quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Nicolau Saião, Dois poemas de "Flauta de Pan"

 


Fernando Aguiar



SEM TÍTULO

 

Todos os livros do Mundo me pertencem

- disponho de boas mãos  e de olhos

rápidos a perseguir no escuro

as palavras ocultas -

porque é meu o subtil pé-ante-pé

de números e de nomes, cores diferentes

onde os livros sua morada encontram

e de onde nascem.

 

Nem cínico nem inocente - apenas deslizante

entre madeira, pedra, luzes, rastos

que de fora se chegam  (caspité!).

 

É necessário possuir o mais extremo cuidado

e um fato singular ou então de Inverno

- que o homem calvo à espreita sempre está

a fim de caçar ora um endereço

ora uma expressão, ora um botão

- que teima! - desapertado.

 

(De súbito, a imagem dum frasco vazio

em que um bálsamo contra o acne se verteu

- são lá coisas dos médicos -

fornece novas argutas estratégias

e de terras distantes faz falar

com seus costumes inviolados

Lugares, é bem de ver, dos quais o perigo

também fez sua casa

e onde os frutos aguardam nas gavetas

que alguém os retalhe e desfigure)

 

O homem calvo ou a moça das doenças

das confusões, das rendas e dos flirts

aliás de bom tom e boa fé.

 

Não é pequena, entanto, a maldição:

aos outros ainda é dado contar

dos ventos, dos desânimos, dos doutores, das fechaduras

A mim somente me é lícito

dar por história a sombra de uma busca

rapinanço mais que tudo legítimo

(sacra juventude, tão alerta afinal!)

e o aperto de mão que tudo salva

como um brasão de inteireza

de quem está entre comas.

 

É então que o Medo às vezes vai connosco

na nossa caminhada para  o lar

nestoutro continente simulado.

 

Todos os livros do Mundo me pertencem

- bons sustos me têm custado! -

que o sistema é só ter a relação

entre dedos e recordações de nebulosos

 pedaços de matérias negras

vindas lá do começo de tardes domingueiras

ou então de nada reconhecível

a não ser de alguns minutos ao fim da vida.

 

Todos meus são

como por um acaso

- que todavia transborda

da rapidez de gestos e palavras.

 

Quem não entender que os compre

- ou que analfabeto fique...

 

 

CESÁRIO REVISITADO

 

Um armário, quando se abre  faz sair

de qualquer prateleira    sonetos ou memórias.

E então é assim:  deverá dizer-se   infância?

Ou burguesa dengosa?  Ou repolhos franceses?

Ou manjericão, que alinda as estrofes várias?

A palavra é,  como se sabe,  inútil

se pelo meio perdemos anos ou dedos impacientes

pondo-se em tudo: sentimentos nutridos

de coisas que encontramos ou buscamos achar

em seios parisienses ou vamos lá lisboetas

connosco em férias numa esplanada de manhã

ou seja    em Carcavelos    fumando o velho cigarro

ligeiramente a Sul da loja onde guardava

a memória dum Pai, a côdea manducada

no verdadeiro  “Sentimento dum Ocidental”.  Sim

moçoilas, saudáveis e prestantes

como nos louváveis alexandrinos

de bastante coleguia p’ra depois

do desmaio amoroso    ou antes    manuscrito

na Quinta se calhar de Linda-a-Pastora

que é recanto onde laranjas bem se encontram

como versos roubados e que logo

após se recomendam aos fregueses

do poema próprio ou alheio.  Indiferente substância

desta e doutras

comerciais casas. O vate

 

procura em diversos estancos sua matéria

de viver ou morrer com chapéu na cabeça

e exegetas ao lado, perna fina

de escrita ou surrobeca nacionais. Peixe podre

afinal    e rimas inglesas bem ferradas

com algum leve foco de infecção

bem para dentro dos versos e das cores:  azul

ou verde   ou vice-versa    (como na anedota)

onde deviam estar violeta

ou branco nocturno. E é bom dizer-se

- para quem saiba destas coisas singulares -

que o Mestre    o querido Mestre     o tal do corpo

setentrional e sapiente  (um pouco

digamos    ao jeito do António Nobre, que por pirraça

habitava   caspité!    outro Parnaso)

nos seus melhores momentos dorme agora

entre braçados de camélias

ou erros tipográficos

- espinafres,  beldroegas,  pimentões

que é esse o melhor prato da Poesia. E isso tem

uma tal melancolia, podeis crer

que a mostrar-se em Lisboa     explodiria

e rimas que aparecessem lhes chamaria     um figo.


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