segunda-feira, 29 de março de 2021

Para um minuto de meditação - 78

 




RTP: Nicolau Santos escolhido para a administração

O novo Conselho de Administração da RTP conta com a participação do jornalista Nicolau Santos e do administrador da estação Hugo Figueiredo. A decisão do Conselho Geral Independente foi unânime.

(Dos jornais)


   É um homem de alta craveira sob qualquer aspecto. Entrevistador notável, foi ele que prestou um relevante serviço ao País apresentando publicamente um grande especialista em diplomacia internacional, o colaborador da ONU e comentador em diversos importantes órgãos mundiais, Doutor Artur Baptista da Silva.

   Além disso, no que respeita à sua figura de requintada elegância, tornou famoso nos meios mais cultos o seu célebre lacinho, o que o distingue como um dos melhores jornalistas lusitanos.

    Andou bem o PS ao colocá-lo num lugar onde pode servir ainda melhor a Nação, tal como este partido, alegadamente, preceitua consensualmente.

Bráulio Tavares

 

  Calculo que o Sr. Doutor Artur Baptista da Silva, como homem bem-educado, não tardará se é que o não fez já a endereçar felicitações a este representante do nosso jornalismo de referência.

Zacarias Rodrigues


Um poema de Vicente Huidobro

 

A TEMPESTADE

 

                                a Max Jacob

 

Noite de temporal

a escuridão morde-me o crâneo.

Os diabos

              postilhões do trovão

                                       foram de férias.

 

Ninguém passou pela rua

   Ela não veio

                   tombou na esquina

e o pêndulo

                  quedou-se imóvel

                                     já não oscila.

 

                      Por vezes o eléctrico

                      afasta-se voando

                      como os passarocos de fogo.

 

Na montanha

os rebanhos

                   tremem sob o temporal

E o cão maneta que tudo vigia

procura a sua sombra.

 

                                  Vem mais para o pé de mim

                                  faremos uma viagem maravilhosa.

 

No deserto africano

                              as girafas buscam engolir a Lua.

Não é preciso olhar

             obrigatório espreitar

                           por detrás dos muros.

 

E a curiosidade alonga o pescoço.

 

     Alguém se procura

     se procura

     e ninguém topa o caminho.

 

Eu escondo uma recordação

mas eis que é inútil olhar os meus olhos.

 

      Ao derredor do meu lar

                                          o vento rosna

E talvez que lá ao fundo a minha mãe

soluce.

 

O berro dum trovão fatigado

seriíssimo pousou no mais altivo cume.

 

 

                              in “L’aventure Dada”


Tradução de Nicolau Saião


«Ulisses» de James Joyce ou um dia que simboliza a vida

 



   Embora a referência óbvia do livro «Ulisses» seja a «Odisseia» de Homero do qual James Joyce «aproveitou» os episódios de Telémaco, Nestor, Calipso, Nausica, Circe, Ítaca e Penélope (entre muitos outros). O ponto de partida do livro é o dia 16 de Junho de 1904 que é afinal para Stuart Gilbert «um dia muito semelhante a qualquer outro» mas o resultado é, segundo João Palma-Ferreira, autor da tradução portuguesa, dois anos de trabalho entre 1987 e 1989, «um texto difícil que por vezes deixa o leitor perplexo, tal a forma deliberadamente elaborada e exaustiva com que evita as ciladas da narrativa convencional».

   Para quem gosta de sínteses pode ficar esta síntese do autor do livro em 1920 numa carta a Carlo Linati: «a história de um dia que simboliza a vida». Vejamos a página 55 do Ulisses de James Joyce (1882-1941) Edição Livros do Brasil: «Feio e fútil: pescoço esticado e cabelo encrespado e uma nódoa de tinta, um rasto de caracol. Não obstante, alguém o tinha amado, levara-o nos braços e no coração. A não ser por isso a corrida do mundo tê-lo-ia calcado a pés, caracol esborrachado e sem ossos. Ela amara-lhe o sangue aquoso e fraco que do dela fora escoado. E isso então era real? A única coisa verdadeira na vida?»

   Livro escrito entre Trieste, Zurich e Paris nos anos de 1914 a 1921, o pano de fundo da acção inicial é a Torre Martello, debruçada sobre a baía de Dublin, a capital da Irlanda. Claro que a página 55 é apenas a página 55 mas como convite à leitura julgo estar bem para o assunto, afinal um dos livros mais importantes do século XX. Um grande livro que por acaso é também um livro grande…  

 

José do Carmo Francisco


Jesse Cook, Once

 



quinta-feira, 25 de março de 2021

Para um minuto de meditação - 77

 



Forças de Maduro terão assassinado 2.853 pessoas 

A denúncia é feita pela ONG Provea, que investiga casos de violência policial na Venezuela. Autoridades “agem com total liberdade, por terem a certeza de que a sua conduta não será investigada".

(Dos jornais)

 

  E os que morreram à fome? E os que morreram por falta de tratamento hospitalar? E ainda temos partidos que defendem estes regimes!

Victoria Arrenega


   Contas por baixo. Este sabe lidar com a oposição da forma democrática que o PCP subscreve. 

Carlos Reis


  Alguns ainda não tinham percebido esta realidade: os comunistas matam mesmo. Mostra-nos a História, mas também o que se passa actualmente. Não usam paninhos quentes, sempre que podem eliminam os que se lhes opõem sem contemplações, seja onde fôr que consigam chegar ao poder.

José Barreiros


Quatro poemas de Jean-Paul Mestas

 

Barnabooth

 

Muitos o reconheceram

distraído

olhar de viajante

as mãos prontas para a escrita.

 

Lisboa está no ponto

Londres pensativa

adulada Lutécia…

Ó capitais que as palavras

imperceptivelmente fazem sussurrar!

 

Aqui a cabeça pesada

um lembrado sapateado

inquieto talvez do silêncio

que enigmaticamente o assalta.

 

Enfim um momento lhe permite

a um sonho abrir o seu momento dourado.

 

Cadastro imaginário

 

Aqui ficarão os murmúrios

com um pouco de terra

retirada dos velhos tempos;

 

ao lado ficarão os silêncios

rodeados de discretos suspiros

como os das mulheres

na expectativa do amor;

 

algures, um pouco mais longe

reviverão as estátuas

adormecidas na nossa memória.

 

 

Retorno sobre si mesmo

 

Aos anos que vão passando

não contes jamais

o que foram as tuas impaciências.

 

 

Lembra-te que as estátuas

ficaram como ausentes

no fundo da tua memória.

 

Assim podes imaginar

ter sido

o que semeava palavras na lua.

 

 

Um grito

 

Vias travessas

e desejos nados-mortos

um grito

rompe os silêncios confundidos

pelo seu próprio estrondo

num império onde a memória

tem sobressaltos cruéis

e dolorosos desfaleceres…


Tradução de Cristino Cortes

Um pouco mais de lembranças...

 


ns



O Ti’Mané Vítima – Ou só o Vítima, que os anos abreviam até as alcunhas inventadas. Era carvoeiro e quando apregoava “Olha o picão, picãããão!” o seu grito publicitário era uma queixa rouca e desgarradora que fazia pena e riso em simultâneo. Como uma acusação feita ao destino, quase no género dum Pamplinas sonoro. Daí o nome de Vítima que de pronto lhe colei para gastos internos.

   Todas as tardinhas, com o jerico liberalmente carregado, passava o “Vítima” perto da minha casa. Às vezes um bocado aos trancos, que Ti’Mané gostava da sua pinga e não devia ser peco a servir-se da caneca. E sendo o burrico o seu meio de transporte, não corria o risco de ter de soprar no balão ou ser autuado, com vilania, pelos pasmas. Daí, concerteza, a sua solitária e serena reincidência que lhe desatava a língua e o punha em conversas íntimas, com perguntas e respostas só lá p’ra ele, num tom algo entaramelado mas convicto. Que filosofias de mágoa ou espanto lhe percorreriam as meninges? O “Vítima” jogava nos diálogos a uma voz, visitando lugares inacessíveis aos outros nos continentes dum discurso próprio e, confesso, isso fazia a minha admiração juvenil.  Pela evidente constância, decerto dirigida aos manes.

  Às vezes acompanhava-o um filho ainda novito mas que ele já dera às artes ígneas da carvoaria. Tinha uns olhos duma tristeza infinita. Mas, como eu o conhecia da escola, sabia que isso se devia mais ao enfarruscado do rosto – marca inevitável em quem praticava semelhante tarefa. Calado, sobre o magro mas rijote, conhecia como seu pai as lides do fogo, o largo espelhado das chamas e, depois, o fumo acre e oloroso sobre os campos. Daí, talvez, o seu algum afastamento da malta colegial, rapaz-homem que já era. Mas pacífico – e com uma humildade comovente de pobre. Um dia, um peralta qualquer ofendeu-o e, ameaçador, colocou-se em posição ante os olhos algo acossados do jovem carvoeiro. Impante, bruto como as casas, humilhou-o com desfaçatez. Ou seja, teve azar. Com a minha delicadeza de orangotango fui-me a ele e deixei-o feito em cacos: e que isso conte a meu favor, essa zaragata de que me orgulho, nas contas a efectuar com os anjos guardiões do senhor deus dos exércitos. E nem sei se ele me olhou com os seus lúzios de labutador sem usura.

   Há uns anos, andando eu a passear numa das vilas-dormitórios da grande Lisboa, dei com ele – com um filhote à ilharga – a entrar num cafézito de bairro. Fiz-me também entrado e tomei anonimamente qualquer coisa enquanto o nosso herói desbaratava uma sandes acompanhada a cervejola. Não era, portanto, um adepto do tintol como o senhor seu pai já falecido.

   Paguei o não sei quê que bebera. Saí, com o coração a bambolear como o Ti’Mané fazia. E na rua, enquanto ia respirando o ar proletário daquele bairro de operários, só me apetecia gritar baixinho “Olh’ó picão, picãããão!”. Como uma queixa, digamos. Ou uma saudação daqui para o além, burrico incluído.

 

O Santo de Pau CarunchosoMetafisicamente, um peso leve. Ao que parece Deus manda-lhe lembretes adequados e ele, com gravidade mas sem cerimónia, com a naturalidade dos que se sabem escolhidos (sem vaidade!) distribui-os caritativamente como cumpre aos ungidos pela graça. É humilde, bem falante, ama os pobrezinhos e até compreende os ateus, esses desnaturados. Na sua santa compreensão sabe que o são apenas (não é verdade?) por desorientação. Que um dia voltarão ao redil – mas mesmo que não voltem merecem uma oportunidade. Assim como assim não são todos filhos do (seu) Senhor?

  A tal ponto humano, delicado e escorreitamente uma alma de eleição, este Bossuet de pacotilha, este S.Tomás de trazer por casa fez sempre a minha admiração estupefacta: disseram-me com verdade que teve duas criadas anciãs e que no estado de moribundas lhes pegou na mão até darem o salto para a eternidade. Questionado sobre o facto, referiu que era para as auxiliar no momento derradeiro! E não ter uma delas voltado – ou até mesmo as duas – por um minuto à vida para lhe escarrarem na cara a verdade básica de que naquele momento um ser humano deve ser deixado em paz, porque cada um tem direito à sua morte sem que ao lado esteja a bondade de um patrão!

   Tão dedicado, serviçal e esclarecido nos quereres da Providência – que faz perceber aos mais lúcidos ou versados nos assuntos da Dogmática e da Patrística que decerto o sinal do demo não lhe anda longe. Ou seja: vai ter uma grande surpresa quando chegar o último suspiro e o Criador – em que ele crê com os quatro lombos – previsivelmente o atirar com um gentil mas decidido pontapé no traseiro para o purgatório, que gente como ele nem inferno merece. Mas talvez, ó céus, isso seja ainda matéria de júbilo, porque para estes semprempés místicos tudo é matéria de comprazimento e auto-consolação, tudo é magnífica ocasião de ascenderem, como ele vai ascendendo pouco a pouco, ao seio da mais celestial e gratificante santa abominação.


in “RETRATOS DE FANTASMAS NÍTIDOS”

ns

Rush, The weapon

 



segunda-feira, 22 de março de 2021

Para um minuto de meditação - 76

 

António Costa apanhado em escutas

no caso do hidrogénio

(Dos jornais)

 



   “Neste país em diminutivo/respeitinho é que é preciso”

Alexandre O’Neill

 

   “Engolimos de uma vez a mentira que nos adula e bebemos gota a gota a verdade que nos amarga.”

Denis Diderot

 

   “Mas isto é apenas a pontinha do iceberg. O que Sócrates, iracundo e truculento, não conseguiu com o seu estilo arrebenta, ou seja dominar completamente o país mesmo mediante o tristemente célebre atentado ao Estado de Direito de que santas alminhas lhe safaram judicialmente o couro, tem-no conseguido Costa, pouco a pouco com a sua habilidade de anafado risonho, num país onde a corrupção, o abuso descarado e o desprezo pelos cidadãos campeiam.

   O que o PREC não conseguiu naquele tempo na rua, em tiradas violentas, tem-no ele levado a bom termo, na linha de Gramsci que ostenta, ao apoderar-se pé-ante-pé dos mecanismos da governança: órgãos de comunicação maioritariamente anestesiados e subservientes, parlamento controlado, maioria do sistema judicial amansado e disponível, serviços de inteligência a contento, universidades que na sua maior parte agem como madrassas ideológicas. E agora chegou a vez das Forças Armadas e das de Segurança.

   Vai tentar estabelecer, pois é o que ele e os apaniguados visam, a grande paz socialista de “amplas liberdades”, ou seja, a ditadura real que o seu ego desmesurado almeja e que os seus comparsas tanto desejam, para sua maior glória e proveito mas desdita da Nação”.

Álvaro de Navarro


Um poema de Magloire Saint-Aude

 




REFLEXOS

 

Atado, franzino, o mofo do nada

na minha gravata de cavalo

flácido como o desconhecido e sobre os caminhos.

 

Lamentações nos escarros dos mortos.

 

A negligente franquia paga para falar

fora das minhas ancas

como um alazão árabe.

O êxtase  o luto  a luxúria

na gordura dos repiques  dos estertores.

 

No calafrio das rendas, ó minha bela emoção

- frio de lâmpadas frias.

 

Doce e gelada a rua da Madalena

hortelã-pimenta de extintos lumes.

 

Eu saio dos liames do meu sol invulgar.

Serei eu o intérprete dos séculos

a escultura dos ventos dos centauros?

 

Desço, desenraizado repetido

num cabelo antecedido p’los meus dedos.

 

E como a suavidade da carícia

para onde vai, ó paz, o meu coração?

 

No galope dos mudos zeladores

dobro-os   congelo-os

- castos de vida

nos faróis recortados.

 

Amargo é quem nasce para os elogios

e a vós deseja, espíritos

enclausurados e marmóreos

 

Pois este é o poema do prisioneiro

o tilintar dos sóis rememorados

 

E as matracas enterradas

no coração do peregrino.

 

Eis o meu sudário sem coroa

na vaidade deste baile

nos saltos de Antinéa

enluvada por este ideal.

 

A estrela do mendigo ouve

ouve o respirar vazio

da minha morte

da minha angustiada estupefacta

escrita

este meu lenço rendilhado de cambraia.

 

Retorcidos nos meus olhos apagados

a caneta e o poema que não atende a causas.

 

Limitado à desgraça sem repouso

Edith é a minha própria face lívida.

 

Mas meus olhos sempre os retiro

do enterro dos olhos ressuscitados…

 

in “Poèmes”

(trad. ns)


É assim que se faz a estória...

 



   (O “Magazine & ETC” foi uma recente edição em fac-simile, de capa dura com ferros a prata, da Editora Canto Redondo em parceria com o Jornal do Fundão, contendo todos os números do Suplemento Cultural que ali se puderam publicar).

 

Declaração de ns para o MAGAZINE & ETC

 

    Em meados de 1970 voltei da colónia da Guiné, onde durante dois anos e pouco cumprira comissão militar por imposição.

   Três ou quatro meses depois, ao que recordo, fiz algo que congeminara durante os últimos tempos da minha estadia, forçada, naquele rincão africano: através de uma carta a António José Forte - cujo endereço consegui arranjar junto de um seu conhecido dos tempos em que fora o funcionário responsável, em Portalegre, da biblioteca itinerante da Fundação Gulbenkian – entrei em contacto com os membros do chamado “Grupo da Grifo”, revista surreal-abjeccionista editada por essa altura e imediatamente retirada de circulação pela PIDE.

    Constituído por autores como Virgílio Martinho, Ernesto Sampaio, Pedro Oom, o referido A.J.Forte, Luiz Pacheco, Miguel Erlich, Eurico Gonçalves, Herberto Helder, Vítor Silva Tavares, reuniam-se geralmente no café Monte Carlo e tinham este último escritor citado como o seu intermediário junto do “Jornal do Fundão”, prestigiado jornal beirão onde ele fazia sair o suplemento “& ETC”, espaço de poesia e de arte que era uma espécie de lugar encantado para os espíritos desempoeirados lusitanos…

    E foi nesse órgão mais ou menos mítico para os homens livres em geral que, mediante convite formulado pelo seu organizador e transportado por Virgílio Martinho, dei a lume um par de poemas do livro que articulava nesse período, “Fábrica nocturna”, depois integrado no englobante “Escrita e o seu contrário”.

    Estava ainda para sair uma outra colaboração, o contarelo “Aníbal e as moscas filósofas” (mais tarde dado a lume no suplemento cultural do diário “República”) mas conforme informalmente me foi dito tal não pôde acontecer por razões que as malhas infaustas do Império teciam por esses tempos…

ns


Nicolau Saião, Aníbal e as moscas filósofas

 

O conto de ns

que Vítor Silva Tavares foi impedido pela Censura de publicar no “& ETC”


ns


   Estava há sete semanas naquele quarto de hospital e principiava a chatear-se.

   Todos o tratavam muito bem - alguém lhe emprestara mesmo uma telefonia – mas o certo é que começava a sentir-se ligeiramente aborrecido.

   Não era que a enfermeira não lhe trouxesse a comida quentinha a horas certas, nem que o dr.Varela lhe faltasse com a sabedoria médica. Não. Toda a gente era realmente muito simpática, mas ele principiava a ficar um bocado… frio.

   A partir da terceira semana começara a segredar para si próprio ideias que apanhava ao calhar. E, caso estranho, pensava, pensava muito, pensava como nunca havia pensado: pensamentos gordos, mesmo suculentos, que lhe deixavam na boca um sabor esquisito e galopante como se fossem comboios molengões andando sobre carris podres. Não estava a gostar nada daquilo.

  Além do mais, de noite o quarto enchia-se de vagas correrias, vagas risadas…

  Virou-se para o outro lado.

  O pára-choques apanhara-o exactamente em cheio no sítio onde as costelas dizem adeus ao estômago. Acordara depois, de súbito, numa cama descompassada com formigas e abelhas a passearem para baixo e para cima a toda a altura do esqueleto, suaves, venenosas. A cabeça muito bem entrapada repousava virtuosamente sobre uma almofada branca. Em volta, tanto quanto se lembrava, uns fantasmas abusadores deambulavam num leva-traz peculiar zurzindo o ar ambiente com uma lengalenga que nem por ser em voz sumida era menos estarrecedora.

   Depois foi-se habituando.

   O dr. Varela chegava ao crepúsculo, ou ao nascer do sol, com os óculos muito calmos e mudos a apontar na sua direcção: pegava-lhe no pulso, rosnava sabiamente, abanava a cabeça e, antes de sair, escrevia qualquer coisa num papel. Ele por momentos pensava que o dr. Varela tinha um pacto secreto com o seu aborrecimento, mas está-se a ver que era só impressão.

   A enfermeira, como é natural, vinha mais vezes. Tinha um nome impronunciável, olhava aos ziguezagues e era magra e penugenta. Cheirava a relógios bem lubrificados e nunca se ria. Também não devia ter de quê, pensava ele, mas tudo aquilo lhe fazia nervos.

   A enfermeira era ferozmente cumpridora. Uma boa profissional: puxava-lhe a roupa para o pescoço se o topava destapado, metia-lhe pastilhas entre os beiços, a horas correctas ajudava-o a assoar-se e a fazer mais coisas. Enquanto ele teve os braços em gesso, deu-lhe a papa com um clarão de bondade nos sobrolhos perfeitamente assustador.

   O termómetro que sempre transportava no bolsinho da bata constituía uma realidade imprópria.

   Saía depois de o olhar com satânico interesse enfermeiral. Antes de fechar a porta a sua mão traçava no ar um círculo cinzento e agressivo

   A esposa visitava-o três vezes por semana, mas isso já não o arreliava por aí além. Ficara imunizado por dezassete anos de matrimónio. Já estava mais que familiarizado com o seu narizinho de coruja egoísta e com a sua voz que a passagem do tempo tornara rascalhante. Limitava-se a ficar calado, com os olhos bem fixos no meio do tecto. Às quatro da tarde a esposa abandonava a partida e ia-se com o seu passo de flamingo de noventa e oito quilos. Ele fingia que não era nada com ele.

  Foi no dia em que lhe tiraram as últimas ligaduras que ele viu as moscas.

  Eram duas, esvoaçando solenemente na meia sombra com um ar tranquilo e respeitável. Tinham o aspecto de moscas de sociedade, talvez já grisalhas dos anos e ele por uns segundos raciocinou que até nem se espantaria se lhes visse bengala e gravata.

  Durante vários dias as moscas não lhe largaram o quarto.

  Eram moscas filósofas. As suas conversas, num tom muito fino e discreto, eram do mais alto interesse e centravam-se sobre os grandes temas do universo: o Homem, o Tempo, a Infância, todas as coisas – enfim – que horrorizam ou causam prazer, o Mundo, o Amor e a Morte. Um nunca mais acabar de problemas maravilhosos e inextrincáveis.

   A ele o que mais o danava era o seu arzinho superior, como fingindo que nem por ele davam: como se ele fosse um retrato decrépito que para ali estivesse. E, no entanto, elas bem sabiam que ele não perdia pitada das conversas, com os punhos o mais possível cerrados.

   Começou a detestá-las. Precisamente no dia em que lhe tiraram o gesso da perna direita.

   No entanto, por orgulho, nunca tentou imiscuir-se nas suas conversas. Ainda não descera tão baixo.

   Na tarde seguinte, tarde de visita conjugal, as moscas falaram do Ser e das metafísicas, Falaram também das estrelas e seus prestígios, dos barcos à deriva nos mares antigos, dos astrónomos e dos reis dos países afastados. Ele sofria tanto que foi com renovado alívio que viu a cara-metade abandonar a cena da sua tortura.

   Com pasmo e raiva estendeu o braço e abriu a telefonia. Adormeceu ao som dum fadinho picado em surdina.

   E sonhou sonhos esquisitos de defuntos e bosques imensos, de catedrais e aranhas.

   Acordou ao crepúsculo. Em cima da mesa estava uma bandeja com vitualhas. Nada se ouvia. Nem…o voar de uma mosca.

   As moscas tinham partido. Durante o seu sono pela tarde fora, tinham decerto voado através da janela entreaberta buscando diverso poiso, concerteza sempre debatendo entre si as coisas belas e incríveis. E ele sentiu de súbito vontade de partir tudo, pois já lhes havia jurado p’la pele: quando estivesse de posse de todos os seus meios físicos, ele lhes diria. Haveria de as ensinar com decisão: ficariam, até, sem vontade de tasquinhar o mais apetitoso bocadinho de excremento!

   Mas o certo era que haviam partido. Inexoravelmente. E nada, pensou, poderia fazer!

   O crepúsculo, cinematográfico e devorador, entrava aos gargarejos para dentro do quarto. Do outro lado da porta uns passos conhecidos crepitaram com energia.

   O dr. Varela entrou, com os óculos muito serenos.

   Com uma branda emoção a palpitar progressivamente na garganta ele deu por si a notar, cheio de deliciosas comichões, que a cara do dr. Varela era mesmo, mesmo parecida com a da mosca mais faladora.

 

(in Suplemento Literário Fim de Semana, do jornal República e, depois, em Antologia Fantástica Europeia, França)


The Highwaymen, Riders in the sky

 



quinta-feira, 18 de março de 2021

Para um minuto de meditação - 75

 

 A estupidez sem limites dos polícias da linguagem



ns


   Agora até o “Conselho Económico e Social” quer introduzir e ter um manual para uma “linguagem neutra e inclusiva” porque acha que termos como “jovens”, “trabalhadores”, “gestores” ou “velhos” são sexistas. 

(Dos jornais)

 

   Seria cómico se não fosse trágico. É a novilíngua de totalitários. O que estes energúmenos querem, para além destas intenções que parecem ridículas, é controlar-nos socialmente. Lembremo-nos da frase justíssima que nos diz que “quem controla a linguagem controla o espírito e, portanto, os cidadãos”. E isto é um serviço oficial, dependente do governo capitaneado por um político que tem demonstrado ser sem escrúpulos e de baixo estofo. Não é um alcouce ou uma madrassa, nem um hospício.

   Estes são tão mal intencionados como os britânicos universitários que, em Manchester, querem abolir as palavras mãe, pai, irmão/irmã, etc.

    É aconselhável que nos rebelemos, mas com actos legítimos, contra esta despudorada tentativa de transformarem Portugal na conhecida “quinta dos porcos” que George Orwell evocou.

Laureano Chaves


Dois poemas de Maria Estela Guedes

 





Figurinhas da Sé de Lamego

 

Uma passadeira vermelha merecia

A tão solene e séria Sé de Lamego

Mas meus paleo-avós eram peões decerto

E lavradores os antepassados mais recentes.

Mais nos excitamos com o porco a chiar na panela

Do que com as flamas do divino elevando-se da pedra.

À porta da Matriz, vagina aberta de fome,

Em arcos esculpidos pelos pedreiros livres

Restos de figurinhas desinquietam-nos

Em diversas transgressões sexuais.

Muitas os padres, Judas da moral que pregam,

As mandaram partir, por imorais.

Porém uma sobra, plena de encantamento:

Delicada cena de fellatio

A garantir a cópula entre o céu e a terra.

E isso, a nós, peões e camponeses, mas herdeiros

De Gil Vicente e até de Rabelais,

Isso excita-nos porque liga o espiritual ao indecente,

Anuncia missas do burro, esfuziantes carnavais,

Reserva no adro a vida, já que no altar-mor definha a fé.

 

In «Risco da Terra», Apenas Livros, 2011

 

O Túnel de luz branca

 

                          Ao José Augusto Mourão

Oiço-o, amigo,

Tão desolado a dizer

Dessa terra além-terra

Onde se entra por um túnel de luz branca

Avassaladoramente cintilante

«Já lá estive e não vi nada…»

 

Nesse túnel já muitos entrámos

Mas só quem sai pode dizer que ao fundo dele

Não há nada.

Em todo o caso, amigo, neste dia

De quase coma em que dormita

E espero só exista no seu pensamento

O rasto dulcificante das papoilas

Recordo o que me disse e é mais pungente

Que a passagem na fronteira da morte

Na sua viagem sem regresso.


Aos confrades, amigos, adeptos e simpatizantes

     Devido a um problema informático de última hora, não nos será possível fazer a postagem desta semana.    Esperando resolvê-lo em breve,...