terça-feira, 26 de abril de 2022

Lembrança de Pedro Oom - Três poemas

 




Poema

 

                 À Júlia Chaves

 

Há um ar de espanto

no teu rosto em silêncio    pequenas pausas

entre nós e as palavras

          que desfiamos

Quando o silêncio (pausa mais longa

           que nos contrai o peito)

cai bruscamente

duas mãos agitam-se meigamente     as nossas

e os mendigos, todos os mendigos

espreitam ao postigo do teu pequeno apartamento

coroados de rosas e crisântemos

 

É o momento

em que afirmamos a realidade das coisas

não a que vemos na rua

e que sabemos fictícia

 

mas a outra

 

aurora cintilante

que põe estrelas no teu sorriso

quando acordas de manhã

com um sol de angústia na garganta

 

acredita

nada nos distingue

entre a multidão anónima a que pertencemos

embora

o fotógrafo teime sempre

em nos oferecer uma esperança

- fluido imaterial que nem mil anos

poderão condensar -

 

O nosso rasto

mal se apercebe na areia

condenados ao fracasso

pequena glória dos pequenos heróis deste tempo

ainda aspiramos

          no entanto

a ser o índice deste século

único sinal humano, florescente e salubre

de contrário

seremos apenas

um halo de vento

arco-íris de luto

ou estrada para sedentários

É ocioso

preparar a objectiva

que nos vai condenar a um número

nesta cidade onde cada homem

é escravo de uma arma

Ocioso

avivar as flores do cenário

encher de luar o jardim do nosso afecto

                      Só um acaso

                      nos poderá revelar

                 por isso

                        fechemos o rosto

                                                   meu amor

 

 

Poema

 

Os camaradas

saíram para a rua

com os bolsos cheios de serpentinas

 

            (o calendário

            estava trocado

            e de Entrudo

 

                        nicles

              nem um só cabeçudo

              ou máscara

              até o polícia de giro

              com a dignidade sui generis

              dos pequenos autocratas

              participou na patuscada

              depois do jogo

              - o Benfica foi eliminado)

 

Os camaradas

compraram fatos novos

nos alfaiates dernier-cri

e botaram as serpentinas

no lixo

 

para não deformar

os bolsos (novos).


 

História do meu boneco

 

Cresceu comigo

neste espaço que se diz português

e neste tempo (histórico)

 

Maricas (era de esperar)

mas rebelde como um felino

ninguém se lhe pôs inteiro

ficou sempre um bocadinho

porque rangia a dentadura.

 

Deixou de acreditar na Santíssima Trindade

quando notou as primeiras brancas do púbis

mas já era muito tarde para ir às “meninas”

pelo que aderiu aos movimentos parlamentares

- lixou-se!

 

Depois de 45

afundou-se na continuidade

engordou (discretamente)

caíram-lhe os últimos molares

farfalhou o bigode, à Guarda Nacional antiga

e hoje

para fingir que é   ainda o teso,

levanta a calva luzente

e bate o pé

 

ao peso dos argumentos.

 

                                            Sacavém, Março de 1973

 

   Enviados a nicolau saião para serem publicados no Suplemento Cultural - do semanário “A Rabeca” - que este dirigia e onde foram integralmente cortados pela Censura.

   Faleceu em Lisboa a 26 de abril de 1974, com quarenta e sete anos de idade. O falecimento ocorreu no “Restaurante 13”, devido a um ataque cardíaco fulminante, quando conjuntamente com amigos festejava os acontecimentos da véspera, a conquista da liberdade pelo povo..


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