Para o melhor conhecimento de Régio
O autor de “Davam grandes passeios aos domingos” (que tem Portalegre não
só como pano de fundo mas mesmo, diria eu, como “protagonista”) um dos
carácteres mais singulares das letras portuguesas, nasceu como é sabido em Vila
do Conde (1901) e aí faleceu de ataque cardíaco em 1969. Poeta, dramaturgo,
romancista, contista, ensaísta e pensador mas também pintor nas suas horas e
coleccionador antiquário de destaque, foi de igual modo uma significativa
figura cívica, tendo participado activamente na oposição à ditadura
salazarista. Viveu muitos anos na cidade alto-alentejana a exercer a sua tarefa
de professor liceal, sendo por isso que nela existe uma Casa-Museu com o seu
nome - sediada precisamente na “Velha Casa”.
Fui durante 14 anos - até me aposentar - o funcionário responsável pelo
Centro de Estudos que lhe está anexo.
Devido a este facto, acrescentado à minha condição de publicista,
debrucei-me ao longo dos tempos sobre a sua vida, nomeadamente sobre as
relações epistolares e literárias que manteve com escritores brasileiros como
Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Ribeiro Couto (que o visitou numa noite que
refiro noutro texto), Moreira da Fonseca, Murillo Mendes, Herberto Sales,
Álvaro Lins, Mauro Mota, Dante Milano, Henriqueta Lisboa, Melo Neto, etc. Na
sua biblioteca pessoal e no pequeno acervo conservado no Centro de Estudos há,
para além de livros destes autores, vestígios do seu mútuo relacionamento,
nomeadamente uma curiosa fotografia que lhe enviou o grande poeta de “Louvação
dos Poetas” com o propósito expresso de Régio conferir se era ou não verdade
ser ele “muito feio”(sic).
Nesse contacto que estabeleci com a figura de Régio um caso avultou a partir de dada altura a meus olhos: a sistemática ocultação que se tem efectuado sobre a relevância de ter tido uma filha de uma senhora com quem se relacionou quando ainda era estudante em Coimbra, em cuja Universidade se licenciou em Filologia Românica. Apesar de citado por destacados estudiosos da vida e da obra regiana, nunca este facto - que Régio jamais esqueceria e considerou como o mais importante da sua vida - recebeu uma atenção específica de vulto. E isso considero-o eventualmente caracterizador de sectores da cena intelectual lusitana onde, a par dum ambíguo amiguismo, existe ainda uma mentalidade conservadora mesmo da parte de indivíduos que se enroupam com vestes progressistas. Para ilustrar, aqui deixo aos leitores que o não conheçam o comovente poema “Obsessão”, para que se veja o quanto ele revela da verdade interior que subjazia ao autor de “Poemas de Deus e do Diabo” - e que de igual modo dá também sinal claro do seu estro de excepção:
Sobre umas pobres rosas
desfolhadas,
Vestidinha de branco, imóvel, fria,
Ela estava ali pronta para o fim.
Eu pensava: “De tudo, eis o que
resta!”
E entre as palpebrazinhas mal
fechadas,
(Como um raio de sol por uma
fresta)
O seu olhar inda me via,
E despedia-se de mim.
Despedir-se, porquê?, se nunca
mais,
Sobre essas pobres rosas
desfolhadas,
A deixei eu de ver…, imóvel, fria.
Pois eu, acaso vivo onde apareço?
Lutas, ódios, amores, sonhos de
glória, ideais,
Tudo me esqueceu já! Só não
esqueço,
Entre as palpebrazinhas mal
fechadas,
Aquele olhar que inda me via.
(ns in “As vozes ausentes”)
Mais 2 poemas de Régio
Estação Término
Como um navio no mar
A meio da noite a casa,
E o vento e a chuva em redor.
Lá dentro, a um canto do lar
Onde um bom tronco se abrasa,
O homem sentado espera.
Se alguém chegar,
Terá luz, terá calor.
Batem à porta. Quem dera
Que fosse realidade!
Já teve tais decepções
O homem que há tanto espera!
Mas agora, alguém batera
Que chega da tempestade,
Que percorreu solidões…
“Entre quem é!” Pode ser
Alguém que venha roubar,
Assassinar, ofender…
“Entre quem é!” Não importa.
Se alguém vem que bate à porta,
O homem só quer abrir.
Chegou, por fim, a saber
Que, venha lá quem vier,
Seja quem for,
Só um dos dois pode ser
Desde que não a fingir:
A Morte, o Amor.
in
“Cântico suspenso”
Canção dos dias contados
Viver à beira da morte
No gosto de mais um dia
Nem eu diria
Que tão pouco me conforte.
Mas para quem
Não tem senão esse pouco,
Seria louco
Perder o pouco que tem.
Gozar o que, sem futuro,
Perdura uns breves instantes,
Não era dantes,
Mas hoje, é o bem que procuro.
Mais uma vez brilha o Sol!
E é de prever que à tardinha
Desponte a Lua, vizinha
Do resplendor do arrebol.
Talvez que a noite comprida
Traga outra manhã depois.
Um dia e outro, são dois.
Não são dois dias a
vida?
Nem eu diria
Que tão pouco me conforte:
Viver à beira da
morte
No gosto de mais um
dia.
(in Música ligeira, volume póstumo)
*
(À memória de Régio)
FALA DE SUA FILHA A SEU PAI JOSÉ
RÉGIO
Sou eu, pai! Estive com umas
amigas. Fui com elas
Ao cinema. Vim pela rua do Bairro
Alto.
Como a cidade
Estava bela com a noitinha a entrar. Ao pé do Castelo
Um anjo rebrilhava coberto de
lantejoulas
Como as dos desenhos do tio Júlio.
Comeste, pai? O que é que a dona
Rosalina nos mandou?
Eia, pai – jardineira! E
leite-creme como tu gostas. E figos
- num prato ratinho dos teus preferidos!
Deixa. Eu coloco na mesa. Tu continua a sonhar
Aí junto à varanda, na cadeira velha de verga.
Já reparaste?
Que de luzes que aqui se juntam!
Ficam tão bem
À minha blusa amarela. Sim, tu bem
o sabes, a noite vai ser longa
Mas um novo planeta nos espreita lá
de cima.
Não tenhas medo, pai!
Eles não andam no quintal. Eu
disse-lhes
Que não andassem no quintal, mesmo
em Vila do Conde.
Logo terás, depois da música
Areias do deserto e os ventos da
beira-mar. E olha
Consertei-te o coração
E o teu boneco estripado.
Pai: ontem um moço, na rua
Olhou para mim e eu
Pensei de repente em coisas -
borboletas sobre um prado,
Um grilo tenor em alvoroço, rios
correndo – em coisas que tenho
Pudor de contar a outras gentes.
Que tolice, pai, não é?
Mas ele, se assim o digo, parece
gostar de mim. E estou um pouco feliz.
E peço-te já versos para ele. Como
os daquele príncipe
Que todo se danava se acaso a lua
não vinha. O meu rapaz
Tem um sorriso esquisito
E uns olhos azuis-lilases.
Pai, a casa – esse navio – vai
partir. Olha, ao pé, a tua estrela
Do teu menino ausente. Não te
entristeças, pai. Estou tão contente!
Dá-me a tua tablete
De chocolate, dá-me a Nossa
Senhora, dá-me a tua caneta
De estudante: com ela farei versos
Que tu me invejarás. Estou a
meter-me contigo, pois então!
Como tu, também sei pelo caminho
quais os passos
Que vão dar aos meus próprios
lados. Quando dormires
Eu te velarei. E vejo-te sempre
como tu me vês
Pelas pálpebras mal cerradas.
Teremos luz e calor, pai
Como tu bem mo quiseste revelar. Os
deuses, coitados deles
Não terão mais remédio
Que ler teus livros inteiros. (Um
dia
Pedir-lhes-ei alvíssaras).
Não temas, pai. Eu estou aqui.
Sempre estarei aqui. Guardo comigo
As rosas desfolhadas
E o meu vestidinho branco. E agora
Vamos, pai. Deixa lá as escritas,
escreverás o resto do teu conto
Lá p’ra mais tarde.
(É sempre p’ra mais tarde que se
escreve). Vamos agora passear.
Que a grande voz do mundo
Eu já ao longe a ouço.
ns
in “Escrita e o seu Contrário”
Desenho de José Régio
Sem comentários:
Enviar um comentário