quinta-feira, 21 de maio de 2020

Antologia


Carlos Garcia de Castro
(12 de Novembro de 1934 -13 de Novembro de 2016)



PARA A MADEIRA

Rasgada a árvore, a fímbria é de veludo,
desde a raiz ao galho, o mais discreto.

Todo o machado, toda a serra cortam,
suor de seiva às ordens para as lareiras,
olhos dos montes, cadelinhas fixas,
fazem-se mochos para assentar as cruzes.

Os ossos se aliviam no buinho.

A mão do homem sofre, é dolorosa,
mas é precisa já a tábua erecta
para a cama e para as cadeiras, para a mesa
do pão que dá sossego – amor e sorte.
À boca dos caixões se traz farinha,
que é basto o lavrador na salgadeira,
tem os barrotes com fumeiro alado.
Pele inocente que a garlopa alisa
às linhas e às fissuras do graminho.
Formão e escopro, goivas, uma enxó,
as mãos se fazem de martírios ágeis
para os instintos de morrer na cama,
à beira das portadas, das janelas.
E ao lusco-fusco do fazer dos filhos,
a paridura os dá com seu destino
no berço que é redondo, pau de azinho.

– Eis o mistério das madeiras limpas.


GAJO PORREIRO

Não me convinha, se morresse agora.

– Quem é que havia de levar o carro
para transportar para casa as nossas compras?

A dor chorada é sempre precisada,
nós não choramos só por nossa conta,
mas é por nossa conta que choramos.

– Quem é que havia de levar o carro
para transportar para casa as nossas compras?

Não me convinha, se morresse agora.

Faz sempre falta quem não faz mais nada
das frágeis miudezas e chatices,
pequenas nicas úteis dispensáveis
que ao dia-a-dia dão sustentação.
Faz sempre falta alguém assim em casa
que pouco faz mas sempre vai fazendo,
como num Quadro o seu caixilho à volta,
tão supletivo, secundário, inútil,
que o Quadro faz mais vista se o tiver.

As casas, nos seus móveis, corredores,
nos seus lugares à mesa, ajustamentos,
arrumações, cuidados, diligências
que até numa toalha são sinal
de bem dobrada para não dar trabalho,
trazem indícios do morrer de alguém
que de manhã ligava o esquentador,
nunca esquecia as chaves , e à noitinha
baixava as persianas das janelas.
Alguém assim faz falta quando morre,
porque não pode já deixar recados,
não vai de companhia fazer compras,
não vai levar nem já buscar amigos …
… e agora! que fazer àquele carro?
… quem vai agora já escolher os vinhos?
… quem é que tem mais ditos para as visitas?
… e o IRS, as contas, pagamentos?
 … quem vai à Caixa levantar dinheiro?
– tudo tão simples, de ansiedade e fluido,
mulher e filhos também são tarefas
de ir ao vidrão e lá deitar garrafas…
… fazer rascunhos e escrever à máquina
 … deitar lá fora o lixo, ir aos Correios.
Alguém do nada, só morrer faz falta.
A dor chorada é sempre precisada.
Ninguém faz nada, é sempre alguma coisa,
porque ao morrer, essencial canseira,
figura que já foi destes cuidados
persiste como um quadro de Pintura
ali deixado sem o seu caixilho.

Uma existência vale mais que as artes,
mesmo que o Quadro fique sem caixilho.

Para o mesmo Quadro façam mais molduras,
interessa mais o Quadro que o caixilho…

… mas não se esqueçam de levar o carro,
e é já para o ano, ao posto de Inspecção.

Alguém será capaz de o conduzir.      
     
                                                      *
    Poeta, memorialista e ensaísta, nasceu em Portalegre em 1934. Licenciado em Ciências Históricas e Filosóficas, foi professor dos Liceus, de onde, na área das Ciências da Educação, ingressou no quadro da Escola do Magistério Primário de que foi director de 1976 a 1989. Transitou para o quadro da Escola Superior de Educação como director do Centro de Recursos e Animação Pedagógica. Leccionou cursos de especialização; aposentou-se dessa Escola na categoria de professor adjunto.  Foi  sócio-fundador  da CERCIPORTALEGRE (Cooperativa para a Educação e Reabilitação de Crianças Inadaptadas). Estatuiu o Ensino Pré-Escolar oficial em Portalegre.  
    Publicou Cio (1955); Terceiro Verso do Tempo (1963); Portus Alacer (1987); Os Lagóias e os Estrangeiros (1992); Rato do Campo (1998); Gloria Victis, não-poemas (2007); Loja, contraloja e armazém (memórias, 2011) e, antes deste, a antologia  Fora de Portas na Editorial Escrituras, de São Paulo (Brasil).
                                                       (Ver texto de análise e mais poemas aqui)

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