NO CATÁLOGO DE UMA EXPOSIÇÃO
I - A pintura como interrogação e expressão da
vida
Como pedir ao pintor que cale e oculte a
sua melancolia e a mágoa de ter dentro de si, rebelando-o, o fogo do desencanto
e da abjecção?
O pintor livre situa-se pois num pleno que
escapa às arrumações economicistas e materialistas que pretendem reduzir a vida
e a complexidade das sociedades humanas a uma mera luta de interesses entre
classes ou grupos sociais. Há mais mundos – já escrevia José Régio. O pintor,
como poeta da paleta, não pode deixar de reflectir nas suas telas o
desmoronamento do mundo que se processa à sua volta.
Entregue à tela como aos braços e ao ventre
da mulher e do homem amado, o pintor segue as coordenadas e os caminhos ditados
pelo subconsciente, numa busca incessante de realidade para além das aparências
e das sombras. Porque aquela não se apresenta fácil e fiel a todos os olhares,
antes se confundindo e insinuando como uma fórmula secreta. E aqui chegados,
desde logo relacionamos o pintor como um descodificador de símbolos e
segredos cujo empreendimento sabe nunca
poder terminar. Daí a sua vida ser um imenso percurso que se realiza sobretudo
através dos outros, mais propriamente através do espírito e da palavra dos
outros, isto é, para além dos limites da sua própria existência.
O assunto, amante fiel da forma, é o alvo
do pintor invadindo-o até às entranhas, ainda que seja conhecido que um e outra
se conciliam como no amor. O acto de pintar é para o pintor violentamente
orgástico e experiência íntima que sobeje para deixar de fora todos os que dele
colhendo a iniciação, somente desejam os seus frutos tentadores, ignorando ou
desprezando os caminhos de sacrifício que o mesmo encerra. A Pintura como a
Alquimia não é campo de cultivo para assopradores de circunstância ou cultores
de catavento que desertam à menor das dificuldades. Ritual de vida e de morte,
a pintura implica uma disponibilidade do criador para a aceitação dos
obstáculos.
Na tela as cores estão lá todas,
absolutamente em tudo. As cores quentes confundindo-se com as mais frias, os
vermelhos e os negros do fogo e do sangue relacionando-se com os azuis e os
verdes da pureza e da degeneração. Contudo com as cores, levando-as na ponta do
pincel, nos dedos ou na espátula, vão também os fantasmas da realidade, as
regiões ocultas que só o poeta tem a faculdade de penetrar.
Maldoror
II
– A fúria dos elementos
A minha própria experiência de pintor que
monta o atelier na rua ou nos parques da cidade, sob sol intenso ou
recebendo no corpo e na alma a fúria dos ventos, tempestades ou invejas
mesquinhas, permitiu-me (e permite ainda) percorrer os labirintos, subterrâneos
e infernos da vida contemporânea e sentir o compasso ignóbil por onde se rege a
maioria dos homens da sociedade moderna e “civilizada”. Não é obrigatório que
outros tenham de o fazer e haverá certamente outros modos de lá chegar. Todavia
é uma experiência única (e aterradora) pois coloca o pintor no meio da vaga
redutora onde se matam à nascença todos os sinais de inocência e ilusão.
A minha pintura não cessa de reflectir
estas viagens de realidade e pesadelo, encontros com a matéria-prima com que se
concebem o ódio e a degeneração do espírito humano.
Os meus últimos trabalhos, estes que exponho
aos vossos olhos belos e selvagens, ostentam o monstro com o ventre repleto de
novos embriões. O retrato do Indizível não está ainda terminado mas já se lhe
vê nos olhos a ambição de ficar por largo tempo, tentaculando virgens e homens
de mera condição.
Em data que desconhecemos, neste século em
que as sombras do racionalismo se fecharam como garras sobre o Mundo, de
Bruxelas escreveu Saldanha da Gama para o poeta Mário Cesariny: “Ou aller
pour vivre, ivre, maigre, mais libre?”. O drama para o poeta do nosso tempo
e particularmente dos dias de hoje, é o da sobrevivência espiritual e
igualmente física, numa sociedade e num mundo onde a vontade dominante se
inclina vertiginosamente para o holocausto e a queda, arrastando nessa tragédia
colectiva todos os que não se submetem às suas inclinações destrutivas e
antropofágicas.
Farol de poesia e liberdade, a pintura
continuará, contra todas as aparências (e apesar de todas as resignações e
conformismos) a iluminar as zonas de sombra da realidade. Sem quaisquer
vinculações a correntes ou postulados estéticos ou ideológicos, antes agindo
como ave de voo largo e universal, o pintor continuará a traçar na tela o
agitar frenético de vampiros que invade o rosto do homem e lhe sulca na pele os
caminhos da rendição.
É essa a sua condição.
O pintor seguirá adiante mesmo
perante o riso ou o desdém de quem sente que lhe conceberam o retrato a negro e
sem memória. Só as vozes livres saberão seguir-lhe o rasto de cometa insubmisso
e serão essas vozes que acompanharão o pintor pelos séculos adiante. O pintor
continuará incessantemente a pôr em tela os infernos ou os paraísos que vê
distintamente no íntimo dos homens”.
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