segunda-feira, 29 de junho de 2020

Para um minuto de meditação -14


ns, Cartão para painel de azulejos



 “O verdadeiro mérito é como os rios: quanto mais profundo, menos ruído faz”.

                                                                             Lord Halifax

Dois poemas de José Pascoal


Nicolau Saião, Sem título


dia de trabalho na capital


Em ruas de Lisboa
De que não sei o nome
Passam-se coisas muito estranhas.
Voam jornais velhos, facas e alguidares.
Passam, mesmo, camelos
Pelo buraco da agulha.
E vem gente de muito lugar
E muito cedo
Nos comboios do Rossio e de Santa Apolónia.
Voam jornais velhos, facas e alguidares.
Passam, mesmo, aves
Como no soneto de Sá de Miranda.
Que estranhas coisas se passam em Lisboa.

embora as folhas caiam
Embora as folhas caiam,
Os pássaros do Outono voam
Em círculos que anunciam
A chegada do Inverno.
Ao longo do caminho,
Espalho as minhas pedras,
Escolho os meus motivos,
Espero por melhores dias.
A cada passo, encontro
Uma flor esquecida
Pela voragem do Verão.
A cada passo, invoco
Da tua face escondida
O nome em vão.
                                                          José Pascoal

Em torno de Picasso


Pablo Picasso, Desenho


   Há um bom par de anos, em Paris, numa bela manhã de sol, passando em frente da “Maison Georges Brassens”- pequeno centro cultural erguido em celebração da memória do grande cantautor - ofereci-me o prazer de durante uns gratos minutos deambular pelo jardim próximo que é meio mercado de livros meio entreposto de curiosidades, cifrado nalgumas dezenas de padiolas onde se encontram resmas de fólios do quilate e género mais diversos, desde edições vulgares, ainda que interessantes, até relativas raridades.
     A certa altura, compreensivelmente surpreso, extraí de entre muitos outros um tomo que relanceei excitado: tratava-se de facto do conceituado “Dessins” de Picasso, na exemplar edição de Albert Skira, impressa em Lausanne/1967 para a colecção por ele-mesmo estabelecida e dirigida, “Le goût de notre temps”. Com texto introdutório de Jean Leymarie, ostenta na capa encadernada em linho branco-mate um belo desenho a caneta, de linha clara, de uma mulher deitada no pleno ar livre de uma praia sugerida apenas por dois traços horizontais.
    Nunca fiquei indiferente ao seu método de renovação da visão, a essa sua realidade por detrás do aparente, essa que nele existe em todas as direcções. O que nele sobretudo distingo é que a imaginação se apoia no real quotidiano. Nesse que contudo é movediço e cuja face brilha sob mil luas diferentes.
    Nesta conformidade, um pouco trémulo preparei-me para esportular se necessário uma continha calada. Congeminei mesmo pedir o socorro da sua bolsa ao confrade que me acompanhava, caso o meu erário não fosse suficientemente poderoso... Mas tinha de ter aquele livro!
    É que, bastantes anos atrás, eu escrevera num suplemento da capital lusa um textozinho precisamente assinalando a saída, de que tivera menção e notícia, desse mesmo livro que tinha nas mãos. Escrevera eu:
   “A pintura, neste caso a pintura do mestre malaguenho, mais que antecipar-se ao tempo tenta a todo o custo ser um salvo-conduto para a grande viagem que não nos vincula às contradições da sociedade.(…).
    Com alguma tímida esperança aproximei-me da vendedora, uma bela moça claramente chegada do Senegal ou doutra ex-colónia francófona. Inquiri do preço e, com a alma a cantar, fui informado de que custava...15 francos!
    Paguei sem regatear.
    Há pedaço, estive a folheá-lo pela enésima vez. De tempos a tempos, volto a ele: não só as reproduções a cores e a tinta-china são belíssimas (várias delas fazem parte da Suite Vollard), como o prefácio é exemplar.
    Nisto de convívio com os alfarrábios tenho tido, pelo tempo fora, grandes desditas e fortes alegrias.
    Esta, que aqui partilho convosco, foi uma das melhores e mais saborosas.

                                                                                                                         ns

Em equação


Nicolau Saião, Sem título



  Segundo informações difundidas por Richard Sturridge, investigador dos fenómenos ufológicos e antigo funcionário das AESCD norte-americanas, determinadas chancelarias mundiais, bem como um porta-voz da monarquia vaticana, teriam posto a correr nos mentideros confidenciais que as secções específicas dos serviços secretos daquelas entidades teriam recebido ordem ao mais alto nível para dissolverem as suas “task forces”, operacionais e muito activas até ao momento.

 No entanto, ainda de acordo com o escritor, que foi o primeiro a encontrar provas de interpolações falsas e posteriores no tristemente célebre "Blue Book Project", os governos ocidentais, bem como a Rússia e a própria China, têm permanentemente em acção equipas de análise dependentes dos respectivos serviços secretos militares.

 No que respeita ao Vaticano, desde o mandato de Karol Woytila - através dos seus Serviços Especiais - alega-se ter sido criada no denominado "Gabinete Interior" uma secção destinada a acolher, analisar e, em seguida, transmitir ao Santo Padre todos os factos que se afigurassem pertinentes.

  Entretanto, de acordo com Piero Lungi depois expulso aquando do caso protagonizado pelo Grupo Milénio que editou o livro "Bugie di sangue in  Vaticano", essa secção secreta teria estado, através de agentes “cloak and dagger”, em diversos países do sul da Europa, nomeadamente em Portugal - Aljustrel e região de Elvas - coligindo elementos para estudo e acção específica (false flag) eventual.

  Bento XVI manteve a secção em funcionamento, tanto mais que fora um dos 4 cardeais que teve conhecimento do segundo sobrescrito mandado abrir por Albino Luciani e referente aos acontecimentos de Fátima e depois subtraído antes do assassinato desse pontífice por um alegado konzern de altos funcionários eclesiais em estreita ligação com altos grupos argentários mundiais.

  Trata-se, assim, de um assunto sério e que está a merecer cada vez mais a atenção dos departamentos mundiais de "inteligentsia", que aliás vêm funcionando, de há um tempo a esta parte, com apoio ou ligação a departamentos reservados de institutos de estudo.

 Podemos, nesta perspectiva, questionar-nos porque se dá a estes casos, em grande parte, um tratamento estranho que poderia no mínimo classificar-se como algo leviano. Será a fase derradeira antes de em sequencia se entrar na fase de esforços extremos?

 Ou, pelo contrário, a intenção última é bem diferente? 

                                                                                    Jean Richard Lweff

Serge Reggiani, Pablo


quinta-feira, 25 de junho de 2020

Para um minuto de meditação - 13


ns



A verdade a que temos direito…

 “A objetividade no jornalismo não deveria existir, porque o dever supremo de um jornalista não é servir a verdade, mas sim a revolução”.

Salvador Allende, no 1º Congresso de Jornalistas de Esquerda, em 9 de Abril de 1971



1. “Sem verdade não há homens bons, nem governos estáveis, nem paz nas famílias, nem confiança nas almas”.
                                        
                               Alphonse Duchêne

2. “Aqueles que falam em liberdade e se arvoram comunistas, ou nos tomam por parvos ou são não mais que fanáticos, dado que o comunismo demonstrou ser ainda mais intolerante e repressivo que o capitalismo selvagem já de si prejudicial. Deixou milhões de mortos e de desgraçados em todos os lugares onde assentou arraiais. E agora que já se sabe tudo, desde as mentiras que perfilhavam até aos crimes que cometeram nas prisões ou fora delas, só o descaramento, a cegueira ou a perfídia explicam tal posicionamento”.

                               Henri Merrien
                                                          Jorge Gaillard Nogueira

Introdução e um poema de Gabriel Chávez Casazola





 Duas palavras

   Conheci Gabriel, o poeta Gabriel Chávez Casazola, homem de diversos mesteres mas todos postos sob o signo da cultura comparticipativa, de doação e de qualidade, em Fortaleza por ocasião da Bienal do Livro do Ceará.
  Senti nele personificadas a cordialidade, a modéstia e uma maneira de ser que raramente tenho encontrado – juntando a alegria a uma lhaneza singular que, no entanto, continha igualmente uma capacidade de se afirmar com tranquila fraternidade.   
  Pelos tempos, e já lá vão vários anos, não se perdeu este contacto e por isso me congratulo.
  Da sua Bolívia mandou-me recados e poemas, sinais que festejei como cumpria.  
  Neles mora o encanto e o respeito pelo seu país, a sua cidadania específica e, no seu contexto próprio, uma altíssima originalidade poética expressa numa escrita que me surpreendeu e me entusiasmou.
  É muito gratificante descobrir-se que uma pessoa que nos suscitou estima, pela sua postura pessoal, ainda por cima é um poeta de excepção. Daí que, de imediato, tivesse enviado o punhado de poemas que me cedeu a um outro amigo, Pedro Sevylla de Juana, com a sugestão de que os traduzisse.
   Acedeu de imediato.
   Como, por vezes, um trabalho a dois é estimulante e faz sentido, tive apenas ensejo de adequar minimamente as traduções ao nosso idioma, no retinto português de Portugal.
   Mas P.S.J. insistiu em que o meu nome figurasse no fim do acervo. E não pude furtar-me a fazer o que a sua caballerosidad ditou.
   Frente a estes poemas, quero endereçar a ambos um agradecimento: a um por os ter escrito, a outro por os ter traduzido.
                                                                                                                              ns


   Traducir es una labor literaria que me interesa como complemento de la  creación. Es necesario entrar  en el texto original muy a fondo; primero como lector y después como escritor. Más aún, cuando lo que se vierte a otro idioma es poesía. En ese caso hay que penetrar en el universo del poeta, hay que calzarse sus zapatos y ponerse su sombrero. Cuando el poeta es Gabriel Chávez, habitante de un mundo propio riquísimo, el trabajo queda compensado por el disfrute de los descubrimientos.  Así que con Gabriel , sucede que, si hay un deudor, el deudor soy yo. 
   Con mi amigo Nicolau, el equilibrio que no acepta por generosidad, se da en la suma de idiomas. Él afina mis textos pasados al portugués; y yo ajusto sus textos vertidos al español.
                                                                                                                               PSdeJ 
 

A canção da sopa

Nos tempos do meu avô as famílias eram grandes
Viviam em grandes casas – grandes ou pequenas, mas grandes,
Inclusive diminutas, mas grandes.

Comiam ao redor de grandes mesas
Mesas fortes, cobertas ou não de toalha comprida
Mas bem assentadas no chão.

Com colheres enormes comiam a sopa
Nos grandes meios-dias. A sopa tirada com grandes conchas de enormes sopeiras.

Reuniam-se juntos depois a ouvir a rádio, a tomar café, a fumar um cigarro
Sem grandes (nem pequenos) cargos de saúde ou de consciência.

A Mamã, bordando às vezes e às vezes tecendo, via sucederem-se os filhos e os netos
Num ininterrupto e grande bordado.

O Papá, a autoridade papá, chegava todas as tardes às 6
Montado num grande automóvel americano ou num grande cavalo ou com um grande estilo
de caminhar

Para passar a noite junto com os filhos e os netos que o tempo não tinha
interrompido,
Salvo aquele em que adoeceu, aquele em que se foi
Deixando um enigma e uma sensação de vazio – uma enorme sensação de vazio
Flutuando, com a fumaça dos cigarros - sobre a sobremesa do jantar.

Às vezes, nesses momentos, o papá, a autoridade papá, deixava de escutar os
sons da rádio e queria estar só consigo mesmo, simplesmente não estar
aí, talvez andar correndo por alguma distante estrada com uma loira parecida
com a mamã quando não era mamã, montado  num grande automóvel americano ou num grande cavalo ou com um grande estilo de caminhar ainda não humilhado pelo tempo.

A mamã por sua vez nalgumas sobremesas sentia um nó na garganta, um nó que depois saía flutuando da sua boca montado num grande suspiro, um enorme nó que se enredava no vapor de sua xícara de café, com umas volutas que lhe roubavam o olhar e a faziam desejar estar sozinha, simplesmente não estar aí, a escutar os prantos dos últimos filhos e dos primeiros netos.

Assim foram os anos, vieram os cafés e os cigarros e um dia a grande casa
foi ficando sozinha, as enormes sopeiras vazias, as colheres mudas de uma
enorme mudez que a filhos e netos nos perseguiu ao longo de milhares de
quilómetros de estrada, de cabo de telefone, de grandes ondas que já não se
medem em quilómetros.

Inclusive aquele em que adoeceu, o primeiro a partir Como cada um que bebeu dessa sopa foi alcançado pela mudez, que se
introduziu no seu peito pela grande boca aberta de um enorme bocejo.

Então
Comprou uma breve sopa instantânea
E entre as suas volutas
Permitiu-se um pequeno pranto.

Não podia comer a sopa. 
No seu diminuto departamento não havia uma só colher, uma só mesa bem
assentada, algo
Que vagamente pudesse parecer-se à felicidade e às suas rotinas.

Então pensou nos tempos do seu avô ou do meu ou do teu, quando as
famílias eram grandes
Viviam em grandes casas – grandes ou pequenas, mas grandes,
Inclusive diminutas, mas grandes
E viam suceder-se os filhos e os netos
Num ininterrupto e grande bordado
Com enormes fios invisíveis abraçando todos no ar.


                                                        Tradução de Pedro Sevylla de Juana
                                                                        Colaboração ns

Sobre Jacques Tombelle




  Ser artista, já se sabe, é um trabalho arriscado – pese às opiniões contrárias e menos avisadas. E isto porque ser artista é algo que se nos impõe, que não escolhemos (pelo menos numa fase anterior) que vive e palpita com a força das evidências e quase sempre nos arrasta, se sabemos ser fiéis à demanda, por caminhos onde pedras e ciladas, se mal nos precatamos, buscam tolher-nos o passo e extinguir-nos a frescura do olhar.

  Ser professor é também arriscado: o consciencioso mestre-escola (expressão magnífica em todas as línguas que até mim vem do fundo da infância, desse passado a que se deve ser fiel) tem dependentes de si inúmeras razões e corações - os alunos e seus múltiplos destinos – a que se impõe dar indicações de rumo, dar respostas a par de sugestões que amparem o futuro. Nisto se irmana com o artista, também ele um companheiro de bordo visado à linha por diversos perigos, quais sejam: a dispersão dos ritmos quotidianos, o desespero eventual pela descrença na sociedade circundante, que é frequentemente opressora, muitas vezes desumana, quase sempre inquietante.
  Jacques Tombelle, artista e professor, é pois um homem que vive perigosamente, como sempre vivem os que dão testemunho sincero, os que se afirmam por sobre o que é precário nas suas horas fecundas.
  Diz no “Zohar, o livro do resplendor” que as palavras não caem no vazio. Nem os desenhos, as cores, as formas, permitir-me-ia acrescentar. Com efeito o artista, sendo um levantador de universos (Pavese), um verdadeiro agrimensor (Ionesco), um “mastigador do mundo” na expressão de Cristóvam Pavia, é igualmente uma consciência viva no meio do aparato do quotidiano inadequado mesmo quando de tal não tem completa noção ou entendimento. Veja-se Balzac, por exemplo, que referia serem os seus romances não mais que um meio para poder pagar dívidas, ou Huysmans que via as suas obras mais como experiência mística. A arte tem em si verdades intrínsecas que reflecte e propõe, para citarmos a expressão de Stendhal.


  No que diz parte a Tombelle, este artista nos seus melhores momentos coloca-nos um curioso problema: como é que a emoção e a “simplicidade” se podem conciliar com a exactidão? E ainda este outro: como é que o artista, sem deixar de ser sincero (ou ingénuo, se preferirem – e recordo que a ingenuidade, para citar Herman Hesse, é em dados casos um alto valor) pode executar determinadas tarefas picturais e poéticas nas quais uma dada razão não pode embaraçar-se com o sentimento? Creio que o artista que nos ocupa o consegue mediante a assumpção de um realismo franco, indisfarçado mas vigoroso que dá tanto a medida da sua criatividade como a da sua pessoa cordial e fraterna e o seu apego a posições que, muitas vezes banalizadas ao nível de um certo discurso alheio, nele conservam inteirinho o seu poder apelativo: a lealdade, a crença na sensualidade da arte e da escrita e, também, o desejo de que o futuro seja mais favorável ao Homem, além da busca do conhecimento e do saber possíveis.

   É isto que vejo na arte filha duma intencionalidade e mesmo de uma emoção indisfarçada, perto da terra em que se criou, deste desenhador-colagista  pleno de vigor e imaginação, poeta e professor que nos faz participantes interessados. E poderia concluir dizendo que à sua maneira ele está ganhando a aposta que a todos, sejamos pintores ou não, nos move: o desejo humano de mais luz. No fundo, ganhou-a já.
    E nós com ele.
                                                                           ns
                                                                                                                                                  
                    in catálogo de exposição,
Traduzido para francês por André Morais

Charles Aznavour, Il faut savoir


segunda-feira, 22 de junho de 2020

Para um minuto de meditação - 12


ns



   “Não, não é por ignorância, por estupidez ou por ingenuidade política, como querem os experts como Rebelo de Sousa ou F. Medina, que há manifestações de ódio contra esculturas, livros, pessoas, entidades.
  
   Não tentem disfarçar o óbvio. Creio que sabem na perfeição que essas acções são algo de programado e de raciocinado e que só a labilidade politica leva a falar assim, como se fossem avestruzes escondendo a cabeça na areia.

    O povo português, o prejudicado de sempre, devia merecer mais consideração”.

    Mas num país onde o tráfico de influências e o nepotismo são serenamente encarados como normais, tudo parece poder acontecer…

                                                                  Manuel Carreira Viana

Dois poemas de Maria Estela Guedes


Nicolau Saião, Sem título



PRIMEIRO DIA – PALA

Pala deve ser aquela terra abaixo do nível da linha de comboio,
numa baía em que se ergue uma igreja.
Tanta água junta aos pés,
tanta água que se mete, céus!, sabendo e sem saber,
como conhecer os outros?
E que outros? Rodeiam-nos muitas categorias de outros,
vivemos com muitas categorias de outros,
entre elas, só uma é constituída por humanos.
Outra categoria é constituída por animais,
e nem todos os animais são percebidos pelos humanos
da mesma maneira.
Por exemplo, os touros de lide.
Não são o mesmo que cães, gatos, galinhas, nem baleias.
Há animais que não são animais no inconsciente.
Mexer neles, mesmo com luvas, pinças, bata branca,
desencadeia repulsa, agressão, e a criatura,
por eles ensandecida, ou foge
ou mata.
Para quê informar que os animais são inofensivos,
úteis à sanidade do ambiente
e bons cooperadores na agricultura,
se lagartos e cobras são impulsos irracionais
para muitas pessoas?
Não são animais, são pavores.
Pesadelos de que se acorda aos gritos.
Porquê? Porquê?
Talvez por serem animais terrestres de sangue frio.
E não por te representarem na Bíblia.
Tanta água em baixo, Lilith das calças frouxas.
Vais morrer pelos pés, a foice a trepar devagarinho
por ti acima, a mão da morte a agarrar-te o coração,
a apertá-lo até ficar do tamanho de uma avelã.
O túnel.
Uma vergastada de vento
entra pela janela, com ela outrora entravam faúlhas e fumo,
agora entram cheiros a óleo queimado,
pensar que uma cobrita de centímetros
faz erguer uma enxada contra ela, deve ser Diesel.
Pala, tiro-te o boné, és uma jóia
ao pescoço do rio, digna de ser lembrada! 


SEGUNDO DIA – O MITO DA MATÉRIA

Nunca se satisfaz, a Matéria.
Nada a contenta, a tudo põe defeito.
Viciada na economia, contém-se,
escolhe,
entre dois instrumentos,
o que lhe dá mais gozo - a miséria.
Há um encanto irresistível
na casita arruinada na floresta,
desde que a chaminé deite fumo
porque o maior conforto humano
aninha-se à lareira do estômago.
Por isso a Matéria ama o fumo que se ergue
da casita isolada
no meio da floresta
porque anuncia pote ao lume
e a quentura do forno.
A Matéria ama a pobreza,
poupa água, ar, terra, fogo,
apaga a luz,
na escuridão da casita
perdida na floresta,
bate com a cabeça nas paredes
por poupar até às fezes.
Árdua, difícil, desespera os humanos, a Matéria.
Vive entre a boca e o terço
e entre o terço e as pernas,
e entre as pernas e as portas.
Escancaradas, para arejar a casa, nas manhãs geladas,
em que os campos
são de vidro e a água cristaliza
por força da temperatura inferior a
zero graus centígrados de lágrimas.
A Matéria derrete de gozo
como barra de chocolate na língua
com o sofrimento.
Sentiu o martírio, foi flagelada, habituou-se a isso
como outros à droga ficam vinculados.
Ela é a grande onda maternal,
o tsunami do auto-sacrifício
na ara de deus nenhum
que o oceano consegue dividir
de lado a lado
e o mito erguer na pira do valor máximo - Zero.
Como os animais que os filhos escorraçam
em chegando à idade de caçar
para que se afastem do seu território
e busquem o próprio
ela é implacável, a Matéria.
Encosta o filho à parede,
cresce para ele fingindo encolher-se
e destrói,
destrói tudo o que ama
com as palavras.

                                                                 in “Diário de Lilith”

Em louvor do poeta e do pintor


Júlio, Desenho


    Celebrar Júlio/Saul Dias – o pintor e o poeta irmanados num percurso único – e fazê-lo no mês em que as galas do mundo se abrem definitivamente nas flores que tanto amava, nos pássaros que cirandam e no sol que vai crescendo pouco a pouco, parece-nos extremamente adequado. Foi uma escolha da nossa admiração para o cantor das coisas íntimas e que se dizem em surdina, para o colorista das tonalidades que palpitam numa parede de casa, num campo ou numa face ou numa nesga de céu.
    Poeta do pouco e do muito que há em roda de tudo, ele fez esvoaçar corpos e sentidos, deu-nos o sinal do drama profundo e da profunda alegria que reside nos seres e nas coisas e, também, aquela calma aprazível que as pequenas povoações tão bem sabiam fruir, ou melhor – que nelas se circunstanciava enquanto personagens dos seus poemas que visavam reconstruir um tempo frutuoso e, por isso, possibilitar os reencontros entre os homens e o universo.
   Mediante o que escreveu e o que pintou, disse-nos que ainda é possível uma reintegração nos poderes mais altos da vida, que se pode prender a hora (as horas da existência completa) se tivermos olhos para cheirar, ouvidos para saborear e nariz para sentir as maravilhas que nos passam à volta, mesmo que o drama e o susto nos queiram macular os minutos.
   Júlio/Saul Dias: poeta ainda e sempre, tanto do tão pouco que é saber ir pelas ruas do quotidiano de tal maneira que este chega a abraçar o horizonte largo e vário. Ou, dito de outra forma, que chega a fazer perdurar o suave frescor da aparição, de todas as aparições que nos confirmam na nossa individualidade e humanidade íntegras e já reconciliadas.

                                                                                                                    ns

Salvatore Adamo, Inch Allah.avi


quinta-feira, 18 de junho de 2020

Uma pequenina estória de horror


ns, Sem título


"Dêem bailinhos..."


    Tempos atrás, um cavalheiro escrevente ao tentar mimar-me para que eu não tomasse posição ante as tentativas e as acções prepotentes dos neo-terroristas e dos sociais-fascistas disfarçados de “amigos do povo”, dizia-me assim numa cartinha magana que me mandou: “Porque perde tempo com coisas políticas? Escreva antes poemas, com o talento que possui!”. Isso trouxe-me de imediato à memória o que da primeira vez que fui preso (era eu membro da direcção da colectividade Clube de Futebol do Alentejo) o tristemente célebre capitão da polícia (nessa época, entidade anti-democrática), me aconselhou bondosamente quando me interrogava: ”Em vez de andarem nessa coisa de exposições e sessões culturais, porque não dão bailinhos? Até lhe mandava agentes de borla para ajudarem na boa ordem …”.  
   Sim, os belos espíritos sempre se encontram, como diz a conhecida velha frase!

                                                                                                                     ns

Para um minuto de meditação - 11


Nicolau Saião, Sem título



   “Nestes tempos em que mais uma vez os novos bárbaros tentam, caídas as máscaras, transformar o mundo numa herdade onde impere o triunfo dos porcos, fará bem recordarmos o lúcido livro de Fruttero & Luccentini, “A predominância do cretino”, no qual os autores analisaram e de alguma forma previram o que agora se está a passar, em que grupos de delinquentes fascistóides, cretinos arrogantes, tentam instaurar um mundo à sua medida na sequência dos mais repugnantes e hipócritas àmanhãs que cantam, que afinal não passam de lugares onde se nota bem o ar poluído dos novos cárceres com que sonham”.
                                                          Manuel Caldeira

3 poemas de Floriano Martins






1.

Sou eu: o nome, as letras
em que te arrastas, as perguntas que iniciam
a travessia de tua dor.

Noite inquieta sob escombros.
Delicado tambor das tormentas. Tua sombra vem vindo
ao ninho de minhas sílabas errantes.

Tua sombra erguida. Intimidade de cinzas
onde a dor o lábio toca. Formas ressurgidas do caos.
Prolongas teu ser em tudo o que me falta.

Noite submersa em tremores.
Esplendor de infernos devassados. Pousa tua mão
na esfera crepitante de meus sentidos.

Uma prova: o livro que conduz
ao templo. Missal de cinzas. Teu corpo soprado mil vezes,
a queimar mais e mais longe de ti.

2.

Sou eu: a morte, as ruínas
de tua história, lugar onde ninguém mais te escuta,
onde as pedras de fogo são polidas.

Tua sombra erguida, oculto fósforo
no desmaio dos sentidos. Os delicados jogos da morte.
Assim escavas sob os pilares do tempo.

A treva em ti atingirá
a fonte de outra queda. Tumulto que eleva
tua vida acima de toda ruína.

Noite cerimonial do abismo.
Tuas ruínas respiram em meu canto. Mil nomes segreda
o ar, ao cruzar as entradas invisíveis.

Aqui andei, entre as criaturas
dementes do mundo. Peregrino dentro de um quadro.
Escrituras folheando o vento.

3.

Sou eu: o livro, as vozes
de tua memória agitando os segredos do silêncio,
tuas carnes devoradas pelo tempo.

Ressurges em mim. Ávida sentença de meus
dias nas trevas. Alma inacabada a sorrir das formas
que engendro como portas ao absoluto.

Uma prova: as últimas chamas
evocadas. Braseiro confirmando a pele de teus dias,
a suportar as figuras do vazio.

Noite nascendo em outra noite.
Por trás das colunas circulares, o fogo abriga o livro
do invisível pranto de suas cinzas.

Aqui andei. Fomos um e todos.
Mascar o tempo é rito de alucinados. Os episódios
virão dar todos nesta escura sala.

Aos confrades, amigos, adeptos e simpatizantes

     Devido a um problema informático de última hora, não nos será possível fazer a postagem desta semana.    Esperando resolvê-lo em breve,...