Carlos Garcia de Castro
(12 de Novembro de 1934 -13 de Novembro de 2016)
PARA A MADEIRA
Rasgada a árvore, a fímbria é de veludo,
desde a raiz ao galho, o mais discreto.
Todo o machado, toda a serra cortam,
suor de seiva às ordens para as lareiras,
olhos dos montes, cadelinhas fixas,
fazem-se mochos para assentar as cruzes.
Os ossos se aliviam no buinho.
A mão do homem sofre, é dolorosa,
mas é precisa já a tábua erecta
para a cama e para as cadeiras, para a mesa
do pão que dá sossego – amor e sorte.
À boca dos caixões se traz farinha,
que é basto o lavrador na salgadeira,
tem os barrotes com fumeiro alado.
Pele inocente que a garlopa alisa
às linhas e às fissuras do graminho.
Formão e escopro, goivas, uma enxó,
as mãos se fazem de martírios ágeis
para os instintos de morrer na cama,
à beira das portadas, das janelas.
E ao lusco-fusco do fazer dos filhos,
a paridura os dá com seu destino
no berço que é redondo, pau de azinho.
– Eis o mistério das madeiras limpas.
GAJO
PORREIRO
Não me
convinha, se morresse agora.
– Quem é
que havia de levar o carro
para
transportar para casa as nossas compras?
A dor
chorada é sempre precisada,
nós não
choramos só por nossa conta,
mas é por
nossa conta que choramos.
– Quem é
que havia de levar o carro
para
transportar para casa as nossas compras?
Não me
convinha, se morresse agora.
Faz
sempre falta quem não faz mais nada
das
frágeis miudezas e chatices,
pequenas
nicas úteis dispensáveis
que ao
dia-a-dia dão sustentação.
Faz
sempre falta alguém assim em casa
que pouco
faz mas sempre vai fazendo,
como num
Quadro o seu caixilho à volta,
tão
supletivo, secundário, inútil,
que o
Quadro faz mais vista se o tiver.
As casas,
nos seus móveis, corredores,
nos seus
lugares à mesa, ajustamentos,
arrumações,
cuidados, diligências
que até
numa toalha são sinal
de bem
dobrada para não dar trabalho,
trazem
indícios do morrer de alguém
que de
manhã ligava o esquentador,
nunca
esquecia as chaves , e à noitinha
baixava
as persianas das janelas.
Alguém
assim faz falta quando morre,
porque
não pode já deixar recados,
não vai
de companhia fazer compras,
não vai
levar nem já buscar amigos …
… e
agora! que fazer àquele carro?
… quem
vai agora já escolher os vinhos?
… quem é
que tem mais ditos para as visitas?
… e o IRS,
as contas, pagamentos?
… quem vai à Caixa levantar dinheiro?
– tudo
tão simples, de ansiedade e fluido,
mulher e
filhos também são tarefas
de ir ao
vidrão e lá deitar garrafas…
… fazer
rascunhos e escrever à máquina
… deitar lá fora o lixo, ir aos Correios.
Alguém do
nada, só morrer faz falta.
A dor
chorada é sempre precisada.
Ninguém
faz nada, é sempre alguma coisa,
porque ao
morrer, essencial canseira,
figura
que já foi destes cuidados
persiste
como um quadro de Pintura
ali
deixado sem o seu caixilho.
Uma
existência vale mais que as artes,
mesmo que
o Quadro fique sem caixilho.
Para o
mesmo Quadro façam mais molduras,
interessa
mais o Quadro que o caixilho…
… mas não
se esqueçam de levar o carro,
e é já
para o ano, ao posto de Inspecção.
Alguém
será capaz de o conduzir.
*
Poeta,
memorialista e ensaísta, nasceu em Portalegre em
1934. Licenciado em Ciências Históricas e Filosóficas, foi professor dos
Liceus, de onde, na área das Ciências da Educação, ingressou no quadro da
Escola do Magistério Primário de que foi director de 1976 a 1989. Transitou
para o quadro da Escola Superior de Educação como director do Centro de
Recursos e Animação Pedagógica. Leccionou cursos de especialização;
aposentou-se dessa Escola na categoria de professor adjunto. Foi
sócio-fundador da CERCIPORTALEGRE (Cooperativa para a Educação e
Reabilitação de Crianças Inadaptadas). Estatuiu o Ensino Pré-Escolar oficial em
Portalegre.
Publicou Cio (1955); Terceiro
Verso do Tempo (1963); Portus Alacer (1987); Os
Lagóias e os Estrangeiros (1992); Rato do Campo (1998); Gloria Victis, não-poemas (2007); Loja, contraloja e armazém (memórias,
2011) e, antes deste, a
antologia Fora de Portas na Editorial
Escrituras, de São Paulo (Brasil).
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