segunda-feira, 22 de junho de 2020

Dois poemas de Maria Estela Guedes


Nicolau Saião, Sem título



PRIMEIRO DIA – PALA

Pala deve ser aquela terra abaixo do nível da linha de comboio,
numa baía em que se ergue uma igreja.
Tanta água junta aos pés,
tanta água que se mete, céus!, sabendo e sem saber,
como conhecer os outros?
E que outros? Rodeiam-nos muitas categorias de outros,
vivemos com muitas categorias de outros,
entre elas, só uma é constituída por humanos.
Outra categoria é constituída por animais,
e nem todos os animais são percebidos pelos humanos
da mesma maneira.
Por exemplo, os touros de lide.
Não são o mesmo que cães, gatos, galinhas, nem baleias.
Há animais que não são animais no inconsciente.
Mexer neles, mesmo com luvas, pinças, bata branca,
desencadeia repulsa, agressão, e a criatura,
por eles ensandecida, ou foge
ou mata.
Para quê informar que os animais são inofensivos,
úteis à sanidade do ambiente
e bons cooperadores na agricultura,
se lagartos e cobras são impulsos irracionais
para muitas pessoas?
Não são animais, são pavores.
Pesadelos de que se acorda aos gritos.
Porquê? Porquê?
Talvez por serem animais terrestres de sangue frio.
E não por te representarem na Bíblia.
Tanta água em baixo, Lilith das calças frouxas.
Vais morrer pelos pés, a foice a trepar devagarinho
por ti acima, a mão da morte a agarrar-te o coração,
a apertá-lo até ficar do tamanho de uma avelã.
O túnel.
Uma vergastada de vento
entra pela janela, com ela outrora entravam faúlhas e fumo,
agora entram cheiros a óleo queimado,
pensar que uma cobrita de centímetros
faz erguer uma enxada contra ela, deve ser Diesel.
Pala, tiro-te o boné, és uma jóia
ao pescoço do rio, digna de ser lembrada! 


SEGUNDO DIA – O MITO DA MATÉRIA

Nunca se satisfaz, a Matéria.
Nada a contenta, a tudo põe defeito.
Viciada na economia, contém-se,
escolhe,
entre dois instrumentos,
o que lhe dá mais gozo - a miséria.
Há um encanto irresistível
na casita arruinada na floresta,
desde que a chaminé deite fumo
porque o maior conforto humano
aninha-se à lareira do estômago.
Por isso a Matéria ama o fumo que se ergue
da casita isolada
no meio da floresta
porque anuncia pote ao lume
e a quentura do forno.
A Matéria ama a pobreza,
poupa água, ar, terra, fogo,
apaga a luz,
na escuridão da casita
perdida na floresta,
bate com a cabeça nas paredes
por poupar até às fezes.
Árdua, difícil, desespera os humanos, a Matéria.
Vive entre a boca e o terço
e entre o terço e as pernas,
e entre as pernas e as portas.
Escancaradas, para arejar a casa, nas manhãs geladas,
em que os campos
são de vidro e a água cristaliza
por força da temperatura inferior a
zero graus centígrados de lágrimas.
A Matéria derrete de gozo
como barra de chocolate na língua
com o sofrimento.
Sentiu o martírio, foi flagelada, habituou-se a isso
como outros à droga ficam vinculados.
Ela é a grande onda maternal,
o tsunami do auto-sacrifício
na ara de deus nenhum
que o oceano consegue dividir
de lado a lado
e o mito erguer na pira do valor máximo - Zero.
Como os animais que os filhos escorraçam
em chegando à idade de caçar
para que se afastem do seu território
e busquem o próprio
ela é implacável, a Matéria.
Encosta o filho à parede,
cresce para ele fingindo encolher-se
e destrói,
destrói tudo o que ama
com as palavras.

                                                                 in “Diário de Lilith”

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