O conto de ns
que Vítor
Silva Tavares foi impedido pela Censura de publicar no “& ETC”
ns
Estava há sete semanas naquele quarto de
hospital e principiava a chatear-se.
Todos o tratavam muito bem - alguém lhe
emprestara mesmo uma telefonia – mas o certo é que começava a sentir-se
ligeiramente aborrecido.
Não era que a enfermeira não lhe trouxesse a
comida quentinha a horas certas, nem que o dr.Varela lhe faltasse com a
sabedoria médica. Não. Toda a gente era realmente muito simpática, mas ele
principiava a ficar um bocado… frio.
A partir da terceira semana começara a
segredar para si próprio ideias que apanhava ao calhar. E, caso estranho,
pensava, pensava muito, pensava como nunca havia pensado: pensamentos gordos,
mesmo suculentos, que lhe deixavam na boca um sabor esquisito e galopante como
se fossem comboios molengões andando sobre carris podres. Não estava a gostar
nada daquilo.
Além do mais, de noite o quarto enchia-se de
vagas correrias, vagas risadas…
Virou-se para o outro lado.
O pára-choques apanhara-o exactamente em
cheio no sítio onde as costelas dizem adeus ao estômago. Acordara depois, de
súbito, numa cama descompassada com formigas e abelhas a passearem para baixo e
para cima a toda a altura do esqueleto, suaves, venenosas. A cabeça muito bem
entrapada repousava virtuosamente sobre uma almofada branca. Em volta, tanto
quanto se lembrava, uns fantasmas abusadores deambulavam num leva-traz peculiar
zurzindo o ar ambiente com uma lengalenga que nem por ser em voz sumida era
menos estarrecedora.
Depois foi-se habituando.
O dr. Varela chegava ao crepúsculo, ou ao
nascer do sol, com os óculos muito calmos e mudos a apontar na sua direcção:
pegava-lhe no pulso, rosnava sabiamente, abanava a cabeça e, antes de sair,
escrevia qualquer coisa num papel. Ele por momentos pensava que o dr. Varela
tinha um pacto secreto com o seu aborrecimento, mas está-se a ver que era só
impressão.
A enfermeira, como é natural, vinha mais
vezes. Tinha um nome impronunciável, olhava aos ziguezagues e era magra e
penugenta. Cheirava a relógios bem lubrificados e nunca se ria. Também não
devia ter de quê, pensava ele, mas tudo aquilo lhe fazia nervos.
A enfermeira era ferozmente cumpridora. Uma
boa profissional: puxava-lhe a roupa para o pescoço se o topava destapado,
metia-lhe pastilhas entre os beiços, a horas correctas ajudava-o a assoar-se e
a fazer mais coisas. Enquanto ele teve os braços em gesso, deu-lhe a papa com
um clarão de bondade nos sobrolhos perfeitamente assustador.
O termómetro que sempre transportava no
bolsinho da bata constituía uma realidade imprópria.
Saía depois de o olhar com satânico
interesse enfermeiral. Antes de fechar a porta a sua mão traçava no ar um
círculo cinzento e agressivo
A esposa visitava-o três vezes por semana,
mas isso já não o arreliava por aí além. Ficara imunizado por dezassete anos de
matrimónio. Já estava mais que familiarizado com o seu narizinho de coruja
egoísta e com a sua voz que a passagem do tempo tornara rascalhante.
Limitava-se a ficar calado, com os olhos bem fixos no meio do tecto. Às quatro
da tarde a esposa abandonava a partida e ia-se com o seu passo de flamingo de
noventa e oito quilos. Ele fingia que não era nada com ele.
Foi no dia em que lhe tiraram as últimas
ligaduras que ele viu as moscas.
Eram duas, esvoaçando solenemente na meia
sombra com um ar tranquilo e respeitável. Tinham o aspecto de moscas de
sociedade, talvez já grisalhas dos anos e ele por uns segundos raciocinou que
até nem se espantaria se lhes visse bengala e gravata.
Durante vários dias as moscas não lhe
largaram o quarto.
Eram moscas filósofas. As suas conversas, num
tom muito fino e discreto, eram do mais alto interesse e centravam-se sobre os
grandes temas do universo: o Homem, o Tempo, a Infância, todas as coisas –
enfim – que horrorizam ou causam prazer, o Mundo, o Amor e a Morte. Um nunca
mais acabar de problemas maravilhosos e inextrincáveis.
A ele o que mais o danava era o seu arzinho
superior, como fingindo que nem por ele davam: como se ele fosse um retrato
decrépito que para ali estivesse. E, no entanto, elas bem sabiam que ele não
perdia pitada das conversas, com os punhos o mais possível cerrados.
Começou a detestá-las. Precisamente no dia
em que lhe tiraram o gesso da perna direita.
No entanto, por orgulho, nunca tentou
imiscuir-se nas suas conversas. Ainda não descera tão baixo.
Na tarde seguinte, tarde de visita conjugal,
as moscas falaram do Ser e das metafísicas, Falaram também das estrelas e seus
prestígios, dos barcos à deriva nos mares antigos, dos astrónomos e dos reis
dos países afastados. Ele sofria tanto que foi com renovado alívio que viu a
cara-metade abandonar a cena da sua tortura.
Com pasmo e raiva estendeu o braço e abriu a
telefonia. Adormeceu ao som dum fadinho picado em surdina.
E sonhou sonhos esquisitos de defuntos e
bosques imensos, de catedrais e aranhas.
Acordou ao crepúsculo. Em cima da mesa
estava uma bandeja com vitualhas. Nada se ouvia. Nem…o voar de uma mosca.
As moscas tinham partido. Durante o seu sono
pela tarde fora, tinham decerto voado através da janela entreaberta buscando
diverso poiso, concerteza sempre debatendo entre si as coisas belas e
incríveis. E ele sentiu de súbito vontade de partir tudo, pois já lhes havia
jurado p’la pele: quando estivesse de posse de todos os seus meios físicos, ele
lhes diria. Haveria de as ensinar com decisão: ficariam, até, sem vontade de
tasquinhar o mais apetitoso bocadinho de excremento!
Mas o certo era que haviam partido.
Inexoravelmente. E nada, pensou, poderia fazer!
O crepúsculo, cinematográfico e devorador,
entrava aos gargarejos para dentro do quarto. Do outro lado da porta uns passos
conhecidos crepitaram com energia.
O dr. Varela entrou, com os óculos muito
serenos.
Com uma branda emoção a palpitar
progressivamente na garganta ele deu por si a notar, cheio de deliciosas
comichões, que a cara do dr. Varela era mesmo, mesmo parecida com a da mosca
mais faladora.
(in
Suplemento Literário Fim de Semana, do jornal República e, depois, em Antologia
Fantástica Europeia, França)
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