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O Ti’Mané
Vítima – Ou só o Vítima, que os anos abreviam até as alcunhas inventadas.
Era carvoeiro e quando apregoava “Olha o
picão, picãããão!” o seu grito publicitário era uma queixa rouca e
desgarradora que fazia pena e riso em simultâneo. Como uma acusação feita ao
destino, quase no género dum Pamplinas sonoro. Daí o nome de Vítima que de
pronto lhe colei para gastos internos.
Todas as tardinhas, com o jerico
liberalmente carregado, passava o “Vítima” perto da minha casa. Às vezes um
bocado aos trancos, que Ti’Mané gostava da sua pinga e não devia ser peco a
servir-se da caneca. E sendo o burrico o seu meio de transporte, não corria o
risco de ter de soprar no balão ou
ser autuado, com vilania, pelos pasmas.
Daí, concerteza, a sua solitária e serena reincidência que lhe desatava a
língua e o punha em conversas íntimas, com perguntas e respostas só lá p’ra
ele, num tom algo entaramelado mas convicto. Que filosofias de mágoa ou espanto
lhe percorreriam as meninges? O “Vítima” jogava nos diálogos a uma voz,
visitando lugares inacessíveis aos outros nos continentes dum discurso próprio
e, confesso, isso fazia a minha admiração juvenil. Pela evidente constância, decerto dirigida
aos manes.
Às vezes acompanhava-o um filho ainda novito
mas que ele já dera às artes ígneas da carvoaria. Tinha uns olhos duma tristeza
infinita. Mas, como eu o conhecia da escola, sabia que isso se devia mais ao
enfarruscado do rosto – marca inevitável em quem praticava semelhante tarefa.
Calado, sobre o magro mas rijote, conhecia como seu pai as lides do fogo, o
largo espelhado das chamas e, depois, o fumo acre e oloroso sobre os campos.
Daí, talvez, o seu algum afastamento da malta colegial, rapaz-homem que já era.
Mas pacífico – e com uma humildade comovente de pobre. Um dia, um peralta
qualquer ofendeu-o e, ameaçador, colocou-se em posição ante os olhos algo
acossados do jovem carvoeiro. Impante, bruto como as casas, humilhou-o com
desfaçatez. Ou seja, teve azar. Com a minha delicadeza de orangotango fui-me a
ele e deixei-o feito em cacos: e que isso conte a meu favor, essa zaragata de
que me orgulho, nas contas a efectuar com os anjos guardiões do senhor deus dos
exércitos. E nem sei se ele me olhou com os seus lúzios de labutador sem usura.
Há uns anos, andando eu a passear numa das
vilas-dormitórios da grande Lisboa, dei com ele – com um filhote à ilharga – a
entrar num cafézito de bairro. Fiz-me também entrado e tomei anonimamente
qualquer coisa enquanto o nosso herói desbaratava uma sandes acompanhada a
cervejola. Não era, portanto, um adepto do tintol
como o senhor seu pai já falecido.
Paguei o não sei quê que bebera. Saí, com o
coração a bambolear como o Ti’Mané fazia. E na rua, enquanto ia respirando o ar
proletário daquele bairro de operários, só me apetecia gritar baixinho “Olh’ó picão, picãããão!”. Como uma
queixa, digamos. Ou uma saudação daqui para o além, burrico incluído.
O Santo de
Pau Carunchoso – Metafisicamente,
um peso leve. Ao que parece Deus manda-lhe lembretes adequados e ele, com
gravidade mas sem cerimónia, com a naturalidade dos que se sabem escolhidos
(sem vaidade!) distribui-os caritativamente como cumpre aos ungidos pela graça.
É humilde, bem falante, ama os pobrezinhos e até compreende os ateus, esses
desnaturados. Na sua santa compreensão sabe que o são apenas (não é verdade?)
por desorientação. Que um dia voltarão ao redil – mas mesmo que não voltem
merecem uma oportunidade. Assim como assim não são todos filhos do (seu)
Senhor?
A tal ponto humano, delicado e escorreitamente
uma alma de eleição, este Bossuet de pacotilha, este S.Tomás de trazer por casa
fez sempre a minha admiração estupefacta: disseram-me com verdade que teve duas
criadas anciãs e que no estado de moribundas lhes pegou na mão até darem o
salto para a eternidade. Questionado sobre o facto, referiu que era para as
auxiliar no momento derradeiro! E não ter uma delas voltado – ou até mesmo as
duas – por um minuto à vida para lhe escarrarem na cara a verdade básica de que
naquele momento um ser humano deve ser deixado em paz, porque cada um tem
direito à sua morte sem que ao lado esteja a bondade de um patrão!
Tão dedicado, serviçal e esclarecido nos quereres da Providência – que faz perceber aos mais lúcidos ou versados nos assuntos da Dogmática e da Patrística que decerto o sinal do demo não lhe anda longe. Ou seja: vai ter uma grande surpresa quando chegar o último suspiro e o Criador – em que ele crê com os quatro lombos – previsivelmente o atirar com um gentil mas decidido pontapé no traseiro para o purgatório, que gente como ele nem inferno merece. Mas talvez, ó céus, isso seja ainda matéria de júbilo, porque para estes semprempés místicos tudo é matéria de comprazimento e auto-consolação, tudo é magnífica ocasião de ascenderem, como ele vai ascendendo pouco a pouco, ao seio da mais celestial e gratificante santa abominação.
in “RETRATOS
DE FANTASMAS NÍTIDOS”
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