segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Recordando...

 

Um poema de

Carlos Garcia de Castro






OS MELROS

 

A tarde já está branca, e então os melros

voam de novo com os seus estalidos.

Gosto de vê-los, quase nunca falto,

a qualquer hora quando penso em mim.

Mas não me salta nunca cá de dentro

um ser de forma alada, tracejante,

ao gosto dos poetas competentes

e das mais gentes tidas nesse gosto.

Esta a surpresa repetida e calma

da liberdade no voar dos melros.

Que os melros são reais e são concretos

na sua zoologia – sem poetas.

Ainda que banal, não imagino

que se reparta o coração num pássaro

a saltitar disperso nas ramagens.

É meu dizer de mim que sempre tive

– mais homem que poeta, ambos vulgares,

vida e saber sem mais comparações.

Porque um poeta como eu, ingénuo,

não tem ideias nem pesquisas únicas,

é incapaz de conceber os pássaros,

limita-se a dizer que existem pássaros

quando o que vê são na verdade os pássaros.

Assim banal, disfarço a velha imagem

dos outros imitando um coração,

fingida a fantasia que há nos pássaros.

 

Agora com os melros, isso não!

 

Com estes melros não, porque são meus,

voam de novo à tarde com estalidos,

levam no bico um cibo do quintal,

e este quintal é meu – e destes melros.

Gosto de vê-los, quase nunca falto,

 a qualquer hora quando penso em mim.

 

Mais homem que poeta, ambos vulgares,

o meu dizer dos melros já deixou

de ser um sentimento, é crueldade.

Passava bem sem eles no quintal,

mas tenho medo de os deixar de ver.

 

Quando será que um pássaro se alastra

para existir à tarde – com surpresa?

 

Agora tenho de pensar em mim.

Aos melros tanto faz, quando eu faltar.


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