segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Joaquim Saial, O Bob é um chato

 




Estão ali na estante,

juntinhos uns aos outros,

os meus 32 CD (até agora) do Bob.

Isto, para além do único vinyl,

o fabuloso "The Times They Are A-Changin'"

que me fez querer ter umas botas de couro espanhol

que afinal saíram de vaca portuguesa,

raios, muito mais feias que as dele.

 

Ah! ah! ah!, aquela cara de carneiro mal morto

e aquele boné em bico do primeiro disco,

superados pela ternura da capa do segundo,

com a Suze Rotolo prestes a deixá-lo

e que eu só soube quem era décadas depois.

O par enlaçado, no frio gélido da cidade,

parecia falar de seu amor,

de facto em roda livre (ou coisa parecida),

como o título anunciava.

 

E depois todos os outros discos

(que pena faltarem-me uns quantos)

que não cito, para não parecer pedante,

até ao meu último, o das sombras nocturnas,

com autorias de Sinatra, Prévert, Berlin, Gillespie e outros.

Valente, o Bob a cantar de crooner

e uma América tão americana na sua voz

e tempos passados a chegarem aos meus ouvidos

e eu a pensar "Estás em forma, pá!"

E ele sem querer saber de mim,

nada ralado com o que penso…

 

E as histórias, tantas, dele?

O desastre de mota que lhe nasalou a voz,

os negócios esquisitos de armas,

as zangas dos parceiros da folk

provocadas pela rebeldia iconoclasta

da sua guitarra eléctrica Fender Stratocaster

que usava como se fosse um misto de metralhadora e harpa

e os puristas a julgarem por erro

que ele se chamava Bob Guthrie…

 

Mas era só o Bob e sempre foi o Bob,

Antes, depois e sempre, sempre foi o Bob.

Nem Zimmerman ele quis ser, só Bob e Dylan,

o rapaz de Duluth, Minesotta.

 

O Bob envelheceu comigo (ou eu envelheci com ele).

Aqui em casa, aparece-me a toda a hora,

como um amigo de sempre que vem beber um copo

de manhã, pela hora do café,

às cinco da tarde, tempo de touros e gin,

ou à noite, acompanhando-me na escrita,

em poemas como este, feito com ele.

Ou ouvindo-o no seu programa de rádio

que começa com a voz doce da locutora

"It's night time in the big city…"

e depois continua com a dele,

apresentando a América

mais teluricamente musical que existe,

escolhida por ele,

bem escolhida,

a dedo,

por ele.

 

Ei-lo agora a cantar aqueles cinco minutos de "Duquesne Whistle"

e o balanço a fazer-me ondular na cadeira,

acompanhado pela bateria do Tony Garnier.

E penso: Bob, és o maior,

mas és um grande, grande chato,

ó bolas, és sim, um chatarrão.

Que parva ideia aquela de falhares o recebimento do Nobel,

que tontice descabida.

Que chato, que chato que és.

É pá, não se faz!...

Ninguém te entendeu, ficaste mal visto

e a pobre da Patty até se enganou

no "Hard Rain's A-Gonna Fall"

e olha que te representou mais que bem

mas ela sabia que eras tu

quem ali devia estar.

A tua amiga sabia.

E tu fintaste-nos,

meu sacana.

Que fiasco, tu, nesse dia, que fiasco!...

Não há dúvida, és um grande chato, Bob,

Aquilo não se faz…

 

E depois vieste a Lisboa

e esgotaste a sala dita "de gladiadores".

Mas não disseste ao pessoal nem "Hello!" nem "Goodbye!"

E eu que estive para te ir ver…

Ainda bem que me cortei à última hora,

pois se tivesse ido, mandava-te um assobio,

era limpinho.

 

Pfttt!, Bob, és um grande chato.

 

Mas, mesmo assim, Bob,

és o maior.


Do livro “Poemas para a Hora de Ponta”, de Joaquim Saial

Ed. Cordel d’Prata, Carnaxide, 2020

1 comentário:

  1. Tanta coisa boa (e chata) nesta poesia que nos (re)lembra quanto velhos (gastos) estamos (que chato que é)

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