirada (Frei Luís de León, por exemplo, na senda deste tema ‘Beatus Illie” popularizado pelo poeta latino Horácio, escreveu no século XVI: “Qué descansada vida/ la del que huye del mundanal ruido,/ y sigue la escondida/ senda por donde han ido/ los pocos sabios que en el mundo han sido.”.

A autora, no entanto, não cede a esta possibilidade. É no aqui e no agora imperfeitos, a seus olhos, que decide travar o seu combate, enfrentando, do passado, as memórias que ferem; do presente, as insuficiências individuais e colectivas, e, do futuro, as perturbantes incógnitas.

Deseja fazê-lo, porque conseguir enfrentar as experiências dolorosas faz parte do seu sonho enquanto mulher (“quando nasce uma mulher, nasce um sonho com ela”, escreveu).

E deseja fazê-lo de forma corajosa, mas sem perder a humildade em prol do orgulho que o excesso de veemência pode acarretar aos menos avisados – humildade de que o já citado Frei Luís de León exemplarmente deu mostra, quando, libertado dos cárceres da Inquisição para retomar a sua cátedra na Universidade de Salamanca, após anos de prisão, mostrou desejar viver a sua vida “ni envidiado, ni envidioso.”.

A autora fá-lo-á com dúvidas, com angústias e com temores?

Sim, mas também com alegrias, pois o riso existe porque o choro também existe (digo agora eu, tomando a liberdade de inverter os termos de uma passagem desta obra). E Ana Maria Amorim deixa bem evidente a sua mensagem de esperança sobre a Vida, apesar de tudo: “Ontem talvez fosse assustador, mas já passou, foi apenas uma chama que quase se apagou. Voltou a acender-se. Hoje é uma fogueira que se sustenta e se consome. Arde e continua a arder em labaredas incandescentes.”.

É que, afinal, como disse Swan (personagem de Proust de À Procura do Tempo Perdido), “a que mais se deve ligar senão à Vida, o único presente que o bom Deus nunca faz duas vezes?...


Giovanni Marradi, Just for you

 



terça-feira, 19 de abril de 2022

PÓRTICO

 


Ithell Colquhoun



Com vénia ao seu Autor, transcrevemos este lúcido texto de Pedro Correia:




EM OBEDIÊNCIA AO CATECISMO TOTALITÁRIO


 

  Vemos, ouvimos e lemos. Não podemos ignorar. Sucedem-se as novas Guernicas, na massacrada Ucrânia.

   Decoramos os nomes destas cidades-mártires: Mariúpol, Butcha, Borodianka, Irpin, Kramatorsk.

   Estão já abertas 5600 investigações oficiais por crimes de guerra cometidos por forças militares e para-militares às ordens de Putin em solo ucraniano.

   Alguns, no entanto, persistem em ignorar. Cegos e surdos perante as evidências. Submetidos a dogmas ideológicos que os inibem de pensar como cidadãos livres. Em obediência servil ao catecismo totalitário.

   Vários destes são cartilheiros por mera fidelidade tribal. Limitam-se a papaguear a cartilha da trincheira, receando ser excomungados. 

  Outros vivem mergulhados num mundo alternativo. Chamam verdade à mentira e mentira à verdade. Têm o quadro mental adaptado à ficção em que creem e evitam validar qualquer facto capaz de contaminar essa ficção.

   Gente como o repugnante Éric Zemmour, candidato da ultradireita que no domingo obteve 7% na primeira volta das presidenciais francesas. Defensor intransigente do carniceiro do Kremlin.

   «É preciso parar de fazer de Putin o agressor. Putin é o agredido, está a defender-se», ladrava ele no Twitter em Junho de 2021.

  Acontece que muitos, no campo político oposto de Zemmour, ladram exactamente isto. Usando as mesmas frases, palavra por palavra.

   Prestam vassalagem a Putin sem qualquer sobressalto de consciência. Os crimes de guerra cometidos pelos russos na Ucrânia não lhes despertam a mais leve censura nem lhes provocam o menor abalo moral. 

   Fascistas e comunistas aplaudem o tirano russo como podiam defender o Raskólnikov de Dostoievski. Indiferentes ao sangue que lhe mancha as botas.


Para que a Terra não esqueça

 


Nicolau Saião, O medo



Abusos:

Igreja não comenta suspeitas de ocultação

 

Comissão independente revelou que há indícios de encobrimento de abusos de menores por parte de bispos católicos ainda no ativo. Mas a Conferência Episcopal não comenta nem diz o que vai fazer.

(Dos jornais)

 

   Mais vergonhoso que a vergonha em si mesma é tentar encobrir este tipo de crimes; só há uma leitura, são todos cúmplices e coniventes nos crimes.

Marco Gomes

 

   A Hierarquia da Igreja lusa estava convencida que a Comissão Independente era um subterfúgio para branquear os abusos dos padres e bispos, safando a ICAR desta vergonha. Mas como se enganaram, agora recorrem ao mais profundo silencio. Como sempre, são a hipocrisia completa personificada em gente cujo estofo causa repugnância.

 Bráulio Garcia


Dois poemas de H. P. Lovecraft

 


Greta Knutson



A COLINA DE ZAMÁN

 

  A grande colina erguia-se perto da velha cidade,

  Um penhasco contra o fundo da rua mais povoada;

  Verdejante e cheia de bosques, cá de baixo parecia escura

  E dominava com a sua altura

  O campanário junto à curva da estrada.

 

  Há duzentos anos que se ouviam rumores

  Sobre o que ocorria nessa ladeira que o homem devia evitar ...

  Histórias de veados e de pássaros estranhamente mutilados

  Ou de garotos perdidos cujos pais tinham cessado de esperar.

 

  Certo dia o carteiro não achou o povoado no seu lugar

  E ninguém voltou a ver os habitantes ou as casas;

  As pessoas vinham de Aylesbury e ficavam-se a olhar...

 

  No entanto, todos diziam ao carteiro que era um ingénuo

  Ou estava louco   por dizer que conseguira descortinar

  Os olhos carnívoros das altas colinas e as bocarras

  Abertas de par em par.

 

 

O PORTO

 

  A dez milhas de Arkham descobrira um carreiro

  Ao longo da falésia alcantilada de Boyton Beach

  E aguardava o momento em que o ocaso coroa

  A crista que assoma por sobre o vale de Innsmouth.

 

  Ao longe, no mar alto, uma vela vogava

  Branqueada por árduos anos de velhos ventos,

  Carregada com o mal de algum facto inexplicável.

  E não ergui, assim, mão ou voz para saudá-la.

 

  Veleiros de Innsmouth! Ecos de idas memórias

  De tempos já longínquos; a noite ia caindo,

  Bem cerrada, quando cheguei ao topo

  De onde era meu hábito olhar a povoação.

 

  Além estão os campanários e os telhados... Mas, olhai!

  As trevas

  Propagam-se nas ruas, tenebrosas como tumbas!


(Tradução de Nicolau Saião)

Um texto de Carlos Martins

 

NO CATÁLOGO DE UMA EXPOSIÇÃO



 I - A pintura como interrogação e expressão da vida

    Como pedir ao pintor que cale e oculte a sua melancolia e a mágoa de ter dentro de si, rebelando-o, o fogo do desencanto e da abjecção?

    O pintor livre situa-se pois num pleno que escapa às arrumações economicistas e materialistas que pretendem reduzir a vida e a complexidade das sociedades humanas a uma mera luta de interesses entre classes ou grupos sociais. Há mais mundos – já escrevia José Régio. O pintor, como poeta da paleta, não pode deixar de reflectir nas suas telas o desmoronamento do mundo que se processa à sua volta.

    Entregue à tela como aos braços e ao ventre da mulher e do homem amado, o pintor segue as coordenadas e os caminhos ditados pelo subconsciente, numa busca incessante de realidade para além das aparências e das sombras. Porque aquela não se apresenta fácil e fiel a todos os olhares, antes se confundindo e insinuando como uma fórmula secreta. E aqui chegados, desde logo relacionamos o pintor como um descodificador de símbolos e segredos  cujo empreendimento sabe nunca poder terminar. Daí a sua vida ser um imenso percurso que se realiza sobretudo através dos outros, mais propriamente através do espírito e da palavra dos outros, isto é, para além dos limites da sua própria existência.

    O assunto, amante fiel da forma, é o alvo do pintor invadindo-o até às entranhas, ainda que seja conhecido que um e outra se conciliam como no amor. O acto de pintar é para o pintor violentamente orgástico e experiência íntima que sobeje para deixar de fora todos os que dele colhendo a iniciação, somente desejam os seus frutos tentadores, ignorando ou desprezando os caminhos de sacrifício que o mesmo encerra. A Pintura como a Alquimia não é campo de cultivo para assopradores de circunstância ou cultores de catavento que desertam à menor das dificuldades. Ritual de vida e de morte, a pintura implica uma disponibilidade do criador para a aceitação dos obstáculos.

    Na tela as cores estão lá todas, absolutamente em tudo. As cores quentes confundindo-se com as mais frias, os vermelhos e os negros do fogo e do sangue relacionando-se com os azuis e os verdes da pureza e da degeneração. Contudo com as cores, levando-as na ponta do pincel, nos dedos ou na espátula, vão também os fantasmas da realidade, as regiões ocultas que só o poeta tem a faculdade de penetrar.



Maldoror


II – A fúria dos elementos

    A minha própria experiência de pintor que monta o atelier na rua ou nos parques da cidade, sob sol intenso ou recebendo no corpo e na alma a fúria dos ventos, tempestades ou invejas mesquinhas, permitiu-me (e permite ainda) percorrer os labirintos, subterrâneos e infernos da vida contemporânea e sentir o compasso ignóbil por onde se rege a maioria dos homens da sociedade moderna e “civilizada”. Não é obrigatório que outros tenham de o fazer e haverá certamente outros modos de lá chegar. Todavia é uma experiência única (e aterradora) pois coloca o pintor no meio da vaga redutora onde se matam à nascença todos os sinais de inocência e ilusão.

    A minha pintura não cessa de reflectir estas viagens de realidade e pesadelo, encontros com a matéria-prima com que se concebem o ódio e a degeneração do espírito humano.     

   Os meus últimos trabalhos, estes que exponho aos vossos olhos belos e selvagens, ostentam o monstro com o ventre repleto de novos embriões. O retrato do Indizível não está ainda terminado mas já se lhe vê nos olhos a ambição de ficar por largo tempo, tentaculando virgens e homens de mera condição.

   Em data que desconhecemos, neste século em que as sombras do racionalismo se fecharam como garras sobre o Mundo, de Bruxelas escreveu Saldanha da Gama para o poeta Mário Cesariny: “Ou aller pour vivre, ivre, maigre, mais libre?”. O drama para o poeta do nosso tempo e particularmente dos dias de hoje, é o da sobrevivência espiritual e igualmente física, numa sociedade e num mundo onde a vontade dominante se inclina vertiginosamente para o holocausto e a queda, arrastando nessa tragédia colectiva todos os que não se submetem às suas inclinações destrutivas e antropofágicas.

   Farol de poesia e liberdade, a pintura continuará, contra todas as aparências (e apesar de todas as resignações e conformismos) a iluminar as zonas de sombra da realidade. Sem quaisquer vinculações a correntes ou postulados estéticos ou ideológicos, antes agindo como ave de voo largo e universal, o pintor continuará a traçar na tela o agitar frenético de vampiros que invade o rosto do homem e lhe sulca na pele os caminhos da rendição.  

   É essa a sua condição.

   O pintor seguirá adiante mesmo perante o riso ou o desdém de quem sente que lhe conceberam o retrato a negro e sem memória. Só as vozes livres saberão seguir-lhe o rasto de cometa insubmisso e serão essas vozes que acompanharão o pintor pelos séculos adiante. O pintor continuará incessantemente a pôr em tela os infernos ou os paraísos que vê distintamente no íntimo dos homens”.


Motorhead, God was never on your side

 



terça-feira, 12 de abril de 2022

Para que a Terra não esqueça

 

Discreto, estratega, confiável: quem é Aleksander Dvornikov,

o novo homem de Putin à frente da guerra.



Aleksander Dvornikov está na lista negra de sanções europeias e foi o cérebro da ofensiva russa na Síria. Agora coordena as tropas na Ucrânia. Terá sido ele a ordenar o ataque em Kramatorsk.

(Dos jornais)


   Aleksander Dvornikov, um pacifista que arrasou cidades na Síria, utilizou bombas de fragmentação, termobáricas, ou seja, tudo o que tinha à mão.

  Putin sabe bem que precisa de assassinos para continuar o seu trabalho mafioso. 

  Mas o melhor é ficar longe do teatro de guerra. Esconda-se num buraco bem fundo, juntamento com os ratos que governam o Kremlin. 

Fernando Fernandes


Um poema de Cesar Moro

 


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UMA ESTRADA DE TERRA NO MEIO DA TERRA

 

Os ramos de luz atordoante povoando inúmeras vezes

       O espaço da tua testa assaltada por ondas

Asfalto de fogo tecido com cabelos macios e traços

      leves fósseis de plantas delicadas

Ignorada pelo mundo banhando os teus olhos e o rosto de

      lava verde

Quem vive! mal adormecido eu volto de muito longe para ti

      ao encontro das trevas com o passo de um chacal mostrando-te

      conchas de espuma de cerveja e prováveis

      palácios de madrepérola lamacenta

 Vivendo sob as algas

 O sonho na tempestade sereias como um relâmpago no

     amanhecer incerto um caminho de terra no meio da

     terra e nuvens de terra e a tua fronte ergue-se, como

     um castelo de neve e apaga o amanhecer e o dia

ilumina-se e a noite volta e as madeixas do teu cabelo

     interpõem-se e açoitam o rosto gelado da noite

Para semear o mar de luzes moribundas

E que às plantas carnívoras não falte o alimento

E cresçam olhos nas praias

E as selvas despenteadas gemam como gaivotas.

 

(Tradução de nicolau saião)


Nicolau Saião, “Toada de Portalegre” - dois rascunhos prévios

 



A poesia, já se sabe, é a seu modo um processo de acumulação e juntura. Qual o seu secreto encadeamento, qual o percurso que toma a sua ordenação, de que forma o poeta talha e restaura, observa e finalmente conclui? Perguntava Camus, a certo passo dum texto seu: “Quem testemunhará por nós?” e respondia de imediato: “As nossas obras”. Apontava, é claro, para o testemunho da obra acabada no seu ciclo de coisa espiritual, de matéria interior que transporta para os vindouros, com toda a sua carga própria, as perguntas e as respostas que nos é dado formular.

Mas, em simultâneo, é fascinante e importante a mais dum título que tanto quanto o possamos fazer nos debrucemos sobre o suporte em si, seja no caso da poesia ou da pintura, da música ou da filosofia, serve dizer: nos ramos das actividades superiores que, por o serem, não estão dependentes de eventuais manobras ilegítimas de tiranos ou de equívocos mandantes, ainda que a matéria em que se revelem esteja por vezes submetida a ditames exteriores à vontade de quem as utiliza. Porque, nas suas vias interiores, os poetas não têm dono, não são assimiláveis pelos que, frequentemente, tentam à custa deles estabelecer currículos, efectuar brilharetes duvidosos, bolsar jaculatórias de nulo poder encantatório. Não falando, é claro, no caso extremo de quem subtrai à visão e fruição de outrem as produções com que os autores buscam interpelar o seu tempo e o tempo a vir.

Já vários ensaístas e poetas têm analisado proficientemente a questão dos vestígios. Deixa-se adivinhar a seguinte pergunta: o rigor interior duma obra pode ser divisado, digamos, no rigor do suporte? É inevitável lembrarmo-nos de Balzac e das sucessivas emendas a que submetia os seus escritos, cujos gatafunhos desesperavam os tipógrafos, ou das partituras de Schubert frequentemente lançadas num qualquer papelucho que lhe caía nas mãos, ou até sobre o tampo de mesas até que um fortuito papel salvador lhe chegasse…

Como se estrutura pois a matéria criada, de que maneira peculiar voga e navega o processo criador - tal pode entrever-se pela observação desses vestígios que os diversos autores nos legam ou simplesmente vão deixando na sua viagem pelo tempo que lhes coube viver. No caso que a seguir abordaremos isso naturalmente acontece.

Cedidas em fotocópia pelo Dr. Manuel Inácio Pestana - a quem fora oferecida reprodução das mesmas pelo coleccionador António Capucho - temos na nossa frente as duas versões prévias (deverá chamar-se-lhes rascunhos?) do conhecido texto regiano que fez e muito bem momentos inesquecíveis de muitos leitores tanto lusitanos como brasileiros. Dediquemos-lhes atenção, visando deixar algumas pistas consistentes.

A primeira versão, exarada na bela e clara letra de Régio, tem emendas em todas as páginas, sendo de assinalar que a “emenda” da décima é um acrescento no verso da mesma; acrescento significativo, uma vez que é a famosa reflexão que começa: “O amor, a amizade e quantos/ Mais sonhos de ouro eu sonhara,(…)” aliás também emendada na oitava linha. As páginas 2, 5, 7 e 10 são ilustradas por desenhos como que ao correr da pena.

Contudo, apesar de o serem, diria que nos mostram a preocupação plástica do poeta duma forma incisiva: o desenho da página 10, por exemplo, patenteia-nos um rosto arrepanhado, dorido, inclinado sobre a esquerda (tradicionalmente o lado do coração), um rosto que o poeta frequentemente plasmou em desenhos diversos. Na segunda versão, apenas uma palavra foi substituída na primeira linha da oitava página - retomando aliás a palavra escrita na primeira versão: desgraçados em vez de enforcados, que para Régio decerto marcava em demasia a sequência da estrutura do poema. De assinalar, ainda, que nenhuma destas versões manuscritas contém a palavra atónito, que se lê na versão publicada em livro (“Deixado só, nulo, atónito…); nelas, a que consta é a palavra vácuo.

“Esta é a minha mão das palavras”, diz num seu poema Carlos Edmundo de Ory (em excelente tradução de Herberto Hélder). A mão interior dos poetas procura na escuridão e no silencio “le mot juste” para tentar redefinir o mundo, para adequar o seu percurso próprio a uma rota de liberdade, de felicidade e de sabedoria.

É essa a única aposta que vale a pena como referia Mathew Mead, a única tarefa que ao poeta eventualmente caberá e que num universo de inquietações várias faz de facto sentido. O resto, coisas um tanto espúrias que a vida civil pela mão de alguns tenta colar ao perfil dos criadores, é apenas acrescento frequentemente inútil ou dispensável.

Régio, como grande escritor que era, sabia-o na perfeição.


Aos confrades, amigos, adeptos e simpatizantes

     Devido a um problema informático de última hora, não nos será possível fazer a postagem desta semana.    Esperando resolvê-lo em breve,...