PRÉ-ELEGIA,
OU ANTECIPADO EPITÁFIO, EM TRÊS ANDAMENTOS
Para o
“Sócrates”
1.
O
mágico do animal não pensa decerto na morte.
Como
poderia pensar no que para ele não existe?
Olha-me,
e ao mundo todo, do fundo dos seus olhos
Já o
hábito aboliu o nevoeiro instável do tempo...
No
seu sono sem sonho, no seu leve dormir
Não
há árvores nem frutos simbólicos, nem o canto
De
uma ave invisível, e até o perpassar
De
uma cadela o não levaria a seus olhos entreabrir...
Às
vezes estremece, puro instinto, se um sopro de vento
Penetra
sem aviso nesse eterno e frágil presente.
Ele
respira, sem qualquer protecção, sobre a terra
Em
natural comunhão com a vida que o atravessa
Em
paz, sempre, com os eflúvios que emana e encerra.
Para
ele, animal mágico, a morte não existe.
Não
sabe se lhe falta muito ou já pouco, nem sequer
O
conceito, ou a questão, faz qualquer sentido.
De
alguma forma a morte dele sou eu que a sofro
- E
sofro por antecipação.
2.
Olho
para o cão... Da sua anormal passividade
Me
nasce a interrogação sobre o cedo e o tarde:
Será
que chegou ao fim, estará para morrer
Este
animal que connosco, há tantos anos, veio viver?
O
que será melhor, o que será possível fazer?
Soltá-lo,
já o pensei, que ele vá, fixe e cheire
As
flores e as plantas, e onde tiver de ser
Se
deite quando quiser, e, se for o fim, que o aguarde
Na
sua inconsciência de bicho doméstico e caseiro,
Aceitáveis
limitações de bom e pacífico rafeiro
Toda
uma década aqui nos pontuando a existência
A
dele, e também a nossa, fluindo em vária sapiência
Para
ele agora inútil, de tudo desinteressado
Como
alguém com os negócios todos já bem encaminhados,
E
apenas lhe restará um último e sofrido suspiro
Não
de lamento ou cansaço, mas apenas surpresa
De
quem não é mais o que antes era e só então pudera.
Será,
não será? Dessas matérias todas sou eu ignorante
À
cautela preparo as ferramentas, e o local no jardim
-
Dessa forma antecipando seu inevitável fim...
Oxalá
seja falso alarme, prurido de jasmim
Gravidez
de vento em meus neurónios, passageiro quebranto.
3.
Sobre
a cova que será sua uma roseira florirá.
Em
seu aroma progressivamente ele se transformará
E na
vaga memória dos meus filhos
- E
na minha também, por prudência e cálculo o admito -
Insensível
mas fatalmente, qual novo rito
A
pouco e pouco o rigor do seu contorno se esvairá...
Mas
não lhe deitarei fora a casota, nem a corrente
Ou a
gamela onde ultimamente já pouco comia...
Foi
único, não terá sucessor. A linhagem não continua
O
espaço não será ocupado, o que fica é pura mobília.
E é
com melancolia, e alguma vaga gratidão
Que
o próximo epitáfio, com desculpável antecipação
Aqui
o formulo, de alguma forma o sabendo inevitável.
Ah
grande Sócrates! Raios te partam, dizia às vezes
Mas
era sem intenção, claro, tu bem o sabias
E a
mal me não levavas, aliás nem te calavas
Se
com essa intenção eu assim te insultava...
Era
uma boa relação esta, por mim puxavas
E só
depois de teres ido, a falta te sentirei, como é normal.
Mas
o teu tempo passou, bem vejo que estás quase
E
vai, vai já que tem de ser, e o que tem de ser
Tem
muita força, assim é nos homens como nos bichos
Tu
não tens de o saber, oh Sócrates, nem tal seria próprio
Mas
nem por isso tu deixarás de morrer
Quando
o tempo for cumprido e a tua hora chegar.
Consola-te,
se puderes, pensando que ainda cá fica
Quem
assim te falou. E mais não queiras. Nem o terás.
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