A CIDADE-JARDIM
Encostou-se à porta de entrada e
fechou-a, recuando lentamente. Para melhor se concentrar, olhou em frente para
as escadas envoltas em penumbra e escutou o ruído dos motores e das vozes que,
poucos metros atrás de si, ora se aproximavam ora se afastavam. Não se ouviam
gritos ou correrias. Manteve-se imóvel e em silêncio por mais alguns momentos,
após o que recriou mentalmente o som do breve grito que antecedera a queda.
Achou muito mais desagradável o som do corpo a embater repetidamente contra a
madeira das escadas e por isso afastou daí o pensamento. Aproximou-se então do
cimo das escadas e perscrutou o corredor situado ao fundo destas. Pareceu-lhe
que estava enroscada sobre si própria, em posição fetal. Mas, para ver melhor,
teria que abrir a porta da rua ou acender a luz do hall. Respirou fundo e
retrocedeu para o seu quarto. Limpou o suor da fronte, com toalhetes húmidos e
sentou-se à secretária. Pegou no livro que estava sobre ela, abriu-o mas
levantou-se quase imediatamente e olhou-se de cima abaixo ao espelho do
guarda-fatos. Sorriu-se, como para se encorajar. Pôs desodorizante, perfumou-se
e mudou de camisa, escolhendo uma Triple Marfel branca, de excelente linho.
Olhou mais uma vez para o fundo das escadas antes de sair de casa, fechando
rápida mas suavemente a porta.
Eram onze e meia. Talvez fosse já
almoçar. Logo veria, não estava com grande vontade de andar de um lado para o
outro para saber qual era a cantina que estava de serviço. Passou num quiosque
e observou as primeiras páginas dos jornais expostos. Comprou um semanário cuja
revista trazia uma reportagem sobre Frank Lloyd Wright. Folheou-a enquanto
caminhava. As mesmas imagens de sempre, a Casa da Cascata, o Museu Guggenheim,
as Fábricas Johnson. E a já habitual referência, curta, a Boadacre City como a
inevitável utopia do génio. Entretanto, gritaram-lhe o seu nome, pelo que se
voltou.
Um colega cumprimentou-o,
perguntando-lhe se ia almoçar. Caminharam juntos em direcção à cantina de
serviço, debatendo os problemas com que ambos se confrontavam nesse final de
curso.
“Ebenezer Howard - Garden-Cities
of Tomorrow - London-1946”. “- Mas é reedição. Já estou a
relê-lo...aproveito as noites, que está mais fresco...”
Passou todo o almoço incomodado por
esse colega lhe ter recordado que o professor da disciplina de ‘Seminário III’
certamente não iria gostar do tema que escolhera para o trabalho final. De
certeza que iria ter problemas!... Esta indisposição, tanto maior quanto mais
reflectia no assunto, transferiu-se para a questão da sua Senhoria, ao pensar
no que sucedera nessa manhã. E se ela, afinal, ainda estivesse viva e tivesse
conseguido pedir ajuda?... Não, era pouco provável. A queda fora grande e ela
já tinha uma idade considerável. Só com muito azar é que ainda estaria a
respirar...
Olhou o relógio: um quarto para a
uma. Boa hora para ir para casa e telefonar para o 112. Mas só depois de tomar
café, pois sem a bica depois do almoço sentia que quase não conseguia
raciocinar correctamente. Entregaram os tabuleiros e saíram em direcção à
esplanada. Apesar de desejar estar mais tempo sentado sob o guarda-sol,
sobretudo por antever a subida penosa que o aguardava devido ao calor sufocante
desse dia, despediu-se do colega.
Quando abriu a porta da sua casa,
sentiu logo quão fresca ela estava, em contraste com o calor do exterior. No
entanto, aquela frescura não lhe agradou tanto quanto habitualmente. Era como
se aquele corpo estendido no andar de baixo a maculasse e ele respirasse,
igualmente, o odor da morte. Não, decididamente, não lhe agradou mesmo nada.
Respirou lentamente, o mínimo
possível e procurou escutar qualquer ruído que proviesse da cave. Nada. Assim
sendo, acendeu o isqueiro e iniciou a descida.
Fruta, peixe e pão estavam
espalhados pelas escadas. Poisou os pés com o máximo cuidado, não fosse
escorregar nalguma laranja e desequilibrar-se, caindo sobre o vulto que se
encontrava lá ao fundo. Afastou com o pé um saco de rede onde ainda se
encontravam algumas verduras e aproximou-se do corpo inerte. Estava morta,
evidentemente. E, afinal, não estava em posição fetal, mas deitada de bruços,
com os braços sob o corpo e uma das pernas encolhida… Ao subir novamente as
escadas, voltou-se ainda. “ - ‘Poisson d’Avril’ em pleno Agosto” -
pensou com um sorriso nos lábios pois, caprichosamente, um carapau tinha-lhe
aterrado nas costas. Depois de fazer o telefonema, voltou às escadas e apanhou
uma maçã, que comeu com deleite enquanto esperava.
“- E agora, o que é que está a
pensar fazer? Arranja outra casa?” - perguntou-lhe o polícia, à despedida,
após cumpridas as inevitáveis formalidades.
“- Não sei bem, fui apanhado de
surpresa por este infeliz acidente, como compreende. Quero ver se acabo o curso
no próximo mês... Se me ponho agora com mudanças de casa, perco um tempo
precioso. Está a ver a minha situação...” - respondeu, procurando fazer-se
compreender e mostrando-se injustamente tratado pelo destino, tendo recebido a
anuência do agente com um sentido “pois é, é uma chatice...”.
Nessa noite, enquanto lia uma obra
sobre a ‘Cidade Oceano’ de Kiyonori Kikutake, não conseguiu deixar de constatar
que as torres da maqueta apresentadas numa fotografia eram muito, mesmo muito
parecidas com os rolos que a sua Senhoria utilizava no cabelo, nos domingos de
manhã, quando o despertava para lhe perguntar se desejava tomar o
pequeno-almoço…
JG
in “Contos do centro do meio”, Coimbra 86
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