Sobre um quadro de Nicolau Saião,
“A noite iluminada”
Um cartão para azulejo, depois
concretizado num painel de consideráveis dimensões (180cm x 120cm) que hoje faz
parte da colecção pessoal do A. patente na sua residência de Arronches (parede
do lado direito do corredor da Casa da Muralha), dá-nos algumas pistas que nos
permitem debruçar-nos proveitosamente sobre uma característica pouco estudada
do universo conceptual subjacente à pintura deste autor.
As
conversas que com ele mantive ao longo dos tempos têm-me permitido confirmar
esta análise, que aliás vai ao encontro de outras reflexões semelhantes já
efectuadas a outro propósito. “A noite iluminada” é pois uma pintura
onde existe um conceito, mesmo uma proposta existencial
por detrás de uma evidência de ordem plástica.
A
começar pelo título, há nos elementos do quadro (concepção, cor e desenho)
sinais que não enganam se os encararmos devidamente, utilizando um ponto de vista
que leve em conta a simbologia filosófica tradicional.
A
execução da obra baseia-se na técnica-mista do lápis de cor, do guache e da
caneta de feltro, sobressaindo três cores: o amarelo, o negro e o rosa forte,
com um enquadramento em castanho de terra-siena e verde esmeralda.
Fazendo pendent estão algumas variações de verde, azul plúmbeo
e o branco em marcações breves.
A
estrutura do quadro é simples, quase linear. Verificam-se na vertical três
planos sucessivos: o de baixo, com um solo juncado de flores; o do meio,
preenchido por figuras que aludem ao caminho filosofal dos adeptos e
o do alto, onde o clarão do dia sobressai do escuro da noite. Desta forma se
sublinham as alegorias da primavera renascente e da luz
irrompendo das trevas segundo a lição de hermetistas antigos como
George Starkey e Joana de Vivonne ou modernos como Fulcannelli, que é
simbolizado pelas seis pontas da coroa de safiras (em cima, à
direita). Esta imagem remete para a dupla trindade, ou seja a completa realeza
filosofal que é o apanágio próprio do Adeptado daquele iniciado e
Mestre.
Tanto
a estrutura do quadro como os seus elementos nos sugerem a unidade
trina dos filósofos per ignem e a simbologia mística
dos cooptados de Heliópolis, com as suas alusões ao sagrado transcendental. As
cores também são significativas: há o verde, com raízes na sabedoria
tradicional e no cristianismo; o negro, o rosa e o amarelo, que são as cores
centrais da alquimia operativa de acordo com os textos canónicos de filósofos
herméticos como Eyrinée Philalète ou Louis d’Estissac (o negro masculino, o
rosa feminino e o amarelo que é a sua síntese fulgurante.
No
plano do meio destaca-se, mas apenas sugerido (velado) um rosto em amarelo (a
cor da Sabedoria hermética). Um pouco acima, à sua direita, vê-se a rosa
mística sobre os nove degraus do conhecimento (em amarelo e doirado)
que uma figura rosada em repleção (a gravidez do lege e relege,
que antecedem o ora e o labora) irá subir. No lado
esquerdo está um torso amputado e decapitado (o símbolo da matéria
afastada da Obra), tendo perto dele os círculos em que o trabalhador
ao forno se perde ou se encontra e os três elementos recompostos de
que se serve para as suas manipulações: o enxofre, o mercúrio e
o sal filosóficos.
Na
parte superior vêem-se alguns insectos (abelhas, besouros e falenas – símbolos
da seiva secreta, volátil, das águias alquímicas)
algumas plantas vivas (aludindo à natureza contida no duplo Homem ígneo)
pirilampos (representação da via-láctea dos Sábios) e uma lua
vermelha em quarto minguante (símbolo do aparecimento posterior da lua
de Deus e sinal da Obra ao branco que na tradição
espagírica cristã nos é dado pela figura de Notre Dame).
Na
parte média podemos ver um elemento branco, redondo (em cima, representando
a cal filosófica) e outro triangular (em baixo) aos quais se
seguem, com a mesma dimensão e forma, um elemento terroso com laivos doirados e
outro onde a cor do ouro dos sapientes já brilha sem quaisquer
entraves.
Assinale-se
ainda que na direita-baixa o quadro se inicia com o símbolo da música
das esferas, ou música universal, que é como se sabe um quadrado verde
claro e rosa forte (o alvorecer e o anoitecer)
cindido em oito partes em diagonal, as partes em que simbolicamente se divide,
ou pelas quais se forma, o infinito sempre espelhado no 8 que é simultaneamente
algarismo, círculo musical
e figura alegórica da derradeira casa da Obra.
Denota-se
por último que a grinalda azul (do rigor mortis)
a meio do embaixo, é pelo seu recorte um sinal do 9 alquímico, figura adquirida
antes da dupla fase final transmutatória em que cobram existência perfeita os
onze degraus da Obra acabada e ultradimensionada.
Esta
abordagem feita do ponto de vista da arte hermética permite-nos
divisar um tipo específico de sugestões presentes com frequência em alguma
pintura contemporânea e analisada já por estudiosos e conhecedores do que
significa no nosso tempo este tipo de mensagem proposta por autores de
formações bem diversas - a indicação cognitiva das condições
metafísicas em que o mundo se vai reconvertendo e ao mesmo tempo
afeiçoando, numa sucessiva transfiguração da Criação Inicial.
Tradução de Guiomar Fernandéz
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