Poema
À Júlia Chaves
Há um
ar de espanto
no teu
rosto em silêncio pequenas pausas
entre
nós e as palavras
que desfiamos
Quando
o silêncio (pausa mais longa
que nos contrai o peito)
cai
bruscamente
duas
mãos agitam-se meigamente as nossas
e os
mendigos, todos os mendigos
espreitam
ao postigo do teu pequeno apartamento
coroados
de rosas e crisântemos
É o
momento
em que
afirmamos a realidade das coisas
não a
que vemos na rua
e que
sabemos fictícia
mas a
outra
aurora
cintilante
que
põe estrelas no teu sorriso
quando
acordas de manhã
com um
sol de angústia na garganta
acredita
nada
nos distingue
entre
a multidão anónima a que pertencemos
embora
o
fotógrafo teime sempre
em nos
oferecer uma esperança
-
fluido imaterial que nem mil anos
poderão
condensar -
O
nosso rasto
mal se
apercebe na areia
condenados
ao fracasso
pequena
glória dos pequenos heróis deste tempo
ainda
aspiramos
no entanto
a ser
o índice deste século
único
sinal humano, florescente e salubre
de
contrário
seremos
apenas
um
halo de vento
arco-íris
de luto
ou
estrada para sedentários
É
ocioso
preparar
a objectiva
que
nos vai condenar a um número
nesta
cidade onde cada homem
é
escravo de uma arma
Ocioso
avivar
as flores do cenário
encher
de luar o jardim do nosso afecto
Só um acaso
nos poderá revelar
por isso
fechemos o rosto
meu amor
Poema
Os
camaradas
saíram
para a rua
com os
bolsos cheios de serpentinas
(o calendário
estava trocado
e de Entrudo
nicles
nem um só cabeçudo
ou máscara
até o polícia de giro
com a dignidade sui generis
dos pequenos autocratas
participou na patuscada
depois do jogo
- o Benfica foi eliminado)
Os
camaradas
compraram
fatos novos
nos
alfaiates dernier-cri
e
botaram as serpentinas
no
lixo
para
não deformar
os
bolsos (novos).
História
do meu boneco
Cresceu
comigo
neste
espaço que se diz português
e
neste tempo (histórico)
Maricas
(era de esperar)
mas
rebelde como um felino
ninguém
se lhe pôs inteiro
ficou
sempre um bocadinho
porque
rangia a dentadura.
Deixou
de acreditar na Santíssima Trindade
quando
notou as primeiras brancas do púbis
mas já
era muito tarde para ir às “meninas”
pelo
que aderiu aos movimentos parlamentares
-
lixou-se!
Depois
de 45
afundou-se
na continuidade
engordou
(discretamente)
caíram-lhe
os últimos molares
farfalhou
o bigode, à Guarda Nacional antiga
e hoje
para
fingir que é ainda o teso,
levanta
a calva luzente
e bate
o pé
ao
peso dos argumentos.
Sacavém, Março de 1973
Enviados a
nicolau saião para serem publicados no Suplemento Cultural - do semanário “A
Rabeca” - que este dirigia e onde foram integralmente cortados pela Censura.
Faleceu em Lisboa a 26 de abril de 1974, com
quarenta e sete anos de idade. O falecimento ocorreu no “Restaurante 13”, devido
a um ataque cardíaco fulminante, quando conjuntamente com amigos festejava os
acontecimentos da véspera, a conquista da liberdade pelo povo..
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