A cerejeira
São pessoas
com raízes
tão
fundamente enterradas
no coração
que sangram
por espinhos
finos
acúleos
e deixam
regos de cicatrizes.
As árvores
são antepassados
de braços
erguidos sobre a cabeça
com cabelos encarapinhados.
Caem de
maduros frutos doces
da cabeça
dos homens
pensamentos
luxuriantes
entre os
quais repicam sinos.
Somos a
cerejeira
de vermelhas
bagas como brincos
nas folhas
de pequenas orelhas
ouriculares
no cadinho
das letras
audíveis
estrelas
brilham com
seus dentes de ouro
na cúpula
sombriamente noturna
a escorrer
tinta azul dos dedos.
Em baixo
correm riachos
subterrâneos
até ao
caranguejo de lava
do centro
incandescente da terra
que tudo
alumia e alimenta.
Cintilam
ideias, fulguram mentes
agitam-se as
folhas tagarelas
dos choupos
tremedores
mas nós
somos a interdita cerejeira
de punhais
trespassada
à porta dos
pais fechada
os velhos
sentados na pedra antiga
dos
provérbios contados
ao sol,
diante da velha choupana
enquanto
galinhas debicam grãos de sol
na
crepitação da palha
despedem
centelhas os folículos
das espigas
e rente ao chão
nos agostos
insondáveis
as manchas
prateadas da colcha acetinada
das
gramíneas.
Por cima de
tudo isto, as árvores.
Essas
pessoas de chapéu na cabeça para proteger
os
pensamentos
e de mão
encostada ao lado esquerdo do peito
a serenar o
coração.
Meu coração
não te partas
como
travessa de barro
pesada
de arroz de mágoas
os olhos no
luto do forno
carbonizados
sem dizer adeus
nesta
despedida imóvel
à porta da
casa de deus
fechada
entre olivas cinéreas
ao trémulo
clarão da cerejeira.
Lá longe, o
negro túmulo abeira-se
de um
arbusto de recordações
bagas num
perigo vermelho
que nem
pintam nem são passas
antes colar
de pérolas de veneno.
Chegam
pássaros de bico dourado
para o
repasto das árvores
e caem
mortos, caem mortos
com tanta
fruta no chão
que ninguém
aproveita
mas deixar
os pássaros comer,
isso é que
não!
Gaia, a
superterra, a deusa-mater
feita de
estruturas e relações
não sabe
sentir vergonha
nem ódio
contra esta gente
que ainda
não saiu da fase evolutiva de macaco.
Por isso não
se vinga
apenas nos
dá o troco dos nossos atos:
mosquitos
com fartura, baratas tremendas
as casas
invadidas pelos ratos
e fruta sem
gosto, envenenada
as alfaces
radioactivas
que nos fazem
cair os cabelos
e os dentes
das gengivas.
Quando era
tão fácil deixar comer as aves
numa terra
em que há cerejas para todos.
Zumbem
abelhas à volta do tronco alto
e carcomido
dos anos
porque as
árvores envelhecem
como os amos
e merecem
como eles morrer disso.
Idosa
cerejeira, tocada um pouco de
Alzheimer,
ampara-te
ao meu braço
amigo.
Eis porém
que chega o carniceiro
com seu
cutelo
de fio fino
à garganta
da mãe apontado.
O tronco
dobra-se para dentro
os ramos
apertam-se em torno da dor
salta uma espadana
de sangue
cerejas
vermelhas cerejas de sangue
salpicam de
sangue cereja o áspero térreo chão.
Outra
machadada
no tronco da
única árvore
de porte no
terreno
anciã do
pomar
os cabelos
de líquenes brancos
já
anunciando morte a seu tempo
sem precisão
de eutanásia.
A velha
grita que não fez nada
a velha
agarra-se ao sofrimento próprio e alheio
e geme que
não foi ela
não foi ela
quem interditou aos pássaros
as mais
altas cerejas da idosa
cerejeira
é só um
grito único a varrê-la das raízes
à cúpula dos
pensamentos
rubis
amargos
verdes ramas
rubis
amargos
sangue em
gotícolas que se espalha
e a seiva de
sangue é um regato
que se
derrama
do coração
aos pés da velha árvora
decana nesse
campo onde outrora
com nobreza
a nobreza
que nunca mais se viu em casa
nem casinhas
nem casota
com nobreza
de sangue
à sombra da
elevada cerejeira
erguia-se
uma graciosa choupana.
Caem-lhe um
a um os braços
num roçagar
de folhagem e estampido breve
das
projetadas cerejas
colares de
coral vivente
em sumo
solto abaladas
lágrimas de
ferida pungente
o tronco
aberto à facada
a ver-se-lhe
tudo por dentro:
o coração
partido,
as tripas
enroladas, os rins decepados
que mal se
seguram por um fio
e a seiva
vermelho vivo
de
cochinilha
que escorre
goma animal
nos dentes.
A besta
armada de cutelo e machado e punhal
abate abate
abate a
velha cerejeira
só para
mostrar ao mundo
que tem
tomates.
Zumbem
abelhas à volta dos toros
ensanguentados
e carcomidos
dos anos
no chão sem
sentidos empilhados
porque as
árvores envelhecem
como os amos
e merecem
como eles morrer disso.
In «Arboreto»,
em publicação na Arte-Livros, de São Paulo
Sem comentários:
Enviar um comentário