terça-feira, 7 de março de 2023

Nicolau Saião, in Contarelos para mortos vivos

 

3. Vida e aventuras de Jonas P. Clausewitz



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    Na tarde clara Jonas arrotou.

    Era o antes da noite e a cidade, semi-morta, esperava assustada a brisa do mar. Para os lados de Samarcanda, a Outra, Jonas divisava, através do mofo do rio, um brilho estranho de casarios desvairados, um jardim, os ameaços pintados da planície, uma capela enorme e silenciosa, dura, quente. E por debaixo da janela de Jonas, o preclaro, rei dos reis e sábio dos sábios, as folhas sempre sem flores das árvores do seu parque palacial estralejavam como pães de trigo talvez por causa daquele vento que vinha não se sabia de onde.

    Jonas, antes da primeira estrela, levanta-se. A cadeira de prata, aliviada do seu peso, suspira. Mas levemente, mas ternamente, que o peso de Jonas é doirado e de veludo negro as suas calças são. E doce o seu sentar de largos anos.

     O quarto, suspenso, como que amoroso e dado, morno, espia-lhe todos os gestos. E altos são os pensamentos de Jonas, que nele próprio pensa e no seu destino. Como está velho! Os cabelos, até os brancos, desapareceram e no crânio de Jonas, por bondade, uma luz cor de anil depositou os seus ovos e as suas esperanças. E assim é que a cabeça do Preclaro brilha vagarosamente na não-obscuridade.

     No seu princípio, ante o mar e ante a terra, enquanto as palavras que mais tarde – oh quão mais tarde – iriam poisar-lhe na língua limpa como manteiga e dela sair após, Jonas amara o seco roncar do oceano, onde – pensava ele – haviam habitado os seus ascendentes. Ou nele andado haviam, que o povo de Menchu-Pachu, ciente da direcção que oferece a terra a achar, para ela caminhara, mas com norte, e nele saudando o carinho do sol e dos cogumelos em pó. Pois que deles é que vinha a riqueza trágica de Menchu-Pachu, cujas chaves de cera e de bronze nas mãos doces de Jonas repousavam.

 

      Ouro canela marfim florete de espadachim leão jumento segmento de

      prazer ou de tormento raro porque é claro o lembrete do juramento

      como um não e um porque sim.

 

    E eram os pensamentos do Grande Rei que num soprar instantâneo lhe viajavam através das circunvalações, lhe traçavam violências para haver, glórias para estimar, duas crianças ameaçadas por um rouxinol, o divisar de relógios podres na moleza de um salão que Jonas amava, que haveria de amar quando à noite, bem na noite, no meio do palpitar das velas tremulantes da sua câmara de dormir o seu fiel Culhambas até ele viesse e junto ao leito esperasse o seu gesto de olhos, o seu aceno de queixo e depois de ouvir o sapiente ensino das suas palavras para um governo de mestre aguardasse a chegada de Blazina, a por demais amada. Jonas dir-lhes-ia, com a brancura da alegria na sua face mártir, o quanto os relógios todos lhe eram queridos, com os seus minutos lentos e poderosos. Pois não é através deles, da sua marcha por entre as horas esquivas, que a grandeza dos grandes se ademonstra?

     Jonas, sabe-o, não morrerá. Defeso lhe é morrer, vedado lhe será jazer em pedra e em vermes, e nunca no seu corpo rodeado de prantos e cetins repousarão os dentes verdes e agudos de alguém do além-túmulo. Ah mas agora é a morte. Da dúvida, da inquietação dos outros que lá por fora andam, daqueles que pouco sabem e quase nada podem. Que para Jonas é todo seu o dizer para onde - a mais bela das mortes, a da indecisão e da procura de pequenas escusas para os que não encontraram a verdade que é dele e de mais ninguém. O saber para quê, o como e o com certeza, e ficar desta maneira junto à janela, com a silhueta envolta em macia pele de animais do quase polo sul, serenamente, sustentando o seu ardor amado de ser a Lei, a Vida, o Sempre. O ontem e o hoje e o permanente.

    Frente ao rio, lodoso e luzindo como uma flama no horizonte, Jonas arrotou. Saída é a lua, embora a noite espere. E como um traço de cal no céu se firma. E a ele lhe anuncia, Jonas o puro, rei dos reis e sábio dos sábios, o de Menchu-Pachu a loira e a morena, que também na madrugada não cumprida Dona Leonarda virá com Blazina já ida, com o seu silêncio senhoril e sensual sentado num escabelo. E ali ficará até que Jonas, com o gesto do seu queixo, com o vazio ondeante da sua mão, lhe acaricie o ombro vidrado de recordações e de mistérios e sonolências. Antigas, da sua existência vizinhas, comuns e raras.

    Pois de Jonas, o Preclaro, é a sabedoria do mundo que nele achou seu mando. E nele perdurará. Enquanto o Universo rolar para o lado de Altair, o astro de todas as realidades sobrepostas.

    Inteiras, inconquistáveis.   


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