segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Um poema de Maria Estela Guedes

 



A cerejeira

 

São pessoas com raízes

tão fundamente enterradas

no coração

que sangram por espinhos

finos acúleos

e deixam regos de cicatrizes.

 

As árvores são antepassados

de braços erguidos sobre a cabeça

com cabelos encarapinhados.

 

Caem de maduros frutos doces

da cabeça dos homens

pensamentos luxuriantes

entre os quais repicam sinos.

 

Somos a cerejeira

de vermelhas bagas como brincos

nas folhas de pequenas orelhas

ouriculares

no cadinho das letras

audíveis estrelas

brilham com seus dentes de ouro

na cúpula sombriamente noturna

a escorrer tinta azul dos dedos.

 

 

Em baixo correm riachos

subterrâneos

até ao caranguejo de lava

do centro incandescente da terra

que tudo alumia e alimenta.

 

Cintilam ideias, fulguram mentes

agitam-se as folhas tagarelas

dos choupos tremedores

mas nós somos a interdita cerejeira

de punhais trespassada

à porta dos pais fechada

os velhos sentados na pedra antiga

dos provérbios contados

ao sol, diante da velha choupana

enquanto galinhas debicam grãos de sol

na crepitação da palha

despedem centelhas os folículos

das espigas e rente ao chão

nos agostos insondáveis

as manchas prateadas da colcha acetinada

das gramíneas.

Por cima de tudo isto, as árvores.

Essas pessoas de chapéu na cabeça para proteger

os pensamentos

e de mão encostada ao lado esquerdo do peito

a serenar o coração.

 

Meu coração não te partas

como travessa de barro

pesada de  arroz de mágoas

os olhos no luto do forno

carbonizados sem dizer adeus

nesta despedida imóvel

à porta da casa de deus

fechada entre olivas cinéreas

ao trémulo clarão da cerejeira.

 

Lá longe, o negro túmulo abeira-se

de um arbusto de recordações

bagas num perigo vermelho

que nem pintam nem são passas

antes colar de pérolas de veneno.

 

Chegam pássaros de bico dourado

para o repasto das árvores

e caem mortos, caem mortos

com tanta fruta no chão

que ninguém aproveita

mas deixar os pássaros comer,

isso é que não!

 

Gaia, a superterra, a deusa-mater

feita de estruturas e relações

não sabe sentir vergonha

nem ódio contra esta gente

que ainda não saiu da fase evolutiva de macaco.

Por isso não se vinga

apenas nos dá o troco dos nossos atos:

mosquitos com fartura, baratas tremendas

as casas invadidas pelos ratos

e fruta sem gosto, envenenada

as alfaces radioactivas

que nos fazem cair os cabelos

e os dentes das gengivas.

Quando era tão fácil deixar comer as aves

numa terra em que há cerejas para todos.

 

Zumbem abelhas à volta do tronco alto

e carcomido dos anos

porque as árvores envelhecem

como os amos

e merecem como eles morrer disso.

 

Idosa cerejeira, tocada um pouco de

Alzheimer, ampara-te

ao meu braço amigo.

 

Eis porém que chega o carniceiro

com seu cutelo

de fio fino

à garganta da mãe apontado.

O tronco dobra-se para dentro

os ramos apertam-se em torno da dor

salta uma espadana de sangue

cerejas vermelhas cerejas de sangue

salpicam de sangue cereja o áspero térreo chão.

 

Outra machadada

no tronco da única árvore

de porte no terreno

anciã do pomar

os cabelos de líquenes brancos

já anunciando morte a seu tempo

sem precisão de eutanásia.

A velha grita que não fez nada

a velha agarra-se ao sofrimento próprio e alheio

e geme que não foi ela

não foi ela quem interditou aos pássaros

as mais altas cerejas da idosa

cerejeira

é só um grito único a varrê-la das raízes

à cúpula dos pensamentos

rubis amargos

verdes ramas

rubis amargos

sangue em gotícolas que se espalha

e a seiva de sangue é um regato

que se derrama

do coração aos pés da velha árvora

decana nesse campo onde outrora

com nobreza

a nobreza que nunca mais se viu em casa

nem casinhas nem casota

com nobreza de sangue

à sombra da elevada cerejeira

erguia-se uma graciosa choupana.

 

Caem-lhe um a um os braços

num roçagar de folhagem e estampido breve

das projetadas cerejas

colares de coral vivente

em sumo solto abaladas

lágrimas de ferida pungente

o tronco aberto à facada

a ver-se-lhe tudo por dentro:

o coração partido,

as tripas enroladas, os rins decepados

que mal se seguram por um fio

e a seiva vermelho vivo

de cochinilha

que escorre

goma animal nos dentes.

A besta armada de cutelo e machado e punhal

abate abate

abate a velha cerejeira

só para mostrar ao mundo

que tem tomates.

 

Zumbem abelhas à volta dos toros

ensanguentados

e carcomidos dos anos

no chão sem sentidos empilhados

porque as árvores envelhecem

como os amos

e merecem como eles morrer disso.

 

In «Arboreto», em publicação na Arte-Livros, de São Paulo


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