terça-feira, 12 de abril de 2022

Nicolau Saião, “Toada de Portalegre” - dois rascunhos prévios

 



A poesia, já se sabe, é a seu modo um processo de acumulação e juntura. Qual o seu secreto encadeamento, qual o percurso que toma a sua ordenação, de que forma o poeta talha e restaura, observa e finalmente conclui? Perguntava Camus, a certo passo dum texto seu: “Quem testemunhará por nós?” e respondia de imediato: “As nossas obras”. Apontava, é claro, para o testemunho da obra acabada no seu ciclo de coisa espiritual, de matéria interior que transporta para os vindouros, com toda a sua carga própria, as perguntas e as respostas que nos é dado formular.

Mas, em simultâneo, é fascinante e importante a mais dum título que tanto quanto o possamos fazer nos debrucemos sobre o suporte em si, seja no caso da poesia ou da pintura, da música ou da filosofia, serve dizer: nos ramos das actividades superiores que, por o serem, não estão dependentes de eventuais manobras ilegítimas de tiranos ou de equívocos mandantes, ainda que a matéria em que se revelem esteja por vezes submetida a ditames exteriores à vontade de quem as utiliza. Porque, nas suas vias interiores, os poetas não têm dono, não são assimiláveis pelos que, frequentemente, tentam à custa deles estabelecer currículos, efectuar brilharetes duvidosos, bolsar jaculatórias de nulo poder encantatório. Não falando, é claro, no caso extremo de quem subtrai à visão e fruição de outrem as produções com que os autores buscam interpelar o seu tempo e o tempo a vir.

Já vários ensaístas e poetas têm analisado proficientemente a questão dos vestígios. Deixa-se adivinhar a seguinte pergunta: o rigor interior duma obra pode ser divisado, digamos, no rigor do suporte? É inevitável lembrarmo-nos de Balzac e das sucessivas emendas a que submetia os seus escritos, cujos gatafunhos desesperavam os tipógrafos, ou das partituras de Schubert frequentemente lançadas num qualquer papelucho que lhe caía nas mãos, ou até sobre o tampo de mesas até que um fortuito papel salvador lhe chegasse…

Como se estrutura pois a matéria criada, de que maneira peculiar voga e navega o processo criador - tal pode entrever-se pela observação desses vestígios que os diversos autores nos legam ou simplesmente vão deixando na sua viagem pelo tempo que lhes coube viver. No caso que a seguir abordaremos isso naturalmente acontece.

Cedidas em fotocópia pelo Dr. Manuel Inácio Pestana - a quem fora oferecida reprodução das mesmas pelo coleccionador António Capucho - temos na nossa frente as duas versões prévias (deverá chamar-se-lhes rascunhos?) do conhecido texto regiano que fez e muito bem momentos inesquecíveis de muitos leitores tanto lusitanos como brasileiros. Dediquemos-lhes atenção, visando deixar algumas pistas consistentes.

A primeira versão, exarada na bela e clara letra de Régio, tem emendas em todas as páginas, sendo de assinalar que a “emenda” da décima é um acrescento no verso da mesma; acrescento significativo, uma vez que é a famosa reflexão que começa: “O amor, a amizade e quantos/ Mais sonhos de ouro eu sonhara,(…)” aliás também emendada na oitava linha. As páginas 2, 5, 7 e 10 são ilustradas por desenhos como que ao correr da pena.

Contudo, apesar de o serem, diria que nos mostram a preocupação plástica do poeta duma forma incisiva: o desenho da página 10, por exemplo, patenteia-nos um rosto arrepanhado, dorido, inclinado sobre a esquerda (tradicionalmente o lado do coração), um rosto que o poeta frequentemente plasmou em desenhos diversos. Na segunda versão, apenas uma palavra foi substituída na primeira linha da oitava página - retomando aliás a palavra escrita na primeira versão: desgraçados em vez de enforcados, que para Régio decerto marcava em demasia a sequência da estrutura do poema. De assinalar, ainda, que nenhuma destas versões manuscritas contém a palavra atónito, que se lê na versão publicada em livro (“Deixado só, nulo, atónito…); nelas, a que consta é a palavra vácuo.

“Esta é a minha mão das palavras”, diz num seu poema Carlos Edmundo de Ory (em excelente tradução de Herberto Hélder). A mão interior dos poetas procura na escuridão e no silencio “le mot juste” para tentar redefinir o mundo, para adequar o seu percurso próprio a uma rota de liberdade, de felicidade e de sabedoria.

É essa a única aposta que vale a pena como referia Mathew Mead, a única tarefa que ao poeta eventualmente caberá e que num universo de inquietações várias faz de facto sentido. O resto, coisas um tanto espúrias que a vida civil pela mão de alguns tenta colar ao perfil dos criadores, é apenas acrescento frequentemente inútil ou dispensável.

Régio, como grande escritor que era, sabia-o na perfeição.


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