NATAL INTEMPORAL
Quem fala de Natal perde palavras
à entrada do Inverno, na secura dos
dias
no vasto frio das noites, tão
lúcidas e antigas
tão de infância e de Agosto. O fogo
misturado: árvores, luzes,
fantasmas
e as doces mãos das Avós. E ainda
um postal velho velho cheio de
vento e de memórias.
Quem fala de Natal perde palavras,
ganha
e perde as demais coisas que as
palavras edificam.
“Quem grita no Natal? E Deus
não
os fulmina? “. Quem mergulha os seus pulsos
na fria água do rio? Com seus chapéus à banda
em barcos engalanados
os anjos vão passando, dizendo
amores esquecidos
dizendo estranhas frases,
assombrando as moradas
onde afinal não nasce o tal de
Nazareth. O sal e o
pão terrenal dos que ainda não
foram
pelo ar, pela vida, pelos túmulos
vazios.
Sim, pelo Natal as pobres casas em
ruínas.
Para ser do Natal é preciso possuir
uma lembrança ardente, um brinquedo
estripado
e muita tristeza feita nos anos em
leilão
dos retratos tombando com um nó na
garganta.
Para ser do Natal é preciso morrer
e viver de seguida com o sangue nos
braços
esperando a estrela fixa do brusco
espanto nocturno
junto à porta perdida dum milagre
adiado.
Ah falar de Natal! Quem o consente?
O pão e o sal
talvez
de toda a gente. E um olho de
animal
pairando no poente. Decisivo,
visceral. E Deus, pobre dele
abrindo a água lustral (no bem, no
mal)
frente ao horror da morte
terrena e inocente.
Por isso, no Natal
os segredos demoram
e tudo muda e tudo se envolve num
pano branco barato
para que ninguém esqueça um corpo
ferido que por debaixo jaz
uma nova e desconhecida espécie de
cadáver achado na ilha
dos animais inominados
e outras diversas coisas que por
desespero se não apontam.
No Natal treme a casa, a casa
sempre caiada, como um sepulcro sem
número e sem nome.
E o inventário dá, se estiver
certo:
um coração ardido todo azul
uma recordação minúscula que se
guardou num bolso
um riso salutar ensanguentado
uma pequena ironia desenhada a
tinta de colegial
uma apenas esboçada mão posta sobre
um antebraço
o lenço de cabeça duma tia que
desapareceu na manhã
um gato tranquilamente dormindo ao
cimo das escadas
uma rosa e uma palavra que a si
mesmas se julgaram
duas mãos de pedra tremendo
atravessadas por uma ferida
numa cruz de polo a polo
um hálito que soprado no peito nos
enlouquece
um arrepio, uma agonia
uma tarde a fechar-se repleta de
amargura e de alegria.
Talvez o Natal seja um rosto
ou uma madrugada de outono
ou um avião nocturno
ou um verão por detrás das coisas
aparentes
ou um combatente jazendo de borco
numa pia baptismal
ou os bramidos de dois seres
abandonados encarando-se de súbito
numa rua da cidade
no escuro muito escuro de uma
cidade do universo
quer dizer – luminosa e aterrada. E
talvez
que tudo afinal esteja a mais, que
tudo afinal
se resuma a filhós e azevias de um
outrora
a canecas de café familiar
algures num horizonte, numa idade,
num momento
no imenso murmúrio de uma voz
sulcando o tempo.
E a chuva que diabo
irá cobrindo tudo
no infinito Natal dos mundos
desaparecidos.
UM NATAL ÀS CORES
Em geral estava frio. Um frio
límpido e seco
com um tom de cobalto muito escuro
no horizonte, quando
surgiam no céu os primeiros
luzeiros de Orion ou da
Ursa Maior. Para os lados de
Ocidente, a seguir à noitinha, um clarão
débil propagava-se sobre o bosque
de castanheiros: e eram as luzes
da cidade acocorada no princípio da
aba da Serra, estendida
no pequeno vale para lá das colinas
e dos pinhais.
Às vezes
chegava alguém até ao muro da
azinhaga – primeiro sinal
de casas e de gente: e eram
vizinhos das quintas em volta, alguns bufarinheiros
com a sua mala de corre-mundos, um
que outro mendigo mais afeito
aos campos e à sua generosidade em
que as Estações
se sucediam com figos, castanhas,
laranjas ardentes de sumo e de cor, o bom pão dormido e coberto de toucinho
rechinante ou rescendente de frescura
com o queijo duro e a manteiga
entre duas capas de presunto. Porque à gente
de boa paz nunca se negava, por
vontade do Pai e da Mãe,
o aconchego do estômago e uma que
outra placa desviada ao serviço
de domésticas, económicas
utilizações. E havia o tio Noitinhas
que, contava-se, fora rico e
decaíra; o tio Chico do Mel (esse levava sempre, porque tinha o meu nome, um
pedaço de chouriço ou de paio, de reforço);
a ti’ Ana Grila, que corria Ceca e
Meca desbastando por dentro
a saudade de um filho e de um
marido que lhe haviam morrido de desastre
lá para as lisboas da construção
civil; e o tio Martinho,
sempre com um canito à ilharga:
figura e retrato escarrapachado
do homem-do-saco que tantas vezes
me faria
comer o prato sem tardança, ele que
era manso e sereno
como um irmão de Heliópolis e cuja
voz,
tirante as barbaças de monge, era
suave posto que rouca e mais afeita
a dialogar com o rafeiro que a
assustar fosse quem fosse.
Mas as crianças, já se sabe, vêem o
tempo
com olhos maravilhados e sobre a
sua imaginação corre uma brisa
deslumbrante e divina que lhes
permite ver um emissário de mistérios e segredos
num pobre pedinte alentejano.
E depois, quase de repente, era
Natal. Com todas as suas
maravilhas incógnitas: o grão
cozido e pisado para o recheio
das azevias largas como uma palma
de mão
ou diminutas
como um ninho de andorinha-do-mar;
o bacalhau que o Pai trouxera
da cidade de juntura com
misteriosos embrulhos
encaminhados à socapa para as
secretas geografias das gavetas
da cómoda grande; a Tia cortando o
pão
para a sopa de cação apaladado de
alho
e demais ervas próprias, a Mãe
estendendo o manto
das filhós depois fritas com
cuidados e saberes de alquimista, a Mana
que ajudava neste e naquele
trabalho para depois saber
quando crescesse com filhos e
responsabilidades por dentro
e nas mãos operosas. E, pela noite,
vinham então a vizinha Mari'José, o
vizinho Manuel Planeta, as filhas
Jacinta e Júlia e, às vezes, a
minha Avó das histórias
com seu saquinho de malhas, lá de
longe das Arronches,
e no meio duma conversa, dum riso,
duma garfada, dling dlong
e era já meia-noite? Já, a missa do
galo sentida por cima dos pinheiros, chegada
da capela de S. Cristóvão ainda não
havido o Atalaião?
Sinal de fraternidade na noite
subitamente silenciosa.
Um Natal às cores. Com as cores do
passado. Fotografado
pela memória da infância e da
recordação agradecida.
ns