quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Quatro poemas de João Garção

 




SENTIMENTO

 

A água está parada, muito quieta no meio da noite.

E é preciso perguntar-lhe: és água de um rio?

És água dum mar? És água dentro dum copo

sobre uma mesa muito antiga e sonhada?

És água para um cavalo beber? Para um cão se banhar?

Para um homem e uma criança se lavarem ao relento?

Para uma mulher, para um gato, para um lobo?

 

E a água talvez não te responda. Nunca te responda.

Ou te responda tarde de mais. Ou nem sequer te ouça.

 

Mas tu pergunta. Pergunta e espera pela resposta.

Mesmo que os minutos passem entre ti e a água.

E devagar uma silhueta se desloque

e depois se detenha no meio das árvores imóveis.


 

AGUARELA

 

Na minha terra, quando eu era pequeno

havia montanhas altas com bosques e recantos

pelo menos um Oceano com piratas e segredos

e muitas outras coisas que se transfiguravam

 

Os heróis eram altos, atléticos, usavam duas cores

e parece que havia uns outros sobrados da Grande Guerra

 

A velhota gorda que vendia castanhas no largo do Rossio

pertencia a uma misteriosa quadrilha francesa

falava alto, tratava os fregueses pelo nome

aparecia e desaparecia consoante era Inverno ou Verão

 

No dia de Santos o gajo das barbas (que tinha um tesouro escondido)

dava-nos nozes, se lhe batíamos à porta

e havia alguns, corajosos, que batiam

 

Havia um espanhol que era barbeiro

mas as tesouras cantavam em português

 

Os polícias passavam, nas tardes de Primavera

muito suaves, devagarinho, rua do Comércio abaixo

quando não era pela Corredoura acima

 

Pareciam anjos vestidos de azul claro

 

Só muito mais tarde notei que usavam cassetete

 

Como eu gostava da Escola! E ainda por cima

os professores era tudo gente esperta

 

Não havia, que eu soubesse, pessoas infelizes

e os bandidos só faziam serviço no “Tintin”

ou nos filmes (poucos) da televisão

 

Mas as coisas, como nas fitas, parece que às vezes

andam demasiado depressa.

 

Os heróis – os mais velhos morreram –

tinham estado, coitados, com o Milhões na França

e os que eram às cores transformaram-se em futebolistas

com o remate trocado

 

A mulher das castanhas foi um ar que lhe deu:

finou-se com um colapso e era avó de três netos

como ela trabalhadores da fábrica da rolha

 

Os anjos que eram polícias já só andam de carro

e um deles até me ofendeu, um dia, junto a um Bar

 

Alguns dos professores ficaram com orelhas de burro

 

E nesta coisa de crescer, o que mais (juro-vos) me dana

é que agora corto o cabelo num cabeleireiro de homens

que competentemente me afeita (enquanto leio o jornal)

 

com um aparelho que rosna como um rafeiro sem classe.


 

ABECEDÁRIO

 

Vá, não entres aí

Isso é um advérbio de modo

E embora te pareça um particípio passado

é um adjectivo e às vezes um presente.

 

Fica parado à saída: está a chover

Dentro dessa frase quem anda ao sol molha-se muito

É um discurso idiomático e por isso

onde está o prenome é o substantivo.

 

Junta-te ao ponto e vírgula: custa menos

do que escrever com pontinhos nos is

quando as reticencias nos confundem

com exclamações ou verbos no futuro.

 

Os conjuntivos na oração nunca se entendem:

e por isso, dizem, é que os agás são mudos.

 

 

FOTO DE ABRIL

 

O pai chegava tarde…A mãe e os avós

(que o mano era pequeno) estavam sempre comigo.

Então o pai chegava, perguntava da escola

perguntava das coisas que a mãe lhe sussurrava.

 

A escola era a Escola onde eu agora andava.

E a mãe pela manhã falava devagar

arranjava-me o lanche, chamava-lhe merenda

e eu ia no autocarro (sem o mano que tinha)

 

Eu não sabia de anos    só sabia de meses

- o que a mãe me ensinara e que na escola aprendia –

(o mano era pequeno!) eu jogava sozinho.

O pai que vinha tarde não jogava comigo.

 

E o pai que vinha tarde    mesmo se era Domingo

chegou perto da porta na manhã daquele dia.

Havia gente na rua    e gente que gritava

E na televisão     muitos desconhecidos.

 

E o pai depois daquilo     disse-me: anda jogar

Anda jogar meu filho    pois já não há fascismo.

E o pai que vinha tarde jogou comigo à bola

na rua da Amoreira    a rua pequenina

 

E a mãe chorou ao ver-nos    e eu não a entendia

a mãe que era só minha (e do mano que havia)

Eu sabia de meses    mas não sabia de anos

E jogava com o pai    pois já não há fascismo

 

A avó não gritava    Levava-me p’la mão

até ao autocarro    E para a Escolas eu ia

Sozinho ia p’rá Escola (o mano era pequeno…)

- E eu e o pai jogávamos quando eu de lá vinha

 

Jogávamos jogávamos – eu e o pai jogávamos

E o mano (era pequeno!) olhava sentadinho

E a mãe também por vezes nos olhava a jogar

Pois já não há fascismo    Pois já não há fascismo!

 

JG

in “Os versos do Zé Povão”

 

    Portalegre (1968). Poeta, pintor, ensaísta, desportista e professor. Foi guarda-redes profissional na Académica de Coimbra. Licenciado em História da Arte e Mestre em História Contemporânea de Portugal pela Universidade de Coimbra.

   Representado em diversas antologias poéticas/plásticas, proferiu palestras e publicou artigos sobre Educação, Arte, Ética e Política em jornais e revistas da especialidade no país e no estrangeiro. Está traduzido em inglês e espanhol.

   Especialista em teoria artística e arte aplicada, a sua postura poética surrealista vivencia-se mediante um lirismo tracejado pelo humor negro e a visitação da memória dum quotidiano repleto de ironia e liberdade formal. Vive em Luanda, onde é professor na Escola Portuguesa.


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