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Seria fácil imaginar um tigre a comer erva, assim como um cordeiro a
engolir a pitança. Todavia… Todavia estou a lembrar-me, ao calhar dos minutos,
daquela célebre hipótese de Mark Twain: “Se
Moisés não tivesse existido, teria existido decerto outro indivíduo com o mesmo
nome”. E funções, evidentemente, acrescento de minha lavra. Aqui, entra
Chesterton em cena, peso-pesado das metafísicas ligeiras mas reconfortantes:
“Eu nunca minto, a não ser que seja absolutamente necessário”. Pois, é como
na História não reciclada pelos descendentes ou herdeiros de Walt Disney. Velha
mania de ocupar os lugares todos, de
preencher o tal vazio assustador dos metafísicos? Ou apenas sensatez suficiente
para que saibamos, definitivamente, que onde está um baú não pode estar uma
cadeira de baloiço, assim como onde está um inteligente não podem estar sete
idiotas?
Em trocos miúdos: o que se aponta é de facto para o simulacro da “hybris” revista pelos sucessivos Concílios.
Esses tais que nos quebraram a cara como o faria um soco de pugilista
desempenado, sem que no entanto em simultâneo nos tratassem da alma que como se
sabe se multiplica nas celestes moradas em graus de aperfeiçoamento singular.
Questão intemporal de ascensões no etéreo, digamos, ou de quedas corporais. Ou,
melhor ainda, o apelo fascinado de certos mundos paralelos que nos oferecem a
ciência e a religião oficializadas, certas paisagens serenas ou infernais cuja
traça se ergue para logo se desmoronar, como em Hollywood.
Aqui entre nós, que pouca gente nos escuta: quem é que não sonhou ainda
em mudar de rota, uma vez por outra, mesmo sabendo que o ser-se isto implica
necessariamente não se ser aquilo, sendo a Vida como é (ao que alguns dizem com
sensatez maldosa) não propriamente uma escolha mas a impossibilidade de se
terem dois destinos?
Com o que, pelo que, conclui-se sem mais
demoras que um tigre a comer erva só nos anúncios da margarina Custódio ou do
automóvel Tortilha. Ou nas estórias da Carochinha que os malabaristas da coisa
pública, finamente, nos distribuem pelas rádios e têvês.
Digamos com certa inocência, como nas doces festas de anos de antanho:
saibam lá vossências que há pouco tempo atrás um sábio que é também robusto
memorialista – trata-se de François Jacob – assinalou que a existência mais
parece coisa de biscateiro que de engenheiro, mesmo genético. As somas
eventuais não apagam nem destroçam e muito menos repelem o já construído. É no
género do “Blade Runner” ou dos fabulosos bricabraques de Tinguely. Coisa de
truz – e eu fico-me um bocado a rir das tiradas dos que compenetradamente
afirmam nos media que estão muito
atentos e um pouco trémulos ante a possibilidade de se multiplicarem em
provetas os hitlers, os stallones e outros hermanjosés. Mas não foi sempre a
sociedade, além da ciência e das técnicas que lhe estão nos arrabaldes, uma
perigosa brincadeira? Se no próprio laboratório do Éden, onde os elohins
oficiavam… - mas deixemos isso por ora.
Creio que fará sentido concordar com Thomas Mann quando este refere, nos
intervalos do seu sonho montanhês, que ao nível das concreções superiores
existe como que uma actuação alquímico-hermética do coração humano, uma
renovação de todas as fibras do ser que nos força a ir em busca do conhecimento
capaz de nos fazer compreender que os passeios pelas margens dos rios, as idas
ao cinema ou ao circo de mão na mão, o acordar no azul penumbroso dum quarto às
três da tarde ou às quatro da manhã são o equivalente de coisas que a mística
só pode explicar de forma aproximativa. (Dantes agia-se de forma expedita e
suave: calabouço com eles e uma eventual passagem pelas brasas). E talvez faça
sentido, também, meditar nesta frase de Nietzsche que, como num espelho mágico,
nos diz lá do fundo: “Há alguns que nunca se tornam doces e apodrecem mesmo no
Verão. Só a cobardia os sustenta no ramo”. E antes de entrarmos no fato bem
passado da angústia existencial, vistamos por baixo uma camisola barata de
senso comum: “Quando eu tinha vinte anos,
diziam-me: hás-de ver quando tiveres quarenta anos! Pois bem: tenho quarenta
anos - não me mostraram nada”. (Benjamin Péret).
Venham cá dizer-me que a metafísica é uma serena imanência! Não os
acreditarei, com mil bombas. Seja no masculino ou no feminino. Porque os deuses
têm cara de tarráqueos nestes tempos que vão correndo. Quer dizer; antes de
subirem aos céus experimentam em nós os seus destinos; não falando - porque
isso dá excomunhão mais ou menos democrática - no cultivo intensivo e na
intensa proliferação de santos, aspecto que não será de desconsiderar. Na
verdade é tudo uma questão de símbolos.
Eis senão quando que Gilgamesh, por causa das vozes de sempre (já com
Joana d’Arc irá ser alegadamente o mesmo incómodo) se decidiu a tomar da capa e
do porrete e abalar para o deserto. Ia em busca da flor azul, como nos contos
de fadas? Parece que não, o que estava em causa era tão só a imortalidade e não
a saúde e a cura por extenso (úlceras, cegueira, tiro de pistola no flanco,
enfarte de miocárdio). E então deu-se que Enkidu, ser primordial e selvático,
inocente como um padre cura do breviário, lhe apareceu pela frente – os braços
peludos de atleta, os olhos de vedeta das matinés adolescentes, a naturalidade
de futebolista ferrabraz, a figura talhada ao jeito das fitas de Spielberg… e
foi o coup de foudre conforme reza
nas tábuas de barro. Coisa mística, de resto, como nos conta a seguir um velho
papiro (apócrifo?). Saborosa e interdisciplinar.
Contudo…
Contudo,
como já cá se ficou sabendo, os cordeiros não comem carne e os tigres muito
menos tasquinham a ervinha tenra. Gilgamesh, algo ingénuo e estupefacto, viu
aparecer de chofre coisas adustas no corpinho empolgado de Enkidu: tinha de se
render à evidência, a metafísica às vezes fica claramente ultrapassada pelas
circunstâncias do momento em tempo real, a filosofia e os textos pré-diluvianos
são muito bonitos mas não servem, de todo, em determinadas ocasiões: Gilgamesh,
com a personalidade enrodilhada, as roupas num farrapo, começou a perceber que
Enkidu não era tão angélico e abstracto como nas ficções, mais parecia um gigolo do Parque Mayer, a braguilha
desapertava-se-lhe em alturas muito impróprias e um arfar suspeito punha-se a
trabalhar como um motor de avioneta. Gilgamesh concluiu então que os mitos são
coisa fina mas não safam a virtude de um homem de brios, co’os diabos. Tratou,
rapidamente, de se pôr a andar enquanto dizia de si para si que é inútil um
zé-maria enlear-se no golpe da mágica/mitológica compreensão absoluta com um
zé-antónio, porque então o zé-antónio transforma-se noutro zé-maria e tudo
volta ao princípio.
Circular, como nas fábulas iniciáticas. De sorte que o nosso herói, já
com a escolaridade pessoal toda empinadinha, aprofundou-se finalmente pelo
rosto da deusa, que mais adiante no relato o esperava a pé firme. “Será este
pois o sentido da Estória que se conta depois do repouso do Senhor, quando Adão
viu, entre assustado e divertido, o pirilau crescer com denodo ao contemplar o
fruto da sua costela?” perguntará, do lado, o leitor com ironia.
Na verdade, o andrógino inicial é coisa com certa piada, talvez, mas só
faz sentido nos contos de proveito e exemplo mediante os quais se chega a
conclusões diametralmente opostas consoante se for anjo ou demónio. Enoch sabia
disso (e era esta a sabedoria dos antigos escribas, que só por irrisão se
crismariam de hipnotizados. Adiante). O que realmente faz brilhar as pupilas da
existência, essa existência séria que o grande Humboldt tão bem escrutinou, é o
facto de haver opostos com a autonomia que dá origem às novelas surpreendentes.
De resto, não. E foi nisto certamente que o Alfa-Ómega pensou, ele que é
princípio e meio e parece que não tem fim e que, experiente até mais não, tem
para além dos limites a legítima lábia e o conhecimento da matéria.
Mas seria, com franqueza, de esperar coisa diferente? Como dizia outra
vez Chesterton, depois de ter relanceado a lady
do distrito de Belgravia com olho maroto, “Os amores platónicos, como todos
os tónicos, são apenas um estimulante”. Se não acreditam, vão perguntá-lo a
Gilgamesh.
À Deusa, quer-se dizer…
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