segunda-feira, 25 de maio de 2020

Vincenzo Quillici ou a doçura sufocada



Nicolau Saião, Para Quillici

    Conheci Vincenzo Quillici em Junho de 99, aquando da minha estadia em Paris e em Bruxelas para lançar na Livraria Lusófona, frente à Sorbonne (e, a seguir, numa galeria da capital belga que tinha o ambiente dos contos de Jean Ray) o meu livro de poemas “Flauta de Pan”.
   Chamou-me a atenção aquele homem que se mantivera ligeiramente à parte da assistência luso-francesa enquanto o apresentador, depois um confrade e, finalmente, eu mesmo debitavámos com o melhor esmero as nossas orações de sapiência…Usava um chapéu de abas largas e uma gravata fina à Gary Cooper, serve dizer: daqueles objectos ornamentais tão usuais nos filmes dos anos 50 com que os dandys pistoleiros criavam o seu pessoal cenário de elegância…
   Mais tarde, soube que não o fazia para se singularizar, mas apenas porque amava a fantasia percorrida por um senso-de-humor inteiramente partilhado com os amigos e as outras pessoas em geral.
   Disse-me que viera ali para me contactar; pois, encontrando-se em Paris, amigos comuns lhe tinham dado a notícia do evento e a localização da funçanata.
   Finalizámos o encontro, já tarde na noite, em frente de umas canecas de cerveja irlandesa, perto da Rua do Rivoli, acompanhadas de filetes de vitela. Quillici comia com apetite e com uma espécie de concentração a que eu chamaria artística: por duas vezes, ao que recordo, solicitou ao empregado que deixasse a espuma da preciosa bebida um pouco acima das bordas, pois ficava mais sugestiva…mais apetitosa.
   Ao despedir-se, deixou-me nas mãos uma pequena brochura contendo dezasseis estorinhas que classificarei de surpreendentes e apelativas, em vista do seu específico humor negro tranquilo e sedutor, mas que eu também diria percorridas por uma evidente melancolia.
   Desse livrinho, que depois ampliaria principalmente por incitamento de Maria Darmyn, com quem entretanto contraíu matrimónio, extraí e traduzi três relatos de que aqui vos deixo o primeiro, com agradecimentos e um abraço ao seu autor.

       O FLIBUSTEIRO
   Foi um pouco antes do jantar, depois de vir do escritório, que o Basile teve a certeza de que era cornudo.
Era uma segunda-feira. Basile – Basile Cambon, como o grande homem de Estado – saía sempre depois de todos os empregados se despacharem. A menina Capitoline, a dactilógrafa e recepcionista, dissera-lhe como sempre com os seus olhinhos de carneiro mal-morto: “Quer que feche, senhor Basile?”. E ele, como sempre, respondera: “Não, deixe estar. Vá andando que eu depois fecho tudo”. Toda a gente, desde o Rimet, o estarola que também fazia as vezes de caixeiro-viajante quando calhava, até à madame Sidonie, que a Casa herdara da anterior gerência, sabia que ela estava apaixonada por Basile, mas ele só se servia disso para lhe atirar para cima do lombo uns leves trabalhitos inadiáveis. Também toda a gente sabia que o patrãozinho Cambon, sucessor do velho Ignace, gostava muito da esposa, a dona Renate filha dos Blondine das ourivesarias. Nem constava que ele se desalinhasse até quando ia, o que aliás depois do casório se tornara muito raro, aos serões das Folie Bergères.
Às vezes até se davam ao trabalho de falar no casal perfeito que eram Basile e Renate.
Comeu a refeição quase em silêncio. De vez em quando, entremeado na escassa conversa, um olhar saltava em direcção à face da esposa, que com os lábios vermelhinhos e os cabelos arruivados aguentava muito bem uma segunda e até uma terceira mirada. E o peitinho de rola até lhe arfava, ela que era dada a fagueirices como Basile muito bem sabia.
Aí por volta da sobremesa, Basile percebeu quem era o destruidor do seu lar: o Patrice, evidentemente, o tal que nas festas de aniversário, de Carnaval e de antigos alunos do liceu tinha o hábito de pôr um monóculo e de imitar o Maurice Chevalier e o Coluche. Um tunante, é claro, mas sabe-se como as senhoras românticas se pelam por tal género de energúmenos.
Ainda tentou dizer para si mesmo que ninguém iria reparar, que tal coisa era na cidade o pão-nosso de cada dia, que muitos dos seus conhecidos também participavam de tal estatística. Mas nada o consolava. Sentira assim como uma cabeçada no plexo solar e, quando passara a Renate a tacinha da compota, até as mãos lhe tremiam.
Com a classe herdada de seu pai, um homem honrado dos pés à cabeça, fez que não reparava na evidência da traição. Mas o coração estalava-lhe de comoção camuflada.
Foi para o escritório sem dar sequer uma palavra à esposa, que aliás nem se deu conta do gesto: pairava é claro noutros universos e o nariz reluzia-lhe sem embaraços.
Passou as mãos pelos seus velhos livros, seus companheiros de aventura. Do armário tirou os calções de pano grosso, o casacão de alamares, o chapeirão e o sabre. Ajustou, depois de bem enfarpelado, o par de pistolões em cruz no cinturão largo de couro com a grande fivela de prata. O papagaio estava, como sempre, no poleiro da cozinha: foi só tirá-lo de lá e colocá-lo sobre o ombro.
Estava pronto. Desceu ao quintal, o quintal grande e arborizado que a mãe Cambon tanto ornamentara e melhorara. Acenou para o seu imediato, com a larga mão aberta, o sinal de zarpar. E desta vez é que já não voltaria.
Assim como assim, afinal, no fundo nunca gostara muito de Paris.

  *

Vincenzo Quillici (França, 1967). Poeta e contista. Fez parte do brilhante círculo de jovens autores que agregou, para além dele, os poetas Marcel Delpach e Jules Morot, o pintor/ensaísta Jacques Tombelle e a musicista Maria Darmyn. Professor agregado num estabelecimento de ensino na Gardanne (Provença), deu a lume poemas avulsos e “Recits du parc”, pequenas histórias do quotidiano onde brilha uma crueldade terna e desenvolta.  

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