quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Verdades como punhos - Um texto in memoriam

 

   Uma vez não são vezes… Mas por vezes acontece que, ao lermos nos jornais determinados textos, somos suscitados a reproduzi-los por mor da sua qualidade, da sua justeza momentosa e do retrato de realidade que transportam.

  É o que sucede com este artigo, da autoria de Diogo Vaz Pinto, vindo a lume no Jornal I – e aqui lhes deixamos a nossa vénia cordial – que se reproduza neste nosso espaço dada a sua qualidade insofismável.




Manuel Hermínio Monteiro. 20 anos depois,

porque foi esquecido o mais cúmplice editor dos poetas?


Tinha 48 anos quando morreu. Duas décadas depois, o que justifica tenha sido apagado o homem que, depois do 25 de Abril, pegou numa editora moribunda, rasgou o caminho numa direcção inesperada, editando poetas, criando colecções inovadoras, dando um fôlego inusitado à divulgação e à crítica, ajudando a dar-nos uma ideia do meio literário como algo vibrante, enquanto marcava a agenda, e fazia da publicação de livros verdadeiros eventos e de tantos autores, alguns esquecidos, figuras de culto?

Também o ódio, a inveja e a mesquinhez rezam, também elas criam os seus deuses medíocres, e nesta terra só parece haver verdadeira devoção na inveja e na inimizade. Isso talvez explique por que tão poucos são lembrados com a estima pelas melhores coisas que entre nós se fizeram. E assim é no campo da cultura, particularmente no que respeita aos livros, num país onde tão poucos leitores sentem a dívida que têm para com os editores. Nesse cálculo de sombras, se são apagados os raros exemplos de editores que foram capazes de contrariar a modorra em que vivemos, é comum depois reunirem-se os outros para concordar que não existem hoje ideias que salvem nem um ambiente que fundamente os nossos melhores esforços. Tudo se perde, e deste modo, como se diz num poema de Sophia, navegamos sem o mapa que fizemos. Tudo isto se agravou depois do fenómeno da concentração editorial, e este meio mal parece ter sobrevivido, tendo digerido o próprio estômago, a sua capacidade de mostrar confiança nas próprias ideias que divulga, de modo a fundamentar assim uma prática. Hoje, dos editores não se espera grande coisa, não são tidos nem achados em qualquer discussão pública, não apenas porque quando o fazem pouco acrescentam, mas também porque a época se tornou demasiado cínica para sequer contemplar hipóteses de salvação. O país não está para as grandes voltas do espírito, para intrigas oníricas, e é cada vez mais só até ao joelho. Assim, quase tudo o que ainda vai sendo publicado com algum espírito crítico, morre debaixo da saia das instituições, nomeadamente as académicas, e tantas outras coisas não chegam a ser realizadas, sufocando no regime burocrático desse “impecáveis profissionais enfermos de prudência”, que condenam às margens aquilo que, mais tarde, virá a ocupar o centro do fenómeno literário.

Nos dez anos da morte de Manuel Hermínio Monteiro, a editora que resgatara da falência e que se tornou um caso de sucesso publicando poesia, sofreu “um duro golpe perpetrado por Manuel Rosa”, que lhe sucedeu à frente da Assírio & Alvim. Quem o disse foi Manuela Correia, companheira muito cúmplice de mais de duas décadas de vida de Hermínio. Num protocolo de colaboração para as áreas de edição e distribuição firmado com o grupo Porto Editora, ficou aberta a porta ao que já se antecipava que viria a suceder mais tarde: a aquisição daquele catálogo e a dissolução da sua linha editorial, passando a Assírio a ser apenas mais outra chancela e tendo, entretanto, perdido o seu papel enquanto referência na edição de poesia inédita. Manuela Correia esclareceu ao i que tinha entendido todo aquele processo como “uma tentativa de branqueamento” no que concerne à história da editora, sendo “omitido de forma consciente o papel de Manuel Hermínio Monteiro na construção daquela que, hoje, ainda chamamos a Assírio & Alvim”. Porque não há como resgatar aquele projecto, numa manobra que permitiu, no entanto, que Vasco David, sobrinho de Manuel Rosa, chegasse, anos mais tarde, à direcção editorial da divisão literária da Porto Editora, podemos ainda fazer alguma coisa pela memória do homem que, segundo um outro editor do mesmo grupo, Francisco José Viegas, disse ter transformado a forma de olhar e conceber a edição contemporânea e ter marcado uma nova geração de editores e autores. E esta tentativa de resgate é feita quando passam vinte anos do desaparecimento de Hermínio, tendo essa efeméride passado em branco.

Dele se poderia dizer, usando as palavras de René Magritte, que, neste país, “toda a gente se parece com ele”, pois era português em tudo, mas depois havia outra coisa, um desejo desesperado daqueles que se foram daqui, que deram o melhor deste sangue a outras paragens, se muita gente se parece com ele, ele não era o Manuel do par com a Maria que vai com as outras, pois os seus olhos estavam atentos à cidade e ao campo também, e ao princípio do mundo como ao seu fim. Ele era dono das recordações, pormenorizava as aparências. O seu sonho provou ser infalível perante tantos outros que não fizeram qualquer caminho, ou se venderam por muito pouco. Ele era dominado por essa demanda do longínquo. Tinha a consciência afinada pelo assombro de tantas leituras, e sabia como esse é o melhor sistema, pois consegue criar uma convivência que não se baseia na força, antes apoiando-se “numa delicada urdidura de acordos e numa incessante conversação” (Irene Vallejo)

Nasceu bem no interior numa aldeia de Trás-os-Montes, Parada do Pinhão (Concelho de Sabrosa), e ali viveu até aos dez anos, fazendo a instrução primária, e contava como, tendo nascido em 1952, cresceu pelo século XIX, tendo visto chegar a electricidade, a rádio e a televisão “A escola era uma mesa muito grande numa sala; em bancos corridos estavam numa pontinha os meninos da primeira classe e na outra ponta estavam os da quarta, alguns já com 17 ou 18 anos”, contou numa entrevista a Anabela Mota Ribeiro, meses antes de “a flor maligna” que lhe tragava a carne tê-lo arrancado ao convívio com os seus.

Ao contrário dos enfezados citadinos que julgam deter uma visão cosmopolita da existência, ele tinha orgulho na sua ruralidade, e conhecia, por assim dizer, o princípio do mundo, como as coisas começavam, os inícios, as origens fabulosas, tendo assumido com prazer a tarefa de encantar os amigos pelo que resta de profundo no país, servindo de cicerone, e levando-os a descobri-lo. Reivindicava os antigos saberes, até a tradição oral. Sabia de pássaros (“O meu pai adorava ensinar-me como cantavam os pássaros, a imitá-los a todos”), não sofria da cegueira das plantas, conhecia as árvores, desde as trepar na infância até se acoitar na sua longa paciência e sombra consoladora. “Continua a ser para mim um autêntico milagre ver a cada ano como a seiva sobe pelo interior de uma árvore e vai desenhar cada folha e não se engana”, disse numa entrevista televisiva a Inês de Medeiros. E a Mota Ribeiro explicava como era a cultura que tinham lá onde cresceu, “desde cantares, guitarras, uma forte tradição do teatro, festas feitas conjuntamente – havia laivos de comunitarismo permanentes. Ao mesmo tempo a aldeia fechava-se, como se um medo a rodeasse, ‘Fulano de tal ainda não chegou à terra?’. Imaginavam-se coisas completamente loucas, derivadas também das casas onde o vento soprava pelas frestas, o soalho muito antigo rangia, a luz da lareira era móvel; parecia que estávamos em empurrões de barcos. Isto a juntar àquela imaginação alucinada, como ainda é lá em cima, do maravilhoso celta; ou, para não sermos tão caros, a imaginação do próprio meio que fermenta coisas – uma vez que não havia esta dispersão que há hoje.”

Teve algo muito parecido com a fogueira à volta da qual se assume que em tempos imemoriais terão despontado as primeiras narrações, os primitivos mitos e as histórias aprimoradas ao longo de gerações, e isto porque a avó tinha um forno onde as pessoas iam fazer o pão e o avô tinha um grande alambique “onde se juntava o pessoal todo, com a concertina, e mais não sei quê”. Eram camponeses, e os pais de Hermínio tinham casado miúdos (ele com 18, ela com 16 anos), tendo ele nascido um ano depois. Viriam a sobreviver-lhe, e a certa altura terá parecido que este homem que se fez sepultar no “interminável voo da infância”, foi filho de si mesmo, e deu vida aos próprios pais. “Lembro-me muito da minha infância”, dizia naquela última entrevista. “É uma espécie de película impressionável: o que fica ali registado, marca muito, muito mesmo. Tive a felicidade de ter uma infância completamente rural. O meu avô ia podar, levava-me com ele, deitava-me no casaco dele. Nesta altura, que é das primeiras ervinhas e flores, enquanto ele cantava aquelas canções, o Pinhão vinha com fragor por ali abaixo, e sentia os lampejos do sol nos açudes. Para um miúdo de sete anos isto era uma coisa fabulosa. Acordar num casaco a cheirar a tabaco – o meu avó fumava onça – e ficar a olhar. Ficar com as florzinhas em primeiro plano, ver o mundo mais rasteirinho. Nunca mais esqueci. De tal maneira que ainda hoje a maior parte dos meus sonhos são: águas límpidas, rosas, pereiras floridas, o meu pai a mostrar-me sítios por onde passávamos quando íamos à feira.”

Depois, aos dez anos, foi para um colégio de Salesianos, em Arouca, num antigo convento, “sinistro”. E assim começou a ver o mundo, aquele miúdo que nunca saíra “lá de cima”, nunca tinha sequer posto os olhos no mar, e dizia, numa das crónicas, compreender a razão de tantos navegadores célebres terem nascido no interior. “Refiro de memória: Cabrilho nasceu em Montalegre. Magalhães em Sabrosa. Diogo Cão de Vila Real. Álvares Cabral de Belmonte. Talvez o mar fosse para eles ‘igual ao vasto apetite’. Um ‘mar sem apoio em nenhum ponto do espaço, mas preso apesar de tudo numa enorme teia diabolicamente construída para conseguir ser livre’”, anotava, recorrendo às palavras de António Maria Lisboa, que seria, anos mais tarde, o primeiro autor por ele publicado, em 1978, o primeiro poeta a integrar o catálogo da Assírio & Alvim, esse que franqueou a coisa para os muitos que se seguiram.

Depois dos dois anos em Arouca, passou mais três noutro colégio em Mogofores, perto de Coimbra, onde concluiu o quinto ano. Nesses tempos lembra-se dos comboios, do tempo que demoravam a ir de umas terras para as outras. “Era preciso meter água, era preciso meter lenha, depois manobras à espera do outro. Mas também eram uma animação, aqueles comboios. Concertinas, gaitas-de-beiços, comezainas, garrafões, tipos a contarem anedotas, tipos a venderem romances de cordel (...) Entrava uma mulher com cerejas, ia de Godim à Régua: dava logo cerejas ao pessoal.” Lembra-se também do muito que chorava com saudades de casa, mas como, por orgulho, ele que era bom aluno, se recusava a andar para trás. Depois chegou ao Porto, onde teve o primeiro contacto com a cidade... “devo ao Porto ter-me desmamado em relação a uma série de coisa. Fiz também um esforço para sair de um certo maniqueísmo religioso em que tinha sido formado. Comecei a frequentar igrejas protestantes para ver como é que os outros pensavam”, contou a Anabela Mota Ribeiro. As raparigas em flor também ajudaram, e Hermínio nota que, nesse capítulo, estavam sempre a acontecer-lhe coisas extraordinárias: “entrava num comboio e apaixonava-me, entrava numa camionete e apaixonava-me.” E a sorte que tinha com o outro sexo, explica-a com um certo embalo íntimo que trazia lá de trás: “Eu tinha uma felicidade interior, uma tal transparência, que isso contagiava a outra pessoa.”

Naquela mesma entrevista, reconhece que a sua mola foi sempre o afecto. “Nunca pensei ser rico, ter poder... Outra coisa era o amor, isso sim, movia-me para o cu do mundo.” Mas ainda antes das cartas que escrevia para as raparigas, muito antes começara a escrever para si, e foi porque queria ser poeta e porque os poetas que mais lia e admirava eram todos licenciados em Direito (“o Pascoaes, o António Patrício, alguns simbolistas...”), que perdeu o primeiro ano na capital com esse curso. Reconhece naquela entrevista de vida, que nunca teve um grande sentido político, e que mesmo na oposição à guerra colonial se ficou por mandar umas bocas. Mas é conhecido o episódio em que foi parar a Caxias, e, se outros fariam disso um emblema, ele desvaloriza-o, dizendo que lhe aconteceu “basicamente porque estava a ouvir o Zeca Afonso no Centro Nacional de Cultura”. E adianta ainda que a experiência só serviu para que desse provas da sua enorme ingenuidade, pois enquanto lhe davam “um enxerto de porrada inacreditável”, estava perplexo e só perguntava “Porque é que me está a bater?”

Tinha o cabelo grande e cortaram-lho. Era de um negro, asa de corvo, uma espécie de orgulho, como aquele bigode que punha um ar de malícia no rosto largo, aberto. Ainda implicaram com as “coisinhas” que trazia num saco. “Meteram-me numa cela sem um papel, sem um livro, nada, nada. Um dia parecia uma eternidade.” E aí está essa distância que identifica um homem dos livros. Para defender-se da eternidade, por que suplica ele: ao menos um papel, um livro. E depois o reconhecer como as palavras são esse último reduto da liberdade que resiste num homem. “Lá dentro apercebi-me de que havia luta: nos pratos, no alumínio, escreviam coisas como “Coragem, estamos contigo, “Resiste”; na enfermaria havia coisas escritas a sangue; e havia gajos que cantavam, cantigas alentejanas.”

Depois dessa semana em que foi dar com os ossos na cela, tinha então 22 anos, chegou à Assírio & Alvim, que havia sido fundada dois anos antes, em 1972, e que pouco depois estava de pantanas, num regime de mera sobrevivência. “Quando fui para lá, os livros editados não chegavam a dez”, recordava. “A Assírio vivia mais da distribuição do que da edição. É nesse contexto que entro, um pouco desinteressadamente.” Foi para a parte das vendas, para tentar sustentar-se enquanto concluía o curso de História na Faculdade de Letras de Lisboa. Depois de completar o curso, ainda teve a passagem pela tropa, e devia ter ido para os fuzileiros antes de se dar o 25 de Abril, mas furtou-se a isso e diz que andou a monte por uns tempos. Ainda foi fazer vindimas a França, viajou sozinho antes de, por fim, em 1978, assumir um papel mais activo na editora, levando a uma viragem decisiva na sua linha editorial, para cinco anos mais tarde, em 1983, se tornar o seu director editorial. Depois de publicar a obra literária de Maria Lisboa, seguiram-se as de Herberto Helder e de Mário Cesariny, mas também as de Mário de Sá-Carneiro, Teixeira de Pascoaes, Ruben A. ou Ângelo de Lima. Mas se disse sempre que seria o amor a levá-lo ao cu do mundo, se em 1978 assentou arraiais, isso deveu-se a ter sido também nesse ano que conheceu Manuela Correia. É ela quem recorda no documentário de André Godinho como se cruzaram numa estação de metro, e como ele vinha todo contente com um exemplar acabado de imprimir dos Poemas de António Maria Lisboa, livro que ainda cheirava à tipografia. Depois de começarem a falar, ela quis dizer-lhe o quanto gostava de livros, e confessou como dias antes tinha roubado um na Assírio & Alvim.

Apesar de, confessadamente, ter cadernos que nunca mais acabavam cheios de versos, quando deu por si em condições de “publicar tanta poesia tão boa”, desinteressou-se da sua ambição de ser poeta. “Ah, a vaidadezinha, não tenho muito essa vaidadezinha. A vaidezinha que tenho é colectiva, por amigos.” Revelou-se, no entanto, um notável cronista, um poeta secreto, alongando os versos, partilhando o seu imenso encanto por tanta coisa. “Escrevo coisas incríveis, só que não as escrevo. É como se as escrevesse, andam assim por dentro. Poemas feitos.”

Foi entre nós um grande mobilizador, um homem capaz de fazer tempo, ou melhor, fazer esses juízos que os ignorantes costumam dizer que caberão ao tempo. De resto, procure-se os dedos dessa mão desfeita para contar ainda quantos editores hoje dedicados a essa forma de actuação seriam capazes de exprimir com esta clareza e esplendor a razão que os move: “Nascemos para o que nos rodeia vezes sem conta. Em cada renascimento há um estendal de coisas novas à nossa disposição que produzem a nossa vida. E outras coisas tomam inédita postura ou fingem escondimento e sorvem a nossa vida. São os nomes que nos ligam às coisas. E toda a vida aprofundamos, ampliamos, compreendemos, explicamos esta estranha e familiar ligação, nunca concluída com o nome que envolve cada coisa, ‘o espantoso nome que damos às coisas’. E com o tempo percebemos que a literatura é um habilidoso e multifacetado artefacto que toma os nomes e, a partir deles, conduz ao mais íntimo coração das respectivas coisas.” 

Hoje, quando todos se engalfinham na edição, desprezando-se mutuamente, não resiste qualquer espaço comum, a não ser no campo comercial, nas livrarias descaracterizadas das grandes cadeias, mas perdeu-se aquele território onde as sombras se cruzavam e feriam, onde os ecos se incitavam entre si. Hermínio concebeu e dirigiu a singela folha cultural “A Phala”, traçando uma ciência de navegação que orientou criticamente a divulgação dos autores que publicava e não só, deixando claro que o desejo de vender acaba por estreitar as linhas de fundo, e o seu contributo foi, por isso, decisivo para mostrar que a crítica é essencial para dar a conhecer e admirar em vez de impingir e desgastar como faz o marketing. Entre os cem números publicados, destaca-se o fabuloso volume “A Phala: Um Século de Poesia (1888-1988)”. Hermínio criou ainda no espaço da Assírio, na rua Passos Manuel, em Lisboa, uma galeria de arte. Dinamizou as livrarias nos cinemas King, de Lisboa, e no Porto. Foi autor de programas radiofónicos e televisivos. Prefaciou livros e escreveu textos para catálogos de exposições e esteve com Miguel Esteves Cardoso na criação da Revista K, tendo colaborado ainda na revista “Ler”, integrado o conselho editorial da revista “Espacio/Espaço Escrito”, de Badajoz. Entrou ainda na criação da revista hispano-americana de poesia “Hablar/Falar de Poesia”, e colaborou numa série de outras publicações como “O Independente”, “Jornal de Letras”, “Douro-net”, Revista “Barata”, e o jornal “ La Vanguardia”, etc.

E se em 1993, foi agraciado como Comendador da Ordem do Infante D. Henrique, pelo Presidente da República Mário Soares, hoje, se quisermos ouvir esses que falam à boca pequena sobre o seu legado, apenas nos chegam relatos de calhandrices, esquemas para abichar umas massas. Mas isso também caracteriza o meio literário português, e particularmente os editores: um bando desavindo, canibalizando-se uns aos outros, julgando que se secarem tudo à volta mais sobrará para eles; isolando-se uns, enquanto outros se associam numa “camorra de medíocres” (Eduardo Prado Coelho), num cerco constante às instituições, aos dinheiros públicos, sempre numa histeria enchendo a boca com as necessidades da cultura.

Depois ainda há aqueles que se dizem marginais, e não passam de tiranetes que assim tentam impor a sua lei de intrometidos morais omnipotentes. Para quem tudo à volta é um nojo, uma grande montanha de merda, na qual gostam de sentar-se como num trono prosseguindo a pregação na sua rezinguice de moscas. Ele, pelo contrário, soube ter gente muito diferente à sua volta, admirar e sofrer os seus autores, foi um editor-estratega, atento, cheirando a tempestade a dias de distância ainda quando era formulada nos territórios da imaginação. Sabia cozinhar trovões, fazê-los ressoar ao longe e ao perto. E isto num país onde o que está perto é o mais difícil de se conquistar. Tinha também a ciência de sacar os cobres necessários, fazer as alianças certas, criar um colégio de espíritos esfaimados que em vez de manifestos lamurientos, sabiam que se não há, cabe-nos inventar isso, a própria vida, o mundo, outra versão das coisas.

Mas, entretanto, se o melhor desse exemplo há muito se perdeu, restou apenas o pior. Editoras como navios encalhados, cuja tripulação anda por terra fingindo mal os trejeitos e o desvario dos embarcadiços. Longe vão os tempos em que os editores não esboçavam meramente uma mesa de amigos em seu redor, mas tinham uma palavra, não necessariamente a última, mas essa que acompanha, que percepciona criticamente, guiando autores, abrindo caminhos. Tudo isso está muito longínquo quando damos com figuras apagadas, alguns semi-analfabetos que, seguindo o regime geral do nepotismo, se mantêm ao leme de editoras em tempos prestigiadas. Para muitos destes, a edição é um emprego, para outros um negócio, para muito poucos é uma visão estruturante. “Ele acreditava”, diz Graça Morais no documentário de André Godinho dedicado a Manuel Hermínio Monteiro. “E acreditava porque era intuitivo, muito sensível, porque era uma pessoa com muitos conhecimentos. Só uma pessoa culta é que pode acreditar. As pessoas ignorantes nunca acreditam, desconfiam sempre.”

Manuela Correia lembra-se de o ver gastar o que tinha e o que não tinha para segurar a editora, e como o fim do mês chegava e houve vezes em não tinha dinheiro sequer para comer, tendo sido o salário dela como médica psiquiatra que os aguentou. Lembra-se também de como certa vez chegou a casa a chorar depois de um desentendimento com um dos autores, um desaguisado que sentiu como uma traição, e de como isso levou a que fosse ela quem muitas vezes sentiu necessidade de interceder. E vinca como houve autores que Hermínio foi buscar ao esquecimento, e como era o próprio Cesariny quem reconhecia que ele o fora buscar à sarjeta.

Havia nele essa capacidade de espanto e surpresa renovados diante dessa invenção tão antiga e que nunca mais acabou de se renovar, a escrita. E vincava que “nada há de mais sublime do que constatar como pequenos desenhos repetidos, impressos numa forma que rapidamente se esquece ao ler, seguram as pontas ínfimas da alma”. Foi, por isso, o último editor português que verdadeiramente apoiou e instigou a crítica literária entendida como uma conversação entre pessoas inteligentes, capazes de exercer esse gesto de criação sobre a criação, com fervor e entusiasmo. Entendia o feitiço persistente dos livros, esses objectos que tocam ao de leve a perfeição, sem deixarem de ser frágeis, capazes de registarem esses estremecimentos de água que ocorrem no espírito, e que são, por isso, dignos de repousarem na orla das nossas vidas secretas. Há uma intensidade que escapa as ambições mais nervosas que hoje dominam a cidade. Os livros formam assim uma rede de túneis subterrâneos, por meio dessa sombra movediça que regista provérbios, canções, adivinhas, contos, lendas, versos, fabulas, todo esse mundo de palavras malabares que começaram por nos cercar na infância, como diz Luis Landero. “Nos livros lidos está a sombra, o rasto do que fomos, os diversos esboços da nossa aprendizagem, os vestígios de certos afãs que um dia nos comoveram”

“Rosa do Mundo: 2001 poemas para o futuro”, foi o livro testamentário de Manuel Hermínio Monteiro, de acordo com Manuela Correia, que foi responsável pela sua organização. E é, não só entre nós, mas em todo o mundo uma das mais ambiciosas antologias da poesia de todos os lados, de todos os tempos. Um livro imenso em que foram reunidos os esforços dos melhores tradutores de poesia no nosso país, e que serve como um testemunho perpétuo do poder da “Canção”: “Abre o fruto de odor inquietante/ e nunca, nunca mais te poderás saciar. Os caroços escorregam como ovos debaixo dos teus dedos./ O sumo é forte e doce como o alho e o leite”, lê-se num breve poema indonésio, vertido por Herberto Helder.


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