3. Vida e aventuras de Jonas P.
Clausewitz
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Na tarde clara Jonas arrotou.
Era o antes da noite e a cidade,
semi-morta, esperava assustada a brisa do mar. Para os lados de Samarcanda, a
Outra, Jonas divisava, através do mofo do rio, um brilho estranho de casarios
desvairados, um jardim, os ameaços pintados da planície, uma capela enorme e
silenciosa, dura, quente. E por debaixo da janela de Jonas, o preclaro, rei dos
reis e sábio dos sábios, as folhas sempre sem flores das árvores do seu parque
palacial estralejavam como pães de trigo talvez por causa daquele vento que
vinha não se sabia de onde.
Jonas, antes da primeira estrela,
levanta-se. A cadeira de prata, aliviada do seu peso, suspira. Mas levemente,
mas ternamente, que o peso de Jonas é doirado e de veludo negro as suas calças
são. E doce o seu sentar de largos anos.
O quarto, suspenso, como que amoroso e
dado, morno, espia-lhe todos os gestos. E altos são os pensamentos de Jonas,
que nele próprio pensa e no seu destino. Como está velho! Os cabelos, até os
brancos, desapareceram e no crânio de Jonas, por bondade, uma luz cor de anil depositou
os seus ovos e as suas esperanças. E assim é que a cabeça do Preclaro brilha
vagarosamente na não-obscuridade.
No seu princípio, ante o mar e ante a
terra, enquanto as palavras que mais tarde – oh quão mais tarde – iriam
poisar-lhe na língua limpa como manteiga e dela sair após, Jonas amara o seco
roncar do oceano, onde – pensava ele – haviam habitado os seus ascendentes. Ou
nele andado haviam, que o povo de Menchu-Pachu, ciente da direcção que oferece
a terra a achar, para ela caminhara, mas com norte, e nele saudando o carinho
do sol e dos cogumelos em pó. Pois que deles é que vinha a riqueza trágica de
Menchu-Pachu, cujas chaves de cera e de bronze nas mãos doces de Jonas
repousavam.
Ouro
canela marfim florete de espadachim leão jumento segmento de
prazer ou de tormento raro porque é claro
o lembrete do juramento
como um não e um porque sim.
E eram os pensamentos do Grande Rei que num
soprar instantâneo lhe viajavam através das circunvalações, lhe traçavam
violências para haver, glórias para estimar, duas crianças ameaçadas por um
rouxinol, o divisar de relógios podres na moleza de um salão que Jonas amava,
que haveria de amar quando à noite, bem na noite, no meio do palpitar das velas
tremulantes da sua câmara de dormir o seu fiel Culhambas até ele viesse e junto
ao leito esperasse o seu gesto de olhos, o seu aceno de queixo e depois de ouvir
o sapiente ensino das suas palavras para um governo de mestre aguardasse a
chegada de Blazina, a por demais amada. Jonas dir-lhes-ia, com a brancura da
alegria na sua face mártir, o quanto os relógios todos lhe eram queridos, com
os seus minutos lentos e poderosos. Pois não é através deles, da sua marcha por
entre as horas esquivas, que a grandeza dos grandes se ademonstra?
Jonas, sabe-o, não morrerá. Defeso lhe é
morrer, vedado lhe será jazer em pedra e em vermes, e nunca no seu corpo
rodeado de prantos e cetins repousarão os dentes verdes e agudos de alguém do
além-túmulo. Ah mas agora é a morte. Da dúvida, da inquietação dos outros que
lá por fora andam, daqueles que pouco sabem e quase nada podem. Que para Jonas
é todo seu o dizer para onde - a mais bela das mortes, a da indecisão e da
procura de pequenas escusas para os que não encontraram a verdade que é dele e
de mais ninguém. O saber para quê, o como e o com certeza, e ficar desta
maneira junto à janela, com a silhueta envolta em macia pele de animais do
quase polo sul, serenamente, sustentando o seu ardor amado de ser a Lei, a
Vida, o Sempre. O ontem e o hoje e o permanente.
Frente ao rio, lodoso e luzindo como uma
flama no horizonte, Jonas arrotou. Saída é a lua, embora a noite espere. E como
um traço de cal no céu se firma. E a ele lhe anuncia, Jonas o puro, rei dos
reis e sábio dos sábios, o de Menchu-Pachu a loira e a morena, que também na
madrugada não cumprida Dona Leonarda virá com Blazina já ida, com o seu
silêncio senhoril e sensual sentado num escabelo. E ali ficará até que Jonas,
com o gesto do seu queixo, com o vazio ondeante da sua mão, lhe acaricie o
ombro vidrado de recordações e de mistérios e sonolências. Antigas, da sua
existência vizinhas, comuns e raras.
Pois de Jonas, o Preclaro, é a sabedoria do
mundo que nele achou seu mando. E nele perdurará. Enquanto o Universo rolar
para o lado de Altair, o astro de todas as realidades sobrepostas.
Inteiras, inconquistáveis.
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