segunda-feira, 21 de junho de 2021

Três poemas de Cristino Cortes

 

PRÉ-ELEGIA, OU ANTECIPADO EPITÁFIO, EM TRÊS ANDAMENTOS

 

                                                           Para o “Sócrates”

 

1.

 

O mágico do animal não pensa decerto na morte.

Como poderia pensar no que para ele não existe?

Olha-me, e ao mundo todo, do fundo dos seus olhos

Já o hábito aboliu o nevoeiro instável do tempo...

 

No seu sono sem sonho, no seu leve dormir

Não há árvores nem frutos simbólicos, nem o canto

De uma ave invisível, e até o perpassar

De uma cadela o não levaria a seus olhos entreabrir...

 

Às vezes estremece, puro instinto, se um sopro de vento

Penetra sem aviso nesse eterno e frágil presente.

Ele respira, sem qualquer protecção, sobre a terra

Em natural comunhão com a vida que o atravessa

Em paz, sempre, com os eflúvios que emana e encerra.

 

Para ele, animal mágico, a morte não existe.

Não sabe se lhe falta muito ou já pouco, nem sequer

O conceito, ou a questão, faz qualquer sentido.

De alguma forma a morte dele sou eu que a sofro

- E sofro por antecipação.

 

2.

 

Olho para o cão... Da sua anormal passividade

Me nasce a interrogação sobre o cedo e o tarde:

Será que chegou ao fim, estará para morrer

Este animal que connosco, há tantos anos, veio viver?

O que será melhor, o que será possível fazer?

 

Soltá-lo, já o pensei, que ele vá, fixe e cheire

As flores e as plantas, e onde tiver de ser

Se deite quando quiser, e, se for o fim, que o aguarde

Na sua inconsciência de bicho doméstico e caseiro,

Aceitáveis limitações de bom e pacífico rafeiro

Toda uma década aqui nos pontuando a existência

A dele, e também a nossa, fluindo em vária sapiência

Para ele agora inútil, de tudo desinteressado

Como alguém com os negócios todos já bem encaminhados,

E apenas lhe restará um último e sofrido suspiro

Não de lamento ou cansaço, mas apenas surpresa

De quem não é mais o que antes era e só então pudera.

 

Será, não será? Dessas matérias todas sou eu ignorante

À cautela preparo as ferramentas, e o local no jardim

- Dessa forma antecipando seu inevitável fim...

Oxalá seja falso alarme, prurido de jasmim

Gravidez de vento em meus neurónios, passageiro quebranto.

 

3.

 

Sobre a cova que será sua uma roseira florirá.

Em seu aroma progressivamente ele se transformará

E na vaga memória dos meus filhos

- E na minha também, por prudência e cálculo o admito -

Insensível mas fatalmente, qual novo rito

A pouco e pouco o rigor do seu contorno se esvairá...

 

Mas não lhe deitarei fora a casota, nem a corrente

Ou a gamela onde ultimamente já pouco comia...

Foi único, não terá sucessor. A linhagem não continua

O espaço não será ocupado, o que fica é pura mobília.

E é com melancolia, e alguma vaga gratidão

Que o próximo epitáfio, com desculpável antecipação

Aqui o formulo, de alguma forma o sabendo inevitável.

 

Ah grande Sócrates! Raios te partam, dizia às vezes

Mas era sem intenção, claro, tu bem o sabias

E a mal me não levavas, aliás nem te calavas

Se com essa intenção eu assim te insultava...

Era uma boa relação esta, por mim puxavas

E só depois de teres ido, a falta te sentirei, como é normal.

Mas o teu tempo passou, bem vejo que estás quase

E vai, vai já que tem de ser, e o que tem de ser

Tem muita força, assim é nos homens como nos bichos

Tu não tens de o saber, oh Sócrates, nem tal seria próprio

Mas nem por isso tu deixarás de morrer

Quando o tempo for cumprido e a tua hora chegar.

 

Consola-te, se puderes, pensando que ainda cá fica

Quem assim te falou. E mais não queiras. Nem o terás.


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