A poesia, já se sabe, é a seu modo um processo de acumulação e juntura.
Qual o seu secreto encadeamento, qual o percurso que toma a sua ordenação, de
que forma o poeta talha e restaura, observa e finalmente conclui? Perguntava
Camus, a certo passo dum texto seu: “Quem testemunhará por nós?” e respondia de
imediato: “As nossas obras”. Apontava, é claro, para o testemunho da obra acabada no seu ciclo de coisa espiritual, de matéria interior que transporta para os
vindouros, com toda a sua carga própria, as perguntas e as respostas que nos é
dado formular.
Mas, em simultâneo, é fascinante e importante a mais dum título que tanto
quanto o possamos fazer nos debrucemos sobre o suporte em si, seja no caso da poesia ou da pintura, da música ou
da filosofia, serve dizer: nos ramos das actividades
superiores que, por o serem, não estão dependentes de eventuais manobras
ilegítimas de tiranos ou de equívocos mandantes, ainda que a matéria em que se revelem esteja por
vezes submetida a ditames exteriores à vontade de quem as utiliza. Porque, nas
suas vias interiores, os poetas não têm dono, não são assimiláveis pelos que,
frequentemente, tentam à custa deles estabelecer currículos, efectuar
brilharetes duvidosos, bolsar jaculatórias de nulo poder encantatório. Não
falando, é claro, no caso extremo de quem subtrai à visão e fruição de outrem
as produções com que os autores buscam interpelar o seu tempo e o tempo a vir.
Já vários ensaístas e poetas têm analisado proficientemente a questão dos
vestígios. Deixa-se adivinhar a seguinte
pergunta: o rigor interior duma obra pode
ser divisado, digamos, no rigor do suporte? É inevitável lembrarmo-nos de
Balzac e das sucessivas emendas a que submetia os seus escritos, cujos
gatafunhos desesperavam os tipógrafos, ou das partituras de Schubert
frequentemente lançadas num qualquer papelucho que lhe caía nas mãos, ou até
sobre o tampo de mesas até que um fortuito papel salvador lhe chegasse…
Como se estrutura pois a matéria
criada, de que maneira peculiar voga e navega o processo criador - tal pode
entrever-se pela observação desses vestígios que os diversos autores nos legam
ou simplesmente vão deixando na sua viagem pelo tempo que lhes coube viver. No
caso que a seguir abordaremos isso naturalmente acontece.
Cedidas em fotocópia pelo Dr. Manuel Inácio Pestana - a quem fora
oferecida reprodução das mesmas pelo coleccionador António Capucho - temos na
nossa frente as duas versões prévias (deverá chamar-se-lhes rascunhos?) do
conhecido texto regiano que fez e muito bem momentos inesquecíveis de muitos
leitores tanto lusitanos como brasileiros. Dediquemos-lhes atenção, visando
deixar algumas pistas consistentes.
A primeira versão, exarada na bela e clara letra de Régio, tem emendas em
todas as páginas, sendo de assinalar que a “emenda” da décima é um acrescento
no verso da mesma; acrescento significativo, uma vez que é a famosa reflexão
que começa: “O amor, a amizade e quantos/
Mais sonhos de ouro eu sonhara,(…)” aliás também emendada na oitava linha.
As páginas 2, 5, 7 e 10 são ilustradas por desenhos como que ao correr da pena.
Contudo, apesar de o serem, diria que nos mostram a preocupação plástica
do poeta duma forma incisiva: o desenho da página 10, por exemplo,
patenteia-nos um rosto arrepanhado, dorido, inclinado sobre a esquerda (tradicionalmente
o lado do coração), um rosto que o poeta frequentemente plasmou em desenhos
diversos. Na segunda versão, apenas uma palavra foi substituída na primeira
linha da oitava página - retomando aliás a palavra escrita na primeira versão: desgraçados em vez de enforcados, que para Régio decerto
marcava em demasia a sequência da estrutura do poema. De assinalar, ainda, que
nenhuma destas versões manuscritas contém a palavra atónito, que se lê na versão publicada em livro (“Deixado só, nulo,
atónito…); nelas, a que consta é a palavra vácuo.
“Esta é a minha mão das palavras”, diz num seu poema Carlos Edmundo de
Ory (em excelente tradução de Herberto Hélder). A mão interior dos poetas
procura na escuridão e no silencio “le
mot juste” para tentar redefinir o mundo, para adequar o seu percurso
próprio a uma rota de liberdade, de felicidade e de sabedoria.
É essa a única aposta que vale a pena como referia Mathew Mead, a única tarefa que ao poeta eventualmente caberá
e que num universo de inquietações várias faz de facto sentido. O resto, coisas
um tanto espúrias que a vida civil pela mão de alguns tenta colar ao perfil dos
criadores, é apenas acrescento frequentemente inútil ou dispensável.
Régio, como grande escritor que era, sabia-o na perfeição.
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