Em meados de 83 do século
transacto, Mário Cesariny sugeriu-me traduzisse alguns poemas do Autor de
“Clair de Terre” para darmos a lume numa folha-volante do então criado “Bureau
Surrealista Alentejo-Lisboa”.
Na minha resposta positiva o resultado foi
este que agora aqui se deixa, cordialmente, aos leitores.
POEMA
1.
Tenho
na minha frente a fada de sal
cuja
túnica toda bordada
desce
até ao mar
cujo
véu pregueado
de
queda em queda ilumina toda a montanha.
Ela
brilha ao sol como um lustro de água iridiscente
e
os pequenos oleiros da noite serviram-se das suas
unhas
onde a lua não se reflecte
para
moldar o barro do serviço de café da beladona.
O
tempo enrodilha-se miraculosamente detrás dos seus
sapatos
de estrelas de neve
ao
longo dum rasto perdido nas carícias
de
dois arminhos.
Os
perigos anteriores foram ricamente repartidos
e
mal extintos os carvões no abrunheiro bravo das sebes
pela
serpente coral que sem custo passa
por
um delgado
filete
de sangue seco
na
lareira profunda
sempre
e sempre esplendidamente negra
Esta
lareira onde aprendi a ver
e
sobre a qual dança sem cessar
o
crepe das costas das primaveras
Aquele
que é necessário lançar muito alto para dourar
a
mulher em cujos cabelos encontro
o
sabor que perdera
O
crepe mágico o sinete voador
do
amor que é nosso.
2.
O
marquês de Sade retornou ao interior do vulcão
em
erupção
de
onde tinha vindo
com
as suas belas mãos de novo franjadas
os
seus olhos de rapariga
e
à superfície esta satisfação dum salve-se quem puder
que
não foi senão dele
mas
do salão fosforescente das luzes viscerais
não
cessou de lançar as ordens misteriosas
abrindo
uma brecha na noite moral
É
por esta brecha que eu vejo
as
grandes sombras estralejantes a velha crosta escavada
desfazerem-se
para
me deixarem amar-te
como
o primeiro homem amou a primeira mulher
em
liberdade inteira
essa
liberdade
pela
qual o fogo se fez homem
pela
qual o divino marquês desafiou os séculos as suas
grandes
árvores distraídas
os
acrobatas sinistros
presos
ao fio da Virgem do desejo.
SOMBRA
DE PALHA
Dêem-me
todas as jóias das afogadas
dois
presépios
um
cavalinho e uma agulha de chapeleira
em
seguida desculpem-me
já
que não tenho tempo de respirar
sou
um acaso
a
construção solar deteve-me aqui mesmo
e
agora nada faço senão deixá-la morrer
procurem
na tabela das contas atrasadas
a
trote na mão fechada debaixo da minha cabeça tilintante
um
copo no qual se abre um olho amarelo
abre
também o sentimento
e
no ar puro esvoaçam as princesas
tenho
nisso muito orgulho
e
ao mesmo tempo uma gotas de água insulsa
para
refrescar o vaso das flores bolorentas
ao
fundo da escada
o
pensamento divino no azulejo estrelado do céu
a
expressão das banhistas é a morte do lobo
tende-me
por amiga
a
amiga dos ardores e das raivas
que
duas vezes vos olha
alisai
a vossa plumagem diz ela
os
meus remos de pau-santo fazem cantar vossos cabelos
um
som claro abandonava a praia
negra
da cólera dos seixos
vermelha
do lado do horizonte como uma chapa incandescente.
in “Luz da Terra” - André Breton
Trad. NS
ns, Homenagem a Breton
(Folha volante do
Bureau Surrealista Alentejo-Lisboa, 1983)
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