quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Antologia - Hoje José Régio

 



Para o melhor conhecimento de Régio


O autor de “Davam grandes passeios aos domingos” (que tem Portalegre não só como pano de fundo mas mesmo, diria eu, como “protagonista”) um dos carácteres mais singulares das letras portuguesas, nasceu como é sabido em Vila do Conde (1901) e aí faleceu de ataque cardíaco em 1969. Poeta, dramaturgo, romancista, contista, ensaísta e pensador mas também pintor nas suas horas e coleccionador antiquário de destaque, foi de igual modo uma significativa figura cívica, tendo participado activamente na oposição à ditadura salazarista. Viveu muitos anos na cidade alto-alentejana a exercer a sua tarefa de professor liceal, sendo por isso que nela existe uma Casa-Museu com o seu nome - sediada precisamente na “Velha Casa”.

Fui durante 14 anos - até me aposentar - o funcionário responsável pelo Centro de Estudos que lhe está anexo.

Devido a este facto, acrescentado à minha condição de publicista, debrucei-me ao longo dos tempos sobre a sua vida, nomeadamente sobre as relações epistolares e literárias que manteve com escritores brasileiros como Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Ribeiro Couto (que o visitou numa noite que refiro noutro texto), Moreira da Fonseca, Murillo Mendes, Herberto Sales, Álvaro Lins, Mauro Mota, Dante Milano, Henriqueta Lisboa, Melo Neto, etc. Na sua biblioteca pessoal e no pequeno acervo conservado no Centro de Estudos há, para além de livros destes autores, vestígios do seu mútuo relacionamento, nomeadamente uma curiosa fotografia que lhe enviou o grande poeta de “Louvação dos Poetas” com o propósito expresso de Régio conferir se era ou não verdade ser ele “muito feio”(sic).

Nesse contacto que estabeleci com a figura de Régio um caso avultou a partir de dada altura a meus olhos: a sistemática ocultação que se tem efectuado sobre a relevância de ter tido uma filha de uma senhora com quem se relacionou quando ainda era estudante em Coimbra, em cuja Universidade se licenciou em Filologia Românica. Apesar de citado por destacados estudiosos da vida e da obra regiana, nunca este facto - que Régio jamais esqueceria e considerou como o mais importante da sua vida - recebeu uma atenção específica de vulto. E isso considero-o eventualmente caracterizador de sectores da cena intelectual lusitana onde, a par dum ambíguo amiguismo, existe ainda uma mentalidade conservadora mesmo da parte de indivíduos que se enroupam com vestes progressistas. Para ilustrar, aqui deixo aos leitores que o não conheçam o comovente poema “Obsessão”, para que se veja o quanto ele revela da verdade interior que subjazia ao autor de “Poemas de Deus e do Diabo” - e que de igual modo dá também sinal claro do seu estro de excepção:


Sobre umas pobres rosas desfolhadas,

Vestidinha de branco, imóvel, fria,

Ela estava ali pronta para o fim.

Eu pensava: “De tudo, eis o que resta!”

E entre as palpebrazinhas mal fechadas,

(Como um raio de sol por uma fresta)

O seu olhar inda me via,

E despedia-se de mim.

 

Despedir-se, porquê?, se nunca mais,

Sobre essas pobres rosas desfolhadas,

A deixei eu de ver…, imóvel, fria.

Pois eu, acaso vivo onde apareço?

Lutas, ódios, amores, sonhos de glória, ideais,

Tudo me esqueceu já! Só não esqueço,

Entre as palpebrazinhas mal fechadas,

Aquele olhar que inda me via.

 

                                                                               (ns in “As vozes ausentes”)



Tapeçaria a partir de um cartão de José Régio



Mais 2 poemas de Régio

 


   Estação Término

 

Como um navio no mar

A meio da noite a casa,

E o vento e a chuva em redor.

Lá dentro, a um canto do lar

Onde um bom tronco se abrasa,

O homem sentado espera.

Se alguém chegar,

Terá luz, terá calor.

Batem à porta. Quem dera

Que fosse realidade!

Já teve tais decepções

O homem que há tanto espera!

Mas agora, alguém batera

Que chega da tempestade,

Que percorreu solidões…

“Entre quem é!” Pode ser

Alguém que venha roubar,

Assassinar, ofender…

“Entre quem é!” Não importa.

Se alguém vem que bate à porta,

O homem só quer abrir.

Chegou, por fim, a saber

Que, venha lá quem vier,

Seja quem for,

Só um dos dois pode ser

Desde que não a fingir:

A Morte, o Amor.

                                              in “Cântico suspenso”

  


   Canção dos dias contados


   Viver à beira da morte

  No gosto de mais um dia

         Nem eu diria

  Que tão pouco me conforte.

 

          Mas para quem

   Não tem senão esse pouco,

              Seria louco

      Perder o pouco que tem.

 

      Gozar o que, sem futuro,

    Perdura uns breves instantes,

              Não era dantes,

   Mas hoje, é o bem que procuro.

 

      Mais uma vez brilha o Sol!

     E é de prever que à tardinha

        Desponte a Lua, vizinha

        Do resplendor do arrebol.

 

       Talvez que a noite comprida

         Traga outra manhã depois.

           Um dia e outro, são dois.

           Não são dois dias a vida?

 

                   Nem eu diria

         Que tão pouco me conforte:

              Viver à beira da morte

            No gosto de mais um dia.

 

                                                   (in Música ligeira, volume póstumo)

 

*

 

 (À memória de Régio)

 

FALA DE SUA FILHA A SEU PAI JOSÉ RÉGIO

 

Sou eu, pai! Estive com umas amigas. Fui com elas

Ao cinema. Vim pela rua do Bairro Alto.

Como a cidade

Estava bela   com a noitinha a entrar. Ao pé do Castelo

Um anjo rebrilhava coberto de lantejoulas

Como as dos desenhos do tio Júlio.

Comeste, pai? O que é que a dona Rosalina nos mandou?

Eia, pai – jardineira! E leite-creme como tu gostas. E figos

- num prato ratinho  dos teus preferidos!

Deixa. Eu coloco na mesa.  Tu continua a sonhar

Aí junto à varanda,  na cadeira velha de verga.

Já reparaste?

Que de luzes que aqui se juntam! Ficam tão bem

À minha blusa amarela. Sim, tu bem o sabes, a noite vai ser longa

Mas um novo planeta nos espreita lá de cima.

Não tenhas medo, pai!

Eles não andam no quintal. Eu disse-lhes

Que não andassem no quintal, mesmo em Vila do Conde.

Logo terás, depois da música

Areias do deserto e os ventos da beira-mar. E olha

Consertei-te o coração

E o teu boneco estripado.

 

Pai: ontem um moço, na rua

Olhou para mim e eu

Pensei de repente em coisas - borboletas sobre um prado,

Um grilo tenor em alvoroço, rios correndo – em coisas que tenho

Pudor de contar a outras gentes. Que tolice, pai, não é?

Mas ele, se assim o digo, parece gostar de mim. E estou um pouco feliz.

E peço-te já versos para ele. Como os daquele príncipe

Que todo se danava se acaso a lua não vinha. O meu rapaz

Tem um sorriso esquisito

E uns olhos azuis-lilases.

 

Pai, a casa – esse navio – vai partir. Olha, ao pé, a tua estrela

Do teu menino ausente. Não te entristeças, pai. Estou tão contente!

Dá-me a tua tablete

De chocolate, dá-me a Nossa Senhora, dá-me a tua caneta

De estudante: com ela farei versos

Que tu me invejarás. Estou a meter-me contigo, pois então!

Como tu, também sei pelo caminho quais os passos

Que vão dar aos meus próprios lados. Quando dormires

Eu te velarei. E vejo-te sempre como tu me vês

Pelas pálpebras mal cerradas.

Teremos luz e calor, pai

Como tu bem mo quiseste revelar. Os deuses, coitados deles

Não terão mais remédio

Que ler teus livros inteiros. (Um dia

Pedir-lhes-ei alvíssaras).

 

Não temas, pai. Eu estou aqui. Sempre estarei aqui. Guardo comigo

As rosas desfolhadas

E o meu vestidinho branco. E agora

Vamos, pai. Deixa lá as escritas, escreverás o resto do teu conto

Lá p’ra mais tarde.

(É sempre p’ra mais tarde que se escreve). Vamos agora passear.

 

Que a grande voz do mundo

Eu já ao longe a ouço.

 

                                                                              ns

                                                                        in “Escrita e o seu Contrário”



Desenho de José Régio

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