segunda-feira, 13 de março de 2023

PÓRTICO

 

IN MEMORIAM DE ANTÓNIO SALVADO

         (Castelo Branco, fevereiro 1936 março 2023)       





 Há, neste acervo, um verso que a meu ver descreve com exactidão o mundo da escrita de António Salvado: “só a natureza purifica os sons”, diz ele a dada altura no poema dedicado a Claudio Rodriguez. (Claudio Rodriguez, sublinho, ou seja: um dos poetas europeus onde a natureza se confrontou decisivamente com os sons duma modernidade assumida, reencaminhada nos troços vicinais de um continente que não perdera de vista a claridade da Grécia mas sabia ser impossível não a tentar reconverter através do mergulho achado em Rimbaud e Dylan Thomas).

  Poeta da natureza, António Salvado? Sim, mas também da linguagem que a certifica, perpassa e ultrapassa. Conhecedor dos clássicos, sempre soube viajar – como fica patente nesta pequena antologia – pela comovida desconstrução da escrita.

   E, assim, é um contemporâneo tanto dos que se foram como de todos os outros que a seguir irão vindo.

     Por último e ainda no continente da Poesia, gostaria de relevar o trabalho incontornável de A.S. enquanto tradutor – e dou ao termo trabalho, aqui, o seu exacto perfil e conteúdo não só de labor mas de encantamento partilhável, uma vez que é disso que se trata: ser António Salvado, como a meu ver tem sido, o poeta do seu poeta vertido em português sem jaça e com o ritmo próprio e a figura de quem escreve como se em língua lusa este escrevesse. - ns

 

CASA DO AMOR


Foi nas perenes coisas que aprendi

a ser: a casa do amor cercada

de ruas que subiam junto ao fim

do céu que sempre mais se prolongava,

 

de longos mudos maternais jardins

onde as eternas flores eram lagos

de fragrância ofegante colorida

e os lagos sol em água mergulhado.

 

E nela: o pão cantado sobre a mesa,

a bilha da ternura a renascer,

a pureza do linho a dedilhar

as palavras nos lábios entoadas…

 

deito longe a saudade: permanece

a casa do amor, em mim, perene.

 


MEDITAÇÃO

                             (à memória de Claudio Rodriguez)

 

Dos olhos e das mãos brotam as coisas:

inocentes paisagens onde a vida

e a morte se insinuam e comprazem.

Feitas indagação, elas entregam

- mesmo longínquas – o fluir constante

do sangue atravessando o pensamento.

De há muito que o sabemos caminhando:

somente a natureza purifica os sons

da chama inviolável que destrói

enganos: uma flor desabrochada,

rapariga na curva do distante,

calor do oiro na melancolia.

Daí, que a claridade estenda os braços

a resvalar-se à voz: e invada os veios

exaltados da pureza   e bafeje

para que ouçamos dela o sussurrar,

como um astro súbito   inesperado,

como a verdade plena de harmonia.

Em segredo, o pulsar do coração

traça novos destinos entre areia,

reconstruindo a casa à beira do abismo

solidifica a água das correntes.

Em segredo. Os olhos abrem-se mais

e as mãos, hirtas p’lo frio passageiro,

modelam outro espaço e outro tempo

para que o canto seja eternidade.

 

 

ANOS SE LEVA


Anos se leva a descobrir a pátria:

a terra onde existir   p´ra sempre a salvo,

o barro que há-de    modelar a alma,

a língua a ser sabida   a ser falada.

 

E que os rios e serras e que mares

e que cidades grandes    ou lugares,

que plantas  animais   vão habitar

essas paisagens virgens   a brotarem.

 

Porque o amor - uma conquista lenta -

precisa de passado e de presente

quando constrói os elos do futuro;

 

que a pátria seja    em ânsia   toda a gente -

de mãos nas mãos   e olhos indif´erentes

a quem não queira partilhar o fruto.

 

António Salvado


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