terça-feira, 19 de abril de 2022

Um texto de Carlos Martins

 

NO CATÁLOGO DE UMA EXPOSIÇÃO



 I - A pintura como interrogação e expressão da vida

    Como pedir ao pintor que cale e oculte a sua melancolia e a mágoa de ter dentro de si, rebelando-o, o fogo do desencanto e da abjecção?

    O pintor livre situa-se pois num pleno que escapa às arrumações economicistas e materialistas que pretendem reduzir a vida e a complexidade das sociedades humanas a uma mera luta de interesses entre classes ou grupos sociais. Há mais mundos – já escrevia José Régio. O pintor, como poeta da paleta, não pode deixar de reflectir nas suas telas o desmoronamento do mundo que se processa à sua volta.

    Entregue à tela como aos braços e ao ventre da mulher e do homem amado, o pintor segue as coordenadas e os caminhos ditados pelo subconsciente, numa busca incessante de realidade para além das aparências e das sombras. Porque aquela não se apresenta fácil e fiel a todos os olhares, antes se confundindo e insinuando como uma fórmula secreta. E aqui chegados, desde logo relacionamos o pintor como um descodificador de símbolos e segredos  cujo empreendimento sabe nunca poder terminar. Daí a sua vida ser um imenso percurso que se realiza sobretudo através dos outros, mais propriamente através do espírito e da palavra dos outros, isto é, para além dos limites da sua própria existência.

    O assunto, amante fiel da forma, é o alvo do pintor invadindo-o até às entranhas, ainda que seja conhecido que um e outra se conciliam como no amor. O acto de pintar é para o pintor violentamente orgástico e experiência íntima que sobeje para deixar de fora todos os que dele colhendo a iniciação, somente desejam os seus frutos tentadores, ignorando ou desprezando os caminhos de sacrifício que o mesmo encerra. A Pintura como a Alquimia não é campo de cultivo para assopradores de circunstância ou cultores de catavento que desertam à menor das dificuldades. Ritual de vida e de morte, a pintura implica uma disponibilidade do criador para a aceitação dos obstáculos.

    Na tela as cores estão lá todas, absolutamente em tudo. As cores quentes confundindo-se com as mais frias, os vermelhos e os negros do fogo e do sangue relacionando-se com os azuis e os verdes da pureza e da degeneração. Contudo com as cores, levando-as na ponta do pincel, nos dedos ou na espátula, vão também os fantasmas da realidade, as regiões ocultas que só o poeta tem a faculdade de penetrar.



Maldoror


II – A fúria dos elementos

    A minha própria experiência de pintor que monta o atelier na rua ou nos parques da cidade, sob sol intenso ou recebendo no corpo e na alma a fúria dos ventos, tempestades ou invejas mesquinhas, permitiu-me (e permite ainda) percorrer os labirintos, subterrâneos e infernos da vida contemporânea e sentir o compasso ignóbil por onde se rege a maioria dos homens da sociedade moderna e “civilizada”. Não é obrigatório que outros tenham de o fazer e haverá certamente outros modos de lá chegar. Todavia é uma experiência única (e aterradora) pois coloca o pintor no meio da vaga redutora onde se matam à nascença todos os sinais de inocência e ilusão.

    A minha pintura não cessa de reflectir estas viagens de realidade e pesadelo, encontros com a matéria-prima com que se concebem o ódio e a degeneração do espírito humano.     

   Os meus últimos trabalhos, estes que exponho aos vossos olhos belos e selvagens, ostentam o monstro com o ventre repleto de novos embriões. O retrato do Indizível não está ainda terminado mas já se lhe vê nos olhos a ambição de ficar por largo tempo, tentaculando virgens e homens de mera condição.

   Em data que desconhecemos, neste século em que as sombras do racionalismo se fecharam como garras sobre o Mundo, de Bruxelas escreveu Saldanha da Gama para o poeta Mário Cesariny: “Ou aller pour vivre, ivre, maigre, mais libre?”. O drama para o poeta do nosso tempo e particularmente dos dias de hoje, é o da sobrevivência espiritual e igualmente física, numa sociedade e num mundo onde a vontade dominante se inclina vertiginosamente para o holocausto e a queda, arrastando nessa tragédia colectiva todos os que não se submetem às suas inclinações destrutivas e antropofágicas.

   Farol de poesia e liberdade, a pintura continuará, contra todas as aparências (e apesar de todas as resignações e conformismos) a iluminar as zonas de sombra da realidade. Sem quaisquer vinculações a correntes ou postulados estéticos ou ideológicos, antes agindo como ave de voo largo e universal, o pintor continuará a traçar na tela o agitar frenético de vampiros que invade o rosto do homem e lhe sulca na pele os caminhos da rendição.  

   É essa a sua condição.

   O pintor seguirá adiante mesmo perante o riso ou o desdém de quem sente que lhe conceberam o retrato a negro e sem memória. Só as vozes livres saberão seguir-lhe o rasto de cometa insubmisso e serão essas vozes que acompanharão o pintor pelos séculos adiante. O pintor continuará incessantemente a pôr em tela os infernos ou os paraísos que vê distintamente no íntimo dos homens”.


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