SENTIMENTO
A água está
parada, muito quieta no meio da noite.
E é preciso
perguntar-lhe: és água de um rio?
És água dum mar?
És água dentro dum copo
sobre uma mesa
muito antiga e sonhada?
És água para um
cavalo beber? Para um cão se banhar?
Para um homem e
uma criança se lavarem ao relento?
Para uma mulher,
para um gato, para um lobo?
E a água talvez
não te responda. Nunca te responda.
Ou te responda
tarde de mais. Ou nem sequer te ouça.
Mas tu pergunta.
Pergunta e espera pela resposta.
Mesmo que os
minutos passem entre ti e a água.
E devagar uma
silhueta se desloque
e depois se
detenha no meio das árvores imóveis.
AGUARELA
Na minha terra,
quando eu era pequeno
havia montanhas
altas com bosques e recantos
pelo menos um Oceano
com piratas e segredos
e muitas outras
coisas que se transfiguravam
Os heróis eram
altos, atléticos, usavam duas cores
e parece que
havia uns outros sobrados da Grande Guerra
A velhota gorda
que vendia castanhas no largo do Rossio
pertencia a uma misteriosa
quadrilha francesa
falava alto,
tratava os fregueses pelo nome
aparecia e
desaparecia consoante era Inverno ou Verão
No dia de Santos
o gajo das barbas (que tinha um
tesouro escondido)
dava-nos nozes,
se lhe batíamos à porta
e havia alguns,
corajosos, que batiam
Havia um
espanhol que era barbeiro
mas as tesouras
cantavam em português
Os polícias
passavam, nas tardes de Primavera
muito suaves,
devagarinho, rua do Comércio abaixo
quando não era
pela Corredoura acima
Pareciam anjos
vestidos de azul claro
Só muito mais
tarde notei que usavam cassetete
Como eu gostava
da Escola! E ainda por cima
os professores
era tudo gente esperta
Não havia, que
eu soubesse, pessoas infelizes
e os bandidos só
faziam serviço no “Tintin”
ou nos filmes
(poucos) da televisão
Mas as coisas,
como nas fitas, parece que às vezes
andam demasiado
depressa.
Os heróis – os
mais velhos morreram –
tinham estado,
coitados, com o Milhões na França
e os que eram às
cores transformaram-se em futebolistas
com o remate
trocado
A mulher das
castanhas foi um ar que lhe deu:
finou-se com um
colapso e era avó de três netos
como ela
trabalhadores da fábrica da rolha
Os anjos que
eram polícias já só andam de carro
e um deles até
me ofendeu, um dia, junto a um Bar
Alguns dos
professores ficaram com orelhas de burro
E nesta coisa de
crescer, o que mais (juro-vos) me dana
é que agora
corto o cabelo num cabeleireiro de homens
que
competentemente me afeita (enquanto leio o jornal)
com um aparelho
que rosna como um rafeiro sem classe.
ABECEDÁRIO
Vá, não entres
aí
Isso é um
advérbio de modo
E embora te
pareça um particípio passado
é um adjectivo e
às vezes um presente.
Fica parado à
saída: está a chover
Dentro dessa
frase quem anda ao sol molha-se muito
É um discurso idiomático
e por isso
onde está o
prenome é o substantivo.
Junta-te ao
ponto e vírgula: custa menos
do que escrever
com pontinhos nos is
quando as
reticencias nos confundem
com exclamações
ou verbos no futuro.
Os conjuntivos
na oração nunca se entendem:
e por isso,
dizem, é que os agás são mudos.
FOTO DE ABRIL
O pai chegava
tarde…A mãe e os avós
(que o mano era
pequeno) estavam sempre comigo.
Então o pai
chegava, perguntava da escola
perguntava das
coisas que a mãe lhe sussurrava.
A escola era a
Escola onde eu agora andava.
E a mãe pela
manhã falava devagar
arranjava-me o
lanche, chamava-lhe merenda
e eu ia no
autocarro (sem o mano que tinha)
Eu não sabia de
anos só sabia de meses
- o que a mãe me
ensinara e que na escola aprendia –
(o mano era
pequeno!) eu jogava sozinho.
O pai que vinha
tarde não jogava comigo.
E o pai que
vinha tarde mesmo se era Domingo
chegou perto da
porta na manhã daquele dia.
Havia gente na
rua e gente que gritava
E na
televisão muitos desconhecidos.
E o pai depois
daquilo disse-me: anda jogar
Anda jogar meu
filho pois já não há fascismo.
E o pai que
vinha tarde jogou comigo à bola
na rua da
Amoreira a rua pequenina
E a mãe chorou
ao ver-nos e eu não a entendia
a mãe que era só
minha (e do mano que havia)
Eu sabia de
meses mas não sabia de anos
E jogava com o
pai pois já não há fascismo
A avó não
gritava Levava-me p’la mão
até ao
autocarro E para a Escolas eu ia
Sozinho ia p’rá
Escola (o mano era pequeno…)
- E eu e o pai
jogávamos quando eu de lá vinha
Jogávamos
jogávamos – eu e o pai jogávamos
E o mano (era
pequeno!) olhava sentadinho
E a mãe também
por vezes nos olhava a jogar
Pois já não há
fascismo Pois já não há fascismo!
JG
in “Os versos do Zé Povão”
Portalegre (1968). Poeta, pintor, ensaísta,
desportista e professor. Foi guarda-redes profissional na Académica de Coimbra.
Licenciado em História da Arte e Mestre em História Contemporânea de Portugal
pela Universidade de Coimbra.
Representado em diversas antologias
poéticas/plásticas, proferiu palestras e publicou artigos sobre Educação, Arte,
Ética e Política em jornais e revistas da especialidade no país e no
estrangeiro. Está traduzido em inglês e espanhol.
Especialista em teoria artística e arte
aplicada, a sua postura poética surrealista vivencia-se mediante um lirismo
tracejado pelo humor negro e a visitação da memória dum quotidiano repleto de
ironia e liberdade formal. Vive em Luanda, onde é professor na Escola
Portuguesa.
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