quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Três poemas de Carlos Garcia de Castro

 


ns



“MENINA E MOÇA”

 

A Grande Guerra mundial nazi

deixara às escolas um destino hermético.

 

Distantemente, Portugal morria.

 

– Foi quase natural ter-me formado.

 

Como na história da “Menina e Moça”,

saí de casa com legais propinas.

 

Havia à noite os rádios e o cinema.

Chegava a ser bonito ir-se para a Tropa,

fardar-se de Aspirante, uma hierarquia,

para estar às ordens dum Quartel em paz.

Era saudável ser comerciante.

 

Solenemente, Portugal vivia.

 

Por compleição, o Livro das Saudades,

com professores – Bernardim Ribeiro,

que às raparigas inspirava os vícios

dum namorado, casamento, filhos.

 

Em grupo se lançavam vários ócios,

“Cahiers du Cinema”, a JUC, a Opus Dei,

modernos pajens, menestréis compostos.

 

Nenhum de nós, tomado, em liberdade,

– de alguma vez deixara o fingimento.

 

Um templo nos resolvia,

– o Banco de Portugal,

Bravos rapazes de gravata e fato.

As raparigas eram Enfermeiras

ou professoras de Letras.

 

Até as noivas, de inocência amarga,

que os padres e as famílias alisavam,

com habilidade nos surgiam virgens,

 

– nas ocorrências dum País alegre!

(Eu próprio me casei vestindo fraque).

 

Por toda a parte havia a sedução

de amáveis permissões corporativas

à Casa dos Estudantes do Império.

 

Anos Cinquenta, as dores em segurança.

 

“Por sobre um verde ramo acima d’água”,

meu pai se contentou com a minha Formatura.

– Também se fazem nojo as coisas entre si.

Trivialmente, Portugal ouvia

todos os dias as estações da Rádio,

com Vitorinos, Pessoas,

as proteínas nacionais de acesso.

 

Qualquer artista serviçal de sempre

cantava e acentuava o Cais/Sodré.

 

– Foi quase natural ter-me formado.

 

 

A ERNEST HEMINGWAY

 

Quando é no verão e o vinho está gelado,

à sombra luminosa do pós-guerra

que os toldos espalham de amarelo vivo,

as raparigas cheiram a morango,

cosmopolitas de higiene química.

 

Comemos frutos rígidos à mão

para simularmos o bravio do sol,

só pelo gosto ácido e vulgar

que os nossos dentes têm de morder

ainda as espoletas das granadas.

Tomamos banho a nadar no mar,

vamos de férias todas as semanas

para nos amarmos nos hotéis de luxo

ao pé das praias, lagos, das montanhas,

onde haja uma esplanada para vivermos.

Lemos jornais e conversamos manso,

fumamos, apostamos nas corridas,

Martini branco, seco, sugestivo,

pessoas vivas, débeis ou dramáticas

do coração anónimo da paz.

 

Então os homens de falar pausado

serenamente com a pele tisnada,

escanhoados, têm olhos verdes,

olhos de cor, suscitam as mulheres

 

e toda a esplanada para as trincheiras.

 

 

GENÉRICO

 

Nas lojas, antigamente,

havia o Mestre, que era o dono delas.

As suas Artes eram seu Ofício,

para que ensinava sempre um Aprendiz.

O Mestre tinha o seu Oficial,

homem já feito, casadouro às vezes,

que ele criava à mão das ferramentas.

O Mestre era o patrão, e em sua casa

todos viviam como pai e filhos.

Lá tinham percentagem e alimento,

que a carne é corpo para criar o espírito.

Da profissão faziam a família,

comunalmente a sua lealdade,

e cada obra, ideia produzida,

era o louvor unido deles todos

que em troca dos seus ganhos ao freguês

levavam pronto como novidade.

Esse freguês em pouco procurava

aquelas coisas para o seu enfeite,

delas se dava à sua precisão.

Ainda quase não havia máquinas,

das suas mãos directas, com aprestos,

provinham simples complicadas peças

de sentimento e cérebro trasladadas

da vida para o tempo, persistentes.

O quadro se fazia de esquadria,

a roda se fazia de redondo,

as regras eram quem dizia o ser,

ditavam liberdade e consciência.

– Deus era sempre a explicação distante

e perto de qualquer matéria-prima.

 

Também a História pode ser um sonho.

 

Da Antologia “Fora de Portas”

Editada pela “Escrituras” de São Paulo (Brasil)

Prefácio de ns


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