... ao livro A CUMPLICIDADE DOS SENTIDOS, de
Ana Maria Amorim
Conta-se que o editor Marc Humblot, ao rejeitar a obra À Procura do
Tempo Perdido, de Marcel Proust, argumentou que não compreendia por
que razões eram precisas trinta páginas para descrever as voltas que alguém dá
na cama antes de dormir… E, no entanto, nesta magistral obra, Proust fez a
realidade ganhar sentido precisamente através das suas mais peculiares
impressões. Mas não nos enganemos, pois essa obra não se resume a uma simples
análise introspectiva, revelando também – revelando sobretudo – uma
dimensão de mordaz e justa crítica social em relação à sociedade do seu tempo.
Não pude deixar de me recordar desse episódio ao ler este trabalho de Ana
Maria Amorim, autora que evidencia (com as devidas diferenças em relação ao
grande escritor francês) uma predisposição de teor semelhante. As dezenas de
páginas por si escritas ‘de rajada’ (entre 25 e 26 de Setembro de 2010, como
indica), não são apenas ‘reflexões ao correr da pena’, impressões
subjectivas sobre o mundo que a rodeia e onde lhe foi dado viver, mas, ao
introduzirem-nos no seu mundo pessoal (com os seus fantasmas, os seus
lamentos, as suas esperanças, as suas angústias e as suas alegrias), levam-nos
igualmente a reflectir sobre o estado desse mesmo mundo, que também é o nosso.
A própria autora, aliás, afirma imaginar-se ‘muitas vezes outra pessoa’,
afirmação de alteridade indispensável para qualquer indivíduo poder ter
veleidades de carácter ético e moral, já que a incapacidade de nos colocarmos
no lugar do outro impossibilita sabermos conferir-lhe a indispensável
dignidade de que é merecedor, decorrente da sua condição de ser humano.
Este é um trabalho que funciona como balanço de vida da autora até ao
presente momento. É, nesse sentido, uma obra de amadurecimento pessoal. Mas é
também uma obra de descoberta – de descoberta de si mesma e de descoberta da
forma como encara a maravilhosa aventura que é a vida (garantia de quotidiano
renascimento, mesmo que esteja, aqui e ali, salpicada de desilusões, de
angústias e de receios).
Ao efectuar esta análise à sua existência e ao mundo que tem habitado,
Ana Maria Amorim coloca-se claramente como tributária das doutrinas católicas
que enquadram o seu viver e norteadoras das suas acções. Em várias passagens da
obra, a autora mostra aceitar os ensinamentos de Cristo e da Igreja e
colocar-se nesse patamar de aceitação. A adesão a esses princípios leva-a a
construir determinadas mundividências e a manifestá-las de forma sincera,
algumas das quais, pelo menos para quem se situar fora desses princípios, podem
considerar-se polémicas e merecer uma rápida rejeição. Mas essa adesão de Ana
Maria Amorim não é absolutamente linear e acrítica, a meu ver. É o que sucede,
por exemplo, com a sua apreciação sobre a Morte. Como católica, a autora aceita
que ‘a vida não é aqui’ (pelo menos, a ‘vida’ mais importante). Com
efeito, os ensinamentos de S. Paulo salientam que o corpo pode estar morto, mas
que o Espírito é vida - “E se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus de
entre os mortos habita em vós, Ele, que ressuscitou Cristo de entre os mortos,
também dará vida aos vossos corpos mortais, por meio do seu Espírito que habita
em vós.” (Romanos, 8. 11). Idêntico posicionamento se pode encontrar
em S. João: “Em verdade, em verdade vos digo: quem ouve a minha
palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna e não é sujeito a
julgamento, mas passou da morte para a vida.” (João, 5.24). Mas,
mesmo assim, Ana Maria Amorim não deixa de se questionar acerca do que existirá
numa outra vida para além desta (“quer ela exista ou não”, como refere),
desejando rejeitar a morte, a doença e o sofrimento terrenos. Embora a
dogmática cristã lhe dê alento, não lhe proporciona completa tranquilidade: “Viver,
é o que mais importa nesta passagem. Viver intensamente, desfrutando todos os
prazeres que a vida nos proporciona, como se cada dia fosse o último. A morte é
o que mais me assusta e atormenta. A dúvida e a incerteza, que enigma delirante
e ao mesmo tempo detestável!”.
Menos cristã, por isto? Creio que não. Aliás, a rejeição da Morte e a
exaltação da Vida são princípios divulgados pelo Cristianismo (e, como tal, por
todos os cristãos deveriam ser sempre enfatizados, em qualquer tempo e em todas
as circunstâncias). Foi aliás o Nazareno que disse: “Eu sou a Verdade e a Vida”. A
Morte, que, no dizer de Cristovam Pavia (um poeta português, límpido como
poucos e frequentemente – e injustamente – esquecido e em cujos poemas é bem
visível a mensagem de Jesus), é velha,
gorda e feia, merece da autora, muito salutarmente, a maior rejeição. Como
Cristovam Pavia, Ana Maria Amorim, corajosamente, não foge e sustem ‘o peso
da hora’ para homenagear familiares já falecidos e, ainda como o escritor
alentejano, desejaria poder regressar à ternura de menina, a um tempo de
felicidade onde todos os seus irmãos ainda viviam e onde as vivências
quotidianas tinham o doce sabor da alegre inocência, mesmo que experimentadas
sob o amargor de algumas difíceis condições materiais (a que muitos portugueses
não podiam furtar-se, em tempos idos – como ainda o não podem fazer,
infelizmente, em tempos actuais).
A recordação desses queridos familiares, entretanto falecidos, leva Ana
Maria Amorim a construir-lhes uma elegia ao longo de algumas páginas desta
obra. ‘Y aunque la vida murió, nos dexó harto consuelo su memoria”,
escreveu no século XV Jorge Manrique, cavaleiro de Santiago, nas suas
magníficas Coplas a la Muerte de Su Padre. “Tudo está escrito em mim”,
afirma Ana Maria Amorim, que também deseja compartilhar connosco essas gratas
(mas simultaneamente dolorosas) recordações, pelo que a escrita – e a autora o
deixa entrever – constitui também para si uma actividade catártica, através da
qual vai desabafando e, por essa via, procurando amortecer o peso da dor que
essas pungentes memórias, nunca apaziguadas, ciclicamente lhe vão trazendo (“o
mal é inesquecível” e “o passado é uma sombra”, como afirma).
As gratas vivências quotidianas, em anos felizes, servem de ponto de
comparação em relação ao quotidiano actual e, em consequência, de claro
contraponto. Os tempos actuais são, para a autora, uma “floresta habitada,
mas cada vez mais deserta em valores éticos e morais.”. Ana Maria Amorim
contesta a violação dos direitos humanos, enfatizando as situações que têm as
crianças como vítimas, manifestando grande inquietação pelas apetências
pesadamente materialistas contemporâneas e pelas correlativas inconsistências e
traições que considera grassarem com despudor na actual sociedade. O comodismo
egoísta do homem contemporâneo reflectir-se-á na sua paralela solidão (solidão
espiritual, já que fisicamente, pelo contrário, está muito próximo dos seus
semelhantes). Esta avaliação, refira-se, tem sido uma constante ao longo da
história humana, evidenciando-se com particular acuidade em certas épocas.
Jorge Manrique, por exemplo, na obra atrás referida, não deixou de salientar ‘cómo,
a nuestro parescer, cualquiera tiempo passado fue mejor.”. Este desconforto
com as características do tempo presente levou alguns autores a elogiar
uma vida retirada (Frei Luís de León, por exemplo, na senda deste tema ‘Beatus
Illie” popularizado pelo poeta latino Horácio, escreveu no século XVI: “Qué
descansada vida/ la del que huye del mundanal ruido,/ y sigue la escondida/
senda por donde han ido/ los pocos sabios que en el mundo han sido.”.
A autora, no entanto, não cede a esta possibilidade. É no aqui e
no agora imperfeitos, a seus olhos, que decide travar o seu combate,
enfrentando, do passado, as memórias que ferem; do presente, as insuficiências
individuais e colectivas, e, do futuro, as perturbantes incógnitas.
Deseja fazê-lo, porque conseguir enfrentar as experiências dolorosas faz
parte do seu sonho enquanto mulher (“quando nasce uma mulher, nasce um sonho
com ela”, escreveu).
E deseja fazê-lo de forma corajosa, mas sem perder a humildade em prol do
orgulho que o excesso de veemência pode acarretar aos menos avisados –
humildade de que o já citado Frei Luís de León exemplarmente deu mostra,
quando, libertado dos cárceres da Inquisição para retomar a sua cátedra na
Universidade de Salamanca, após anos de prisão, mostrou desejar viver a sua
vida “ni envidiado, ni envidioso.”.
A autora fá-lo-á com dúvidas, com angústias e com temores?
Sim, mas também com alegrias, pois o riso existe porque o choro também
existe (digo agora eu, tomando a liberdade de inverter os termos de uma passagem
desta obra). E Ana Maria Amorim deixa bem evidente a sua mensagem de esperança
sobre a Vida, apesar de tudo: “Ontem talvez fosse assustador, mas já passou,
foi apenas uma chama que quase se apagou. Voltou a acender-se. Hoje é uma
fogueira que se sustenta e se consome. Arde e continua a arder em labaredas
incandescentes.”.
É que, afinal, como disse Swan (personagem de Proust de À Procura do
Tempo Perdido), “a que mais se deve ligar senão à Vida, o único presente
que o bom Deus nunca faz duas vezes?...
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