Nicolau Saião, Sem título
PRIMEIRO DIA – PALA
Pala deve ser aquela terra abaixo
do nível da linha de comboio,
numa baía em que se ergue uma
igreja.
Tanta água junta aos pés,
tanta água que se mete, céus!,
sabendo e sem saber,
como conhecer os outros?
E que outros? Rodeiam-nos muitas
categorias de outros,
vivemos com muitas categorias de
outros,
entre elas, só uma é constituída
por humanos.
Outra categoria é constituída por
animais,
e nem todos os animais são
percebidos pelos humanos
da mesma maneira.
Por exemplo, os touros de lide.
Não são o mesmo que cães, gatos,
galinhas, nem baleias.
Há animais que não são animais no
inconsciente.
Mexer neles, mesmo com luvas,
pinças, bata branca,
desencadeia repulsa, agressão, e a
criatura,
por eles ensandecida, ou foge
ou mata.
Para quê informar que os animais
são inofensivos,
úteis à sanidade do ambiente
e bons cooperadores na agricultura,
se lagartos e cobras são impulsos
irracionais
para muitas pessoas?
Não são animais, são pavores.
Pesadelos de que se acorda aos
gritos.
Porquê? Porquê?
Talvez por serem animais terrestres
de sangue frio.
E não por te representarem na
Bíblia.
Tanta água em baixo, Lilith das
calças frouxas.
Vais morrer pelos pés, a foice a
trepar devagarinho
por ti acima, a mão da morte a
agarrar-te o coração,
a apertá-lo até ficar do tamanho de
uma avelã.
O túnel.
Uma vergastada de vento
entra pela janela, com ela outrora
entravam faúlhas e fumo,
agora entram cheiros a óleo
queimado,
pensar que uma cobrita de centímetros
faz erguer uma enxada contra ela,
deve ser Diesel.
Pala, tiro-te o boné, és uma jóia
ao pescoço do rio, digna de ser
lembrada!
SEGUNDO DIA – O MITO DA MATÉRIA
Nunca se satisfaz, a Matéria.
Nada a contenta, a tudo põe
defeito.
Viciada na economia, contém-se,
escolhe,
entre dois instrumentos,
o que lhe dá mais gozo - a miséria.
Há um encanto irresistível
na casita arruinada na floresta,
desde que a chaminé deite fumo
porque o maior conforto humano
aninha-se à lareira do estômago.
Por isso a Matéria ama o fumo que
se ergue
da casita isolada
no meio da floresta
porque anuncia pote ao lume
e a quentura do forno.
A Matéria ama a pobreza,
poupa água, ar, terra, fogo,
apaga a luz,
na escuridão da casita
perdida na floresta,
bate com a cabeça nas paredes
por poupar até às fezes.
Árdua, difícil, desespera os
humanos, a Matéria.
Vive entre a boca e o terço
e entre o terço e as pernas,
e entre as pernas e as portas.
Escancaradas, para arejar a casa,
nas manhãs geladas,
em que os campos
são de vidro e a água cristaliza
por força da temperatura inferior a
zero graus centígrados de lágrimas.
A Matéria derrete de gozo
como barra de chocolate na língua
com o sofrimento.
Sentiu o martírio, foi flagelada,
habituou-se a isso
como outros à droga ficam vinculados.
Ela é a grande onda maternal,
o tsunami do auto-sacrifício
na ara de deus nenhum
que o oceano consegue dividir
de lado a lado
e o mito erguer na pira do valor
máximo - Zero.
Como os animais que os filhos
escorraçam
em chegando à idade de caçar
para que se afastem do seu
território
e busquem o próprio
ela é implacável, a Matéria.
Encosta o filho à parede,
cresce para ele fingindo
encolher-se
e destrói,
destrói tudo o que ama
com as palavras.
in “Diário de
Lilith”
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